ODS 1
A vida em plena resistência
Tartarugas marinhas sobrevivem apesar da degradação dos oceanos e das inúmeras ameaças à região costeira brasileira
A temporada 2018/2019 de reprodução de tartarugas marinhas na costa brasileira, iniciada em setembro, chegou ao fim, em março, trazendo motivos para a celebração da vida de mais de dois milhões de novos filhotes, segundo expectativas das equipes envolvidas no Projeto Tamar. Sob a sua proteção, 37 milhões de tartaruguinhas já chegaram ao mar, nas últimas três décadas. Apesar dos esforços de conservação, de cada mil filhotes nascidos, apenas um ou dois conseguirão sobreviver ao ciclo natural dos ecossistemas marinhos. Diante desse cenário, ainda são muitas as preocupações dos especialistas sobre o futuro das cinco espécies que desovam no Brasil, anualmente, e que estão entre as sete existentes no mundo, todas ameaçadas de extinção.
[g1_quote author_name=”Paulo Lara” author_description=”Coordenador do Projeto Tamar” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]A sociedade precisa abrir os olhos porque só teremos planeta habitado enquanto houver oceanos. Mas sabemos que a questão é desafiadora. Em casa, o lixo é jogado embaixo do tapete enquanto as cidades jogam seus poluentes nos oceanos
[/g1_quote]Mais do que conseguir sair dos ovos e alcançar o mar, os filhotes nascidos no litoral brasileiro precisarão driblar os predadores naturais, os riscos de captura incidental por redes de pesca e anzóis esquecidos no fundo do mar, além do excesso de lixo plástico e outros poluentes. Esses são alguns dos perigos que podem impedir a formação de um ciclo de vida de uma tartaruga marinha que leva de 20 a 30 anos até chegar à fase de reprodução. Por isso, proteger as áreas de desova e os filhotes, até que possam nadar, continua sendo uma estratégia fundamental para aumentar as chances de existência dessas espécies nos oceanos, segundo o biólogo Paulo Lara, coordenador de Conservação do Projeto Tamar.
Gostando do conteúdo? Nossas notícias também podem chegar no seu e-mail.
Veja o que já enviamosPara Lara, a criação desse grande projeto, em 1982, possibilitou a ampliação do conhecimento científico sobre as espécies, além de inúmeras ações de proteção, incluindo desde a criação de protocolos com recomendações para manejo de ovos e filhotes, que aumentaram as suas chances de sobrevivência, aos movimentos organizados que levaram à criação de leis e decretos.
Em um guia de licenciamento ambiental para empreendimentos em áreas de desova de tartarugas marinhas é possível encontrar exemplos de leis que visam à proteção dessas espécies no Brasil. A legislação mais recente, para a qual o Tamar contribuiu, é a portaria interministerial 74/2017 que entrou em vigor em 2018 e determina o uso do anzol circular, cujo design diferenciado reduz o risco de pesca incidental e de mortandade de tartarugas, por embarcações pesqueiras. “Foi uma grande conquista”, observa o biólogo.
O Tamar envolve equipes em 26 bases de monitoramento, ao longo de 1,1 mil quilômetros no litoral brasileiro, além de contar com uma ampla adesão das comunidades pesqueiras, desde o início das suas atividades. Essa é considerada uma estratégia fundamental ao êxito das suas ações de conservação das tartarugas marinhas. O projeto é patrocinado pela Petrobras há 36 anos. Por intermédio do Programa Petrobras Socioambiental, a parceria foi renovada em 2018, devendo destinar R$ 13,5 milhões a essa iniciativa em três anos.
As ameaças à vida marinha mudaram de perfil
Paulo Lara ressalta que, do risco de serem consumidas como alimento, na década de 1980, as tartarugas marinhas passaram a enfrentar outros desafios para sobreviver e se reproduzir, nos últimos anos. O turismo e a especulação imobiliária representam alguns dos mais recentes fatores de pressão para a biodiversidade marinha, sobretudo no litoral do Nordeste, amplamente ocupado por condomínios residenciais, complexos hoteleiros, bares, restaurantes e outros empreendimentos.
Além da poluição causada pela ocupação e pelo turismo no litoral, a iluminação das praias, a chamada “fotopoluição”, passou a ser outro fator de risco para as tartarugas marinhas. Elas nascem à noite e naturalmente buscam o brilho do mar ao saírem dos ovos e alcançarem a superfície dos ninhos. A luz artificial nas áreas de desova costuma causar desorientação nos filhotes que, muitas vezes, entram em casas e em empreendimentos movimentados, quando deveriam estar se afastando da costa. Quando isso ocorre, muitos podem ser feridos acidentalmente ou mesmo morrer de exaustão ou de desidratação. O problema também pode interferir no retorno das fêmeas ao mar, após o processo de desova.
“Consideramos que disseminar informação é muito importante nesse projeto e trabalhamos intensamente para alertar a sociedade sobre esse tipo de risco”, diz Lara. Em linguagem educativa, já foram editadas cartilhas com dicas para moradores e empreendedores sobre como desenvolver seus projetos, evitando a incidência de iluminação direta em áreas de ninhos de tartarugas. Mas o diálogo presencial ainda é considerado fundamental como estratégia de sensibilização. No dia da entrevista com o biólogo ele contou que havia participado de uma reunião com o síndico de um condomínio na Praia do Forte, base do Tamar na Bahia, para discutir essa questão, ainda amplamente relacionada à preocupação de moradores, veranistas e empreendedores com a segurança pública no Brasil.
As espécies invasoras também representam um grande risco para a biodiversidade marinha. Nesse cenário, o biólogo ressalta que existem corais, peixes, mariscos e outros bioinvasores que já provocam desequilíbrio na costa brasileira. “A sociedade precisa abrir os olhos porque só teremos planeta habitado enquanto houver oceanos. Mas sabemos que a questão é desafiadora. Em casa, o lixo é jogado embaixo do tapete enquanto as cidades jogam seus poluentes nos oceanos”, afirma Lara.
Rastreamento de filhotes está previsto
Diante de tantas ameaças, os próximos passos do Tamar preveem mais avanços tecnológicos como aliados das pesquisas e das ações educativas. Lara adiantou que espera conseguir concretizar um projeto de rastreamento dos filhotes, se possível, na temporada 2019/2020. “A ideia é saber para onde eles vão e como enfrentam as ameaças do oceano”, observa. Mesmo sem poder entrar em detalhes, ainda, sobre a iniciativa, o biólogo ressaltou que essa prática já ocorre com as fêmeas que desovam na costa brasileira e contribui com inúmeras respostas para a conservação das espécies.
Em 2012, o Tamar desenvolveu uma pesquisa temporária com filhotes, em parceria com a Universidade Atlântica da Flórida, quando se identificou que um dos que estavam sendo monitorados foi parar em Barbados, no Caribe. Naquela época, foram levemente modificados minitransmissores por satélite (geralmente usados em aves) para pesquisar sobre os chamados “anos perdidos”, fase inicial de vida das tartarugas marinhas no oceano.
Além de observar o comportamento migratório, os pesquisadores têm interesse sobre áreas de berçários naturais utilizadas pelos filhotes depois de deixarem a costa. Eles sabem que as estratégias de conservação marinha não podem se resumir a um único país porque as espécies circulam para além das fronteiras geopolíticas.
Sobre o próprio futuro do Tamar, para Lara, o maior desafio continua sendo a autossustentabilidade do projeto. Apesar de contar com patrocínio, grande parte do orçamento vem das ações de vendas de souvenirs e da visitação turística. Nesse contexto, é preciso manter o envolvimento das comunidades a partir de incentivo à geração de renda. Em bases como a da Praia do Forte, por exemplo, são vendidas camisetas produzidas por comunidades de Pirambu (SE) e Regência (ES), onde não há essa forte vocação para o turismo.
“A nossa presença ainda é muito importante no litoral brasileiro. Se a gente deixar de atuar, promovendo ações educativas, socioculturais, de mobilização e geração de renda, os ovos e as tartarugas voltarão a ser consumidos”, opina o biólogo. Como parte das ações de sensibilização sobre o tema, Lara considera essencial ressaltar a relevância das comunidades pesqueiras na luta pela proteção das espécies que desovam na costa brasileira. “Elas salvam as tartarugas marinhas para o bem de toda a sociedade”, conclui.
