Gado em torno de lago quase seco na estiagem de 2023 em Bagé. Rio Grande do Sul: anos de seca extrema vêm castigando gaúchos antes e depois dos temporais de 2024 (Foto: Fábio Pozzebom / Agência Brasil - 23/02/2023)

Seca extrema castiga agricultores gaúchos antes e depois dos temporais

Seca extrema castiga agricultores gaúchos antes e depois dos temporais

Por Oscar Valporto ODS 13

Meteorologista alerta para períodos longos de estiagem e altas temperaturas; impacto nas safras aumenta endividamento de produtor rural no Rio Grande do Sul

Publicada em 29 de abril de 2025 - 00:07

As enchentes de 2024 marcaram a maior tragédia climática do Rio Grande do Sul, com a morte de xx pessoas – entretanto, o período prolongado de chuvas intensas foi uma exceção em meia década onde o estado vem enfrentando outro evento extremo: a seca. Desde 2020, cidades gaúchas vêm enfrentando períodos incomuns de estiagem, com impactos na produção agrícola, na pecuária e até no abastecimento de água. Em 2022, o número de municípios com decretos de situação de emergência provocados pela seca extrema chegou a 415 (mais de 80%); em 2023, foram mais de 350 com emergência decretada. Agora, em 2025, a estiagem prolongada já resultou, até 20 de abril, em 312 municípios gaúchos com situação de emergência decretada.

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Foi uma seca muito severa. Essas intensificações de eventos extremos já são sinais das mudanças climáticas pelas quais o planeta vem passando. Tivemos ondas de calor muito intensas e precipitação muito baixa

Eliana Klering,
Meteorologista e professora da Universidade Federal de Pelotas (UFPel)

Os meteorologistas explicam que o clima no Rio Grande do Sul está condicionado a três fatores: as condições de temperatura das águas do Pacífico Equatorial – impactadas pelos fenômenos La Niña, que resfria as águas, e El Niño, que esquenta -, temperaturas das águas do Oceano Atlântico, principalmente na costa, e concentrações de gelo da Antártica. “Nós estamos vivendo uma época de intensificação dos extremos. E quando a gente fala intensificação de extremos, a gente fala intensificação de eventos de precipitação extrema, como aconteceu ano passado, e também de falta de precipitação, como está acontecendo agora e também aconteceu em anos anteriores. Tivemos extremos de temperaturas altas e ondas de calor, como a gente passou recentemente aqui no Rio Grande do Sul”, explica a meteorologista Eliana Klering, professora da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).

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A pesquisadora explica que o La Niña foi parcialmente responsável pela estiagem intensa nos anos de 2022 e 2023. “Foi uma seca muito severa. Essas intensificações de eventos extremos já são sinais das mudanças climáticas pelas quais o planeta vem passando. Tivemos ondas de calor muito intensas e precipitação muito baixa”, destaca Eliana Klering, que tem mestrado em Sensoriamento Remoto e doutorado em Fitotecnia, com ênfase em Agrometeorologia, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, acrescentando que, a partir da mudança para o fenômeno El Niño, que favorece a precipitação, houve as chuvas extremas de 2024 e também no segundo semestre de 2023. “Além do El Niño, no ano ano passado, a gente teve uma configuração de distribuição de gelo que permitiu um ingresso maior de esferas frias – o que levou aquele grande volume de chuva”, explica.

A meteorologista da UFPel aponta que, nos primeiros meses de 2025, Rio Grande do Sul retornou para uma situação climática impactada pelo La Niña, com esses sinais de seca severa, que deve perdurar por toda primavera e inverno, chegando até ao outono. “A gente não pode dizer que, no futuro, essas questões vão permanecer dessa forma. Mas, nos últimos anos, foi esse cenário que a gente teve, confirmando os estudos que vêm mostrando que o principal impacto das mudanças climáticas é a intensificação dos extremos – tanto extremos de chuva, quanto de falta de chuva, quanto extremos de altas temperaturas”, frisa a professora.

Especialista em agrometeorologia, Eliana Klering alerta que as altas temperaturas e a estiagem extrema vêm causando impactos profundos na agricultura, em geral, na produção de alimentos e na pecuária. “Isso vem de uma maneira muito severa. O Rio Grande do Sul vem passando por uma fase de aumento da área plantada de soja, e a soja é uma cultura extremamente suscetível à falta de chuva. Os produtores vêm tendo prejuízos reiterados com relação à produção de soja, com os anos de seca. Mas o clima extremo tem impactos em outras lavouras e também na produção da pecuária”, ressalta.

