ODS 1
Barca Literária quer ter voz ativa para discutir crise climática e racismo na COP30
Biblioteca comunitária em Belém resiste ao preconceito, à violência e ao descaso do poder público e prepara jovens líderes para o debate
A Barca Literária é uma biblioteca comunitária itinerante e periférica, localizada na Vila da Barca, em Belém, uma das maiores comunidades em palafitas da América Latina. A vila também é um território ribeirinho-urbano, com mais de cem anos de existência, no bairro do Telégrafo, às margens da Baía do Guajará. “Tem gente aqui que sai todo dia para pescar, então a Vila é um território ribeirinho. Uma das nossas preocupações aqui é o combate à crise hídrica e energética, porque, se falta a água ,a gente tem que usar bomba para puxar água e isso aumenta a conta da energia”, explica Suane Barreirinhas, 36 anos, comunicadora popular, cineasta e orientadora na Barca.
Leu essa? ‘Estamos diante de um colapso ambiental de proporções gigantescas’
Suane faz parte da Comissão Solidária da Vila e ministra aulas sobre as mudanças climáticas nas duas últimas segundas-feiras do mês, quando tem debatido com os alunos sobre o racismo ambiental, o estatuto da criança e do adolescente e sobre a crise hídrica na Amazônia. “A nossa juventude esteve nos Diálogos Amazônicos e discursou para a ministra Anielle Franco. Foi muito bacana levar os meninos e as meninas para viver essa experiência, conta a orientadora da biblioteca, que ajudou a roteirizar e codirigiu o filme Realidades da Vila, exibido na Mostra Amazônia em Telas, a partir do projeto Telas em Movimento junto com a Barca Literária.
A Vila da Barca sempre foi um símbolo da cultura periférica de Belém e geralmente está relacionada à pobreza, à miséria e à criminalidade, mas trabalhar para superar o estereótipo e tornar-se uma referência, comoopinião de destaque nas discussões sobre o clima, através da voz das lideranças protagonistas da Biblioteca Itinerante Barca Literária.
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Veja o que já enviamosIdealizada por um grupo voluntário de profissionais de educação e de artes, a biblioteca promove diálogos para debater a realidade da periferia através de projetos como o Lambe-Lambe – Manifesto de Re-Existência e do livro Periferia: Imagem, Centro e Afeto, contemplado com o Prêmio FCP (Fundação Cultural do Pará) de Incentivo à Arte e à Cultura. “Este livro foi um processo coletivo de todos os adolescentes aqui da Barca Literária e o resultado dessa experiência está no livro e nas paredes da Vila que você vê quando caminha por aqui”, explica Emily Raiane, de 17 anos, que conta como foi a produção da obra lançada recentemente reunindo um pouco das história de personagens e moradores conhecidos da Vila da Barca.
Projetos como esse vêm ampliando o olhar da juventude periférica para as mudanças climáticas e a crise ambiental, assim como seu papel na apropriação da COP30, em 2025, como um local de fala da periferia. A comunidade – que resiste à segregação urbana, ao preconceito, à violência, ao esquecimento e ao descaso político – prepara suas lideranças para a Conferência do Clima em Belém e para o grande debate ambiental que pode ser um divisor de águas nas discussões mundiais sobre combustíveis fósseis, fontes renováveis de energia, alternativas sustentáveis para frear a degradação do planeta e o papel que cada nação e cada indivíduo vai desempenhar.
Apesar de situada em um dos bairros com o metro quadrado mais caro de Belém do Pará, a Vila da Barca sofre com o esquecimento do poder público, mesmo estando em uma localização privilegiada. Entre os principais problemas vividos pela população estão a falta de coleta de lixo, coleta seletiva inexistente, a falta da manutenção das pontes e estivas de madeira, a falta de manutenção das praças e campos de futebol, que vêm se tornando lixões a céu aberto e áreas livres para o tráfico, os constantes vazamentos de água e a histórica falta de saneamento básico. Outra questão crucial para os moradores é o furto de fios e cabos elétricos, que deixam a comunidade sem energia por dias e o mal funcionamento da iluminação pública em pontos específicos da Vila, um problema que contribui para o crescimento do número de usuários de drogas nos arredores da comunidade.
Suane Barreirinhas explica que, além de todos esses problemas, a comunidade ainda precisa resistir à especulação imobiliária que chega para forçar uma expulsão territorial. “Algumas das ruas estão deixando de ser do Bairro do Telégrafo para se tornarem Umarizal, bairro vizinho, mais valorizado. Então chega a especulação imobiliária para tirar a gente do nosso lugar”, conta a comunicadora e cineasta.
Protagonista do filme Realidades da Vila, Ana Luíza, 16 anos, fala sobre a experiência diante das câmeras e sobre o preconceito que sofre ao sair do território e se identificar como moradora da Vila até para moradores de outras realidades periféricas: “Foi uma experiência muito boa participar do filme porque eu me desenvolvi mais, principalmente na forma como me expresso. Exercitei a fala e aprendi a enfrentar o preconceito de morar aqui. Quando a gente vai para outro lugar e fala que é da Vila da Barca as pessoas já olham de outro jeito pra nós, mas hoje isso já não me incomoda e eu sei como rebater”, afirma a jovem.
Vitória dos Santos Martins,15 anos, também cita o preconceito como um dos principais problemas enfrentados quando debate com quem é de fora. “A ignorância daqueles que não conhecem o território, mas falam mal da gente, se torna um problema que afeta a gente além daquela discussão”.
Com uma vasta oferta de títulos que variam entre clássicos e escritores da atualidade, a Barca Literária permite que crianças e adolescentes já consigam identificar e reconhecer nomes como o da linguista e escritora brasileira Conceição Evaristo, uma das mais importantes representantes do movimento pós-modernista do Brasil. Outro nome popular entre os jovens é do ator, poeta, professor e pastor Henrique Vieira que tem uma forte atuação na defesa dos direitos humanos. “Hoje eu conheço mais coisas que antes não conhecia, principalmente sobre as mudanças climáticas e o racismo ambiental. Na escola onde eu estudo não há discussão sobre as mudanças climáticas. Nunca se falou sobre isso. A primeira vez que ouvi falar sobre isso foi aqui”, comenta, orgulhosa”, Gisele Lobato Lima, 14 anos, uma que tem o pastor Henrique, hoje também deputado federal, como um de seus autores preferidos.
Com a crescente popularidade da iniciativa comunitária, lideranças da comunidade vêm colecionando convites para eventos sobre a Amazônia e sobre o clima. No dia 16 de dezembro, a Barca Literária esteve no VI Encontro das Juventudes Amazônicas, promovido pelo Instituto Universidade Popular, no Solar da Beira no Ver-o-Peso. Na ocasião, a entidade divