Brasil precisa olhar para sua costa enquanto há tempo, alertam cientistas

Um mar que provê segurança alimentar, equilíbrio climático, bem-estar humano, proteção da biodiversidade, turismo e lazer não pode ser ignorado por um país com 10 mil quilômetros de costa

Por Elizabeth Oliveira | ODS 14
Publicada em 26 de novembro de 2023 - 13:51  -  Atualizada em 3 de dezembro de 2023 - 11:57
Tempo de leitura: 8 min

Baleia Jubarte na costa de Vitória, no Espírito Santo. A biodiversidade costeiro-marinha, envolve riquezas como 2.300 espécies de algas; 1.913 de moluscos; 1.717 de crustáceos e 1.359 de peixes. Foto Carl de Souza/AFP

Em cenário de agravamento da crise climática e de perda acelerada de biodiversidade, os olhos da sociedade brasileira precisam se voltar mais para o mar e sua importância econômica, social, ambiental e cultural, dentre outras dimensões que envolvem qualidade de vida e equilíbrio ecológico. Desse balanço dependerá, cada vez mais, a existência humana. Essa é uma das mensagens centrais do 1º Diagnóstico Brasileiro Marinho-Costeiro sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos lançado na última quinta-feira, dia 23, no Rio de Janeiro, pela Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (BPBES) e pela Cátedra Unesco para a Sustentabilidade do Oceano.

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Cientistas que lideraram o processo de elaboração da publicação alertam que um país com mais de 10 mil quilômetros de costa, onde se inserem 17 estados, 443 municípios e 13 capitais não pode permanecer “de costas para o mar”. Dessa sensibilização e da efetiva implementação de políticas públicas de proteção costeiro-marinha dependerá, cada vez mais, a capacidade de resiliência brasileira frente aos desafios atuais e futuros. Riscos envolvendo crise climática, sobrepesca, poluição, presença de espécies invasoras, urbanização acelerada e outras ameaças põem em xeque a própria economia do mar que envolve, pelo menos, R$ 1,11 trilhão, ou 20% do Produto Interno Bruto (PIB).

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Os números, ainda que expressivos, estão subestimados, como destaca Beatrice Padovani, professora de Oceanografia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), uma das coordenadoras do Diagnóstico, durante a coletiva de lançamento da publicação. Segundo a especialista, essa conta não inclui benefícios de regulação que a natureza provê e tampouco dimensões relacionadas ao bem-estar humano e valores culturais como conforto espiritual e psicológico, inspiração, contemplação, além de outras perspectivas imateriais e subjetivas que envolvem a conexão da sociedade com o mar e todos os seus atributos.

Arte Fernando Alvarus
Arte Fernando Alvarus

De qualquer forma, a partir de dados disponíveis compilados, o Diagnóstico releva a importância socioeconômica do mar no Brasil, onde pelo menos 1 milhão de pescadores artesanais produzem mais da metade do pescado nacional, o que representa 500 mil toneladas anuais. Já o turismo, fortemente dependente da região costeiro-marinha, suas belezas e qualidade ambiental, responde por 8,1% do PIB.

Considerando que 18% da população brasileira se concentra nas regiões metropolitanas costeiras, o levantamento chama atenção sobre a importância dos ecossistemas costeiro-marinhos para a proteção dessas áreas contra fenômenos como o avanço do mar e ressacas, cada vez mais associados ao agravamento da crise climática. Nesse contexto, segundo a professora Padovani, ambientes como os manguezais brasileiros têm importância fundamental, pois além de reduzirem a vulnerabilidade costeira em 20%, estocam 8,5% de dióxido de carbono (CO2) dos manguezais mundiais.

Sem contar outros benefícios assegurados pelo manguezais, como geração de renda e segurança alimentar para comunidades que atuam na coleta de caranguejo e outros crustáceos, além de sustentação da própria cadeia alimentar marinha, já que funcionam como berçários de 70% dos recursos pesqueiros de interesse comercial.

Pela sua relevância indiscutível na oxigenação e no equilíbrio climático, a área marinha brasileira, não por acaso chamada de Amazônia Azul, se estende por 5,7 milhões de quilômetros quadrados, uma abrangência de dois terços do território continental.

A importância sociocultural da zona costeiro-marinha no Brasil também é mencionada no relatório como um trunfo do país.  Pelo menos 61 Terras Indígenas (820 mil hectares, 2% dos municípios litorâneos), 14 povos indígenas e 111 Territórios Quilombolas (390 mil hectares, 1% dos municípios costeiros) e outras comunidades tradicionais interagem ao longo dessa grande extensão no país. “Mas esses territórios dependem de reconhecimento formal, devido às inúmeras pressões que enfrentam”, afirma Padovani.