Produtor rural gaúcho em paisagem de seca no sul do estado: escalada de endividamento no campo com estiagens consecutivas (Foto: Fábio Pozzebom / Agência Brasil - 23/02/2023)
Produtor rural gaúcho em paisagem de seca no sul do estado: escalada de endividamento no campo com estiagens consecutivas (Foto: Fábio Pozzebom / Agência Brasil – 23/02/2023)

Agricultores encharcados de dívidas

O engenheiro agrônomo Adrik Richter, do Departamento de Política Agrícola e Assistência Técnica da Federação dos Trabalhadores da Agricultura no Rio Grande do Sul (Fetag-RS), destaca que, dos últimos cinco anos, quatro foram marcados por períodos prolongados de seca em diversas regiões do estado, com graves prejuízos econômicos para os produtores rurais. “Entre 2020 e 2025, foi o epicentro da crise climática no Rio Grande do Sul, com secas extremas em pelo menos alguma localidade do estado. Calculamos uma perda de aproximadamente R$ 20 milhões apenas para a agricultura familiar”, ressalta.

Os decretos de emergência são um grito de socorro de municípios onde grande parte da população vive da agropecuária – e os pequenos produtores são os mais afetados por terem menos recursos para enfrentar os impactos da estiagem sobre as lavouras. “A preocupação maior da Fetag é com o endividamento do agricultor familiar. Ele fica numa encruzilhada entre vender parte da sua terra para pagar dívidas, ou mesmo vender equipamentos agrícolas como um trator, e fazer mais dívidas para financiar a produção e ver o endividamento virar uma bola de neve”, afirma Richter, lembrando que o MInistério do Desenvolvimento Agrário registrou uma marca histórica de endividamento no campo – R$ 17 bilhões em todo o Brasil.

Para o engenheiro agrônomo da Fetag, há uma necessidade de rever a matriz produtiva do estado, de buscar alternativas, de lavouras mais capazes de enfrentar as situações climáticas extremas. “Mas isso não acontece de uma hora para outra, é preciso investimento em assistência técnica e pesquisa. É um processo que leva tempo, talvez 10, 15, 20 anos”, comenta. “Essas secas não são um fenômeno isolado. Elas vêm se repetindo, tornando-se cada vez mais frequentes e intensas. É um problema que precisa ser encarado pelo poder público e pelos produtores rurais”, afirma Adrik Richter. “Nós precisamos de diversificação de culturas para enfrentar as condições extremas, com investimento em culturas mais resilientes à estiagem”, acrescenta.

O agrônomo da Fetag também aponta o impacto da seca sobre a soja: o Rio Grande do Sul registrou um avanço na plantação de soja para áreas novas do estado nos últimos 10 anos. As novas fronteiras agrícolas para a soja no sul e no oeste do estado, particularmente na Região da Campanha e das Missões, foram em áreas com solos menos capazes de armazenar água, mais vulneráveis à seca. “Na Região das Missões, o cultivo de soja foi muito impactado nos últimos anos pela estiagem. As regiões Noroeste e Central também estão sendo muito afetadas, nesses quatro anos pela magnitude da seca, com temperaturas muito altas para o cultivo de grãos em geral”, destaca Richter. “Este ano, já se calcula 30% de perda da safra de soja nas regiões mais afetadas – 17% de perda na média estadual. Em algumas áreas, na Região das Missões por exemplo – perda da safra pode ficar de 70% a 80%”, acrescenta. A Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul (Farsul) informa que, além da soja, haverá perdas significativas na pecuária de leite e corte.

Pelo balanço da Defesa Civil em 20 de abril, o oeste do Rio Grande do Sul é onde há mais cidades atingidas pela estiagem extrema..As regiões da Campanha, Fronteira Oeste e Noroeste têm quase todos os municípios em situação de emergência. O órgão estadual registrou ainda 66 municípios com problemas no abastecimento de água – inclusive para o consumo doméstico – devido à situação de estiagem – pelo menos, cinco cidades estão com racionamento de água.

