ODS 1
Entre o discurso verde e as mãos sujas de óleo
Exploração de petróleo na foz do Amazonas pode ser a gota d´água para entornar o caldo de um governo correto, mas que ainda pouco confiável
A última semana foi rica em sinais de que o Brasil caminha ou tenta caminhar para uma descarbonização maior da sua economia. Pelo menos no discurso. Na segunda-feira, dia 18, em um evento na Bolsa de Valores de Nova York, os ministros da Fazenda, Fernando Haddad, e do Meio Ambiente, Marina Silva, garantiram que o país estaria pronto para duplicar a sua produção de energia limpa e exportar produtos verdes com valor agregado. Na terça-feira, dia 19, em discurso na Assembleia Geral das Nações Unidas, o presidente Lula disse que “a mais ampla e ambiciosa ação coletiva da ONU voltada para o desenvolvimento – a Agenda 2030 – pode se transformar no seu maior fracasso”. E foi mais longe: “a maior parte dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável caminha em ritmo lento. O imperativo moral e político de erradicar a pobreza e acabar com a fome parece estar anestesiado”.
Leu essa? Lula brinca de roleta-russa com a Amazônia e dá tiro no pé
Quem acompanha a cobertura dos temas socioambientais aqui no #Colabora sabe que o debate sobre os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) nasceu no Brasil, em 2012, durante a Rio+20, e que eles foram aprovados por 195 países, na ONU, em 2015, com metas que deveriam ser cumpridas até 2030. Logo, estamos mais ou menos no meio do caminho. Temos apenas sete anos para cumprir metas singelas como erradicar a pobreza (ODS 1), acabar com a fome (ODS 2), garantir saúde e educação de qualidade para todos (ODSs 3 e 4) – e não apenas para quem pode pagar um plano de saúde ou uma escola particular -, além, é claro, de tomar todas as medidas necessárias para combater a crise climática.
Lula levou para o discurso da ONU um tema que é importantíssimo para o mundo, sensível, mas que vem sendo negligenciado há algum tempo no Brasil. Foi um desastre no governo passado, não foi assunto na campanha eleitoral e nem neste início de governo. Somente no último dia 15 de setembro o governo finalmente criou a Comissão Nacional para os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, mas ainda sem composição e papeis claros. Se a equipe de transição tivesse tido como Norte a Agenda 2030, o parágrafo anterior não precisaria ter sido escrito e todos teriam uma ideia melhor da distância que nos separa do cumprimento das metas. Saberiam, por exemplo, que dois indicadores fundamentais, a mortalidade materna e a mortalidade infantil, estão longe de serem alcançados.
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Veja o que já enviamosEm 2019, a taxa de mulheres que morriam por conta de complicações do parto era de 55,31 por 100 mil nascidos vivos. Em 2020 foi para 71,97 e em 2021 chegou a 107,53 mortes por 100 mil nascidos vivos. Para quem gosta de comparações, na Europa esse índice é de 13 para cada 100 mil. Já a mortalidade infantil chegou a ser um exemplo de política pública no Brasil, entre 1990 e 2015, segundo o IBGE, houve uma queda de 47,1 para 13,3 óbitos infantis para cada mil nascidos vivos. Nos últimos anos o índice voltou a subir e hoje estamos em 14,4. A meta do Brasil, para 2030, é de 5 mortes para cada mil. Três ações básicas são capazes de melhorar muito esses números: um bom acompanhamento das mães, antes e depois do parto, vacinas e saneamento.
Certamente não é correto jogar nas costas de um governo que tem nove meses de vida, a conta de metas que deveriam estar sendo buscadas desde 2015, e que foram totalmente ignoradas pelo governo Bolsonaro. Aliás, essa e uma questão relevante: até quando vamos julgar ou avaliar o governo Lula 3 com os olhos de quem ainda comemora (e muito) ter se livrado do governo Bolsonaro 1 (e único)? Em Nova York, Lula surpreendeu a todos prometendo criar um ODS 18 para chamar de seu, que buscaria alcançar a igualdade racial no país. Ótimo. Mas nada indica que essa intenção se transforme na indicação de uma mulher negra para a vaga que ficará disponível no STF. Já os passadores de pano dirão que, pelo menos, não teremos novos ministros “terrivelmente evangélicos” e com visões obscurantistas de mundo. Será?
Trocamos a Ana Moser pelo Fufuca, isso é muito ruim. Não, essa é a arte do possível, dirão alguns, pelos menos estamos negociando. O governo anterior estava nas mãos do Centrão.
A economia está melhorando, os juros estão caindo. É verdade, mas ainda não será dessa vez que vamos taxar as grandes fortunas.
O Brasil voltou ao cenário mundial, está no comando no G-20, dos Brics, Lula vem sendo aplaudido seguidamente em Paris, em Nova York, na COP, está com um discurso bom e socioambiental coerente. Sim, tudo é verdade.
Mas e a exploração de petróleo na foz do Amazonas? Trocar a Ana Moser pelo Fufuca foi ruim, mas não é tão grave. Ter mais um homem branco no Supremo também não é legal, mas… Uma gestão econômica meio liberal não era o desejável, mas vamos em frente. Já investir em combustíveis fósseis, em pleno século XXI, em plena Amazônia, me parece um pouco demais, não? Essa pode ser a gota d`água (ou de óleo) que vai entornar o caldo.
Formado em Jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ. Foi repórter de Cidade e de Política, editor, editor-executivo e diretor executivo do jornal O Globo. Também foi diretor do Sistema Globo de Rádio e da Rádio CBN. Ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo, em 1994, e dois prêmios da Society of Newspaper Design, em 1998 e 1999. Tem pós-graduação em Gestão de Negócios pelo Insead (Instituto Europeu de Administração de Negócios) e em Gestão Ambiental pela Coppe/UFRJ. É um dos criadores do Projeto #Colabora.