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A riqueza da biodiversidade costeiro-marinha, tão importante para a sobrevivência das comunidades tradicionais e seus modos de vida, envolve, pelo menos, 2.300 espécies de algas; 1.913 de moluscos; 1.717 de crustáceos e 1.359 de peixes. Interagem ainda com esses ambientes, 62 espécies de aves, 51 de mamíferos e mais de 120 de corais. Apesar dessa relevância, são grandes os riscos diante do uso insustentável desse patrimônio natural e de outras ameaças.

Vista aérea da orla de Ipanema e Leblon, no Rio de Janeiro. A área marinha brasileira se estende por 5,7 milhões de quilômetros quadrados. Foto Alexandre Rotenberg/Robert Harding via AFP
Vista aérea da orla de Ipanema e Leblon, no Rio de Janeiro. A área marinha brasileira se estende por 5,7 milhões de quilômetros quadrados. Foto Alexandre Rotenberg/Robert Harding via AFP

Qual o futuro que se projeta diante dos cenários de riscos atuais

Há mais de uma década, o Brasil não tem dados oficiais sobre a realidade pesqueira nacional, o que significa que não se sabe, ao certo, quem é quem no setor, quanto se pesca e o que existe de estoques. Os pesquisadores foram unânimes ao reconhecer que esse é um problema real que precisa ser enfrentado e resolvido, sem mais delongas, para um país que tem 160 espécies da fauna marinha ameaçadas de extinção e 50% da produção marinha totalmente exploradas ou sobre-exploradas, conforme apontado pelo Diagnóstico.

Alexander Turra, professor da Cátedra Unesco para a Sustentabilidade do Oceano na Universidade de São Paulo (USP) e um dos coordenadores do Diagnóstico, afirma que não cuidar da biodiversidade marinha implica em grandes problemas futuros, quando o Brasil poderia exercer um papel de liderança na proteção desse patrimônio natural.

“Um oceano com menos espécies e menos funcionalidade vai se desdobrar em insegurança alimentar e injustiça social”, alerta Turra. Ele também não descarta o colapso do turismo, caso não sejam enfrentados os problemas do presente, dentre os quais, a adaptação aos efeitos das mudanças climáticas, “porque não vai ter sol e praia”, tal qual estamos habituados a desfrutar. “Por isso temos que trazer para a discussão com a sociedade os benefícios dos ecossistemas para a nossa qualidade de vida”, acrescenta.

Como problemas que o país precisa resolver, Turra menciona a grande lacuna referente à implementação de políticas públicas de proteção da zona costeiro-marinha que já existem. “Não necessariamente precisamos criar novas políticas”, opina. Uma exceção, segundo o especialista, fica por conta da Lei do Mar (PL 6969-2013) que tramita há uma década e tem importância pouco compreendida pela sociedade em geral.

Em relação à inação frente aos problemas da zona costeiro-marinha no Brasil, Cristiana Seixas, pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), integrante também da equipe de coordenação do Diagnóstico, alerta para os riscos de desastres ambientais, aumento das ondas de calor e outros impactos que vão tornar as populações cada vez mais vulneráveis. A pesquisadora afirma que as perspectivas não são promissoras se a sociedade continuar agindo hoje sem pensar no amanhã. “Não dá para continuar operando em uma sociedade que não considera a perda de biodiversidade e as mudanças climáticas [como grandes fatores de risco]”, opina.

Para além da esfera governamental, a professora da Unicamp ressalta, ainda, que “os tomadores de decisão somos todos nós”.  Segundo analisa, “a gente não muda uma cultura e o paradigma operante se não tiver uma força que pressione”. No caso do Diagnóstico, ela observa que, fora legisladores e gestores, essa publicação deve ser usada na Academia, nas escolas, nas ONGs, no setor privado e em outros segmentos sociais. “A gente tem que expandir o conceito de tomadores de decisão. Todas as decisões que tomamos têm impacto no ambiente. A gente deve então não somente delegar, mas dividir responsabilidade”, reitera.

Utilizando uma metáfora para expressar suas expectativas de tornar o Diagnóstico conhecido da sociedade e efetivo na contribuição para gerar ações práticas na zona Costeiro-Marinha, Turra afirma: “Temos que criar uma pororoca para mobilizar a sociedade sobre a cultura do mar e não deixar o tema se esvair. Temos que tratar essa agenda de forma exuberante porque o oceano é assim. Tudo isso o que a gente coloca no Diagnóstico é porque ele é tudo de bom”.

O processo de elaboração do Diagnóstico envolveu 53 especialistas acadêmicos e governamentais, além de 12 jovens pesquisadores e 26 representantes de povos indígenas e outras populações tradicionais do Brasil.

Elizabeth Oliveira

Jornalista apaixonada por temas socioambientais. Fez doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento (PPED), vinculado ao Instituto de Economia da UFRJ, e mestrado em Ecologia Social pelo Programa EICOS, do Instituto de Psicologia da UFRJ. Foi repórter do Jornal do Commercio do Rio de Janeiro e colabora com veículos especializados, além de atuar como consultora e pesquisadora.

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