Preocupações ampliadas em cenários de mudanças climáticas
O biólogo Ricardo Gomes, diretor do Instituto Mar Urbano, considera que a resiliência da espécie humana está diretamente ligada à existência dos oceanos e da biodiversidade marinha. Entretanto, ainda falta entendimento de grande parte da sociedade, sobre essa relação de interdependência, cada vez mais ameaçada pelo agravamento das mudanças climáticas. Entre outros impactos, esse fenômeno relacionado ao aumento da temperatura global tem provocado a acidificação dos oceanos, podendo comprometer o futuro da vida marinha, segundo alerta.
Gomes defende a valoração dos recursos assegurados pelos oceanos, como o fornecimento de proteína alimentar, a oxigenação da Terra, além da absorção de gás carbônico da atmosfera, entre outros, para que a sociedade tenha mais clareza da sua importância. “Certamente já estaríamos vivendo uma era inviável se não fossem pelos serviços prestados pelos oceanos”, opina.
O biólogo também considera que alternativas economicamente viáveis, como o turismo subaquático, podem ser importantes aliadas da conservação em um país de vasto litoral como o Brasil. Ele exemplifica que na Indonésia, algumas espécies já foram valoradas e um tubarão vivo vale mais de dois milhões de dólares. Dessa forma, há comunidades que podem lucrar mais com ações de ecoturismo marinho do que com a pesca. Segundo pondera, talvez essa fosse uma oportunidade para comunidades pesqueiras, nas proximidades de áreas urbanas, cujas gerações mais jovens não querem mais se envolver com a pesca.
“Têm algumas contas que precisam ser feitas. Quanto vale uma tartaruga?”, questiona. Sobre os esforços de conservação das tartarugas marinhas no Brasil, Gomes opina que a atuação do Projeto Tamar tem sido crucial para o repovoamento dos oceanos. “Vi três tartarugas marinhas na praia do Arpoador hoje (no dia da entrevista que concedeu por telefone). Provavelmente, elas pertencem às primeiras gerações nascidas das ações bem-sucedidas desse projeto e refletem o cuidado que tiveram há décadas com o processo de reprodução dessas espécies”, conclui.
Embora reconheça que há avanços alcançados por projetos de conservação da biodiversidade no Brasil, a bióloga Leandra Gonçalves, pesquisadora do Laboratório de Ecologia e Conservação Marinha (LabManejo) da Universidade de São Paulo (USP), ressalta que não é mais suficiente tratar de algumas espécies, isoladamente. Para ela, um dos maiores desafios atuais dos oceanos se refere ao olhar integrado (ecossistêmico) tanto para o enfrentamento dos problemas como para a busca de soluções, sobretudo em contexto de mudanças climáticas.
Leandra representou o Brasil na elaboração do Relatório Panorama Ambiental Global (GEO-6), lançado em março pela ONU Meio Ambiente (disponível em inglês), além de estar atuando como pesquisadora da Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (BPBES) pela qual tem sido difundida uma série de estudos sobre o estado da biodiversidade no país.
Segundo ressalta, o GEO-6 propõe uma mudança na forma como a sociedade se relaciona com a natureza. “Devemos envolver esforços de coordenação de ações entre governos, pesquisadores, empresas, organizações da sociedade civil e outros segmentos para que possamos avançar da condição de habitantes para co-habitantes do planeta”, opina. O desafio depende da geração de conhecimento e nesse sentido a ONU tem mobilizado uma grande quantidade de estudiosos.
Para desenvolver o GEO-6, foram envolvidos 257 cientistas de mais de 70 países que vêm trabalhando com grandes temas ambientais como água doce, oceanos, terra, biodiversidade e ar. A pesquisadora explica que colaborou para a produção do capítulo de eficácia das políticas para biodiversidade e oceanos e também no capítulo de políticas, teoria e prática. Uma das principais conclusões do relatório sinaliza que o mundo não caminha para um futuro mais sustentável, em decorrência dos atuais padrões de produção e consumo que têm prejudicando esforços da política ambiental na maioria dos países. Em cenários de mudanças climáticas e de aceleração da perda de biodiversidade, tanto os avanços econômicos como a garantia de bem-estar humano podem ser comprometidos se não houver um amplo engajamento da sociedade global.
Relacionadas
Jornalista apaixonada por temas socioambientais. Fez doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento (PPED), vinculado ao Instituto de Economia da UFRJ, e mestrado em Ecologia Social pelo Programa EICOS, do Instituto de Psicologia da UFRJ. Foi repórter do Jornal do Commercio do Rio de Janeiro e colabora com veículos especializados, além de atuar como consultora e pesquisadora.