Açude escavado em propriedade rural em Triunfo: ações como irrigação para enfrentar seca extrema (Foto: Gustavo Mansur / Secom RS)
Açude escavado em propriedade rural em Triunfo: ações como irrigação para enfrentar seca extrema (Foto: Gustavo Mansur / Secom RS)

Irrigar é preciso – mas não é simples

A meteorologista e professora Eliana Klering alerta que seca extrema e as altas temperaturas no Rio Grande do Sul exigem ações para a mitigação de suas consequências na produção rural. “Se eu fosse dar um conselho para algum produtor, para algum agricultor, seria que, na medida do possível, investisse em sistemas de irrigação. O Rio Grande do Sul é favorecido por um lençol freático que nos abastece, o Aquifero Guarani (principal reserva de água doce da América do Sul). Mesmo com a seca extrema na superfície, nossos produtores podem investir, por exemplo, em perfuração de poços artesianos, na utilização dessa água para irrigação. Esses sistemas de irrigação podem ajudar principalmente pequenas propriedades a se tornarem viáveis economicamente”, aponta que sugere ainda, para o enfrentamento da seca extrema, a construção de microaçudes, que facilitariam a captação de água durante eventos extremos de precipitação para o uso agrícola,

O engenheiro agrônomo Adrik Richter, do Departamento de Política Agrícola e Assistência Técnica da Fetag-RS, destaca que há projetos de irrigação para a agricultura familiar, mas são necessários recursos para investimentos que muitas vezes os pequenos produtores não tem disponibilidade. “Mais uma vez, é preciso lembrar da necessidade de crédito mais barato para o agricultor familiar: o ProAgro é importante mas precisa ser ampliado”, afirma. O Proagro (Programa de Garantia da Atividade Agropecuária), voltado para pequenos e médios produtores, garante a exoneração de obrigações financeiras relativas a operação de crédito rural de custeio em caso de “fenômenos naturais, pragas e doenças”.

Outras questões também são lembradas pelo agrônomo da Fetag/RS. “A seca extrema também coloca em xeque o fornecimento de água em geral. Com os anos seguidos de estiagem, falta água para o consumo doméstico, para os animais, para outros usos. Não podemos tirar água para a agricultura e ameaçar todo o ambiente e a biodiversidade”, ressalta Richter, adicionando que também é preciso investir, além da irrigação, na regeneração das nascentes. Ele também reforça a necessidade de barateamento dos seguros do Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar), que oferece um seguro agrícola, para proteger os agricultores familiares contra riscos de perdas na produção devido a eventos climáticos. “É preciso considerar a urgência de enfrentamento das consequências da crise climática”, afirma o engenheiro agrônomo.

A meteorologista Eliana Klering lembra que, em 2024, em discussões após os temporais, ela já frisava a importância que “a gestão pública investisse seus recursos, não somente para a recuperação de áreas degradadas em função do chuva extrema, mas também em sistemas de irrigação, que provavelmente esse ano seria um ano de déficit de chuva”. Para a professora da Ufpel, os gestores precisam priorizar o planejamento para enfrentar os eventos climáticos. “É preciso que o comando de decisão leve mais a sério o planejamento. A mitigação do impacto não pode ser esquecida, mas é bem importante que se leve em conta esses cenários que se aproximam. É preciso atenção a esse cenário de seca extrema – a gente já vem de um período de déficit hídrico, de baixos níveis de chuva e isso vai ser intensificado”, alerta.

Os cenários de seca não são os únicos que precisam ser levados em consideração no planejamento. “A tendência das chuvas daqui pra frente é que elas sejam muito mal distribuídas. Vamos ter chuvas intensas em curtos espaços de tempo. Isso favorece esses eventos de inundação, escancara os problemas de drenagem urbana que afetam a mobilidade, afeta também a agricultura também, porque chove muito e em curtos espaços de tempo depois são vários dias sem eventos de precipitação. Essa é a tendência: essa irregularidade”, explica a meteorologista, frisando que “é pouco provável” um evento de chuva extrema tão impactante como o de 2024 nos próximos anos, mas não se descarta totalmente que isso volte a acontecer.

A meteorologista Eliana Klering alerta ainda a necessidade de mudanças drásticas na sociedade para evitar o agravamento da crise climática. “Se a sociedade não passar por uma transformação, a gente está indo para um cenário que realmente não tem mais volta. A gente tem que ter hábitos de consumo mais conscientes, tem que investir em geração de energia limpa. E os governos atualmente não se preocupam com isso. Sempre se colocam os interesses econômicos à frente da questão ambiental; só que, sem a gente ter o meio ambiente do nosso lado, nada vai para frente. A gente não vai conseguir produzir mais alimento e vai morrer de fome. A sociedade precisa entender que a vida das próximas gerações está nas nossas mãos”, desabafa.

Oscar Valporto

Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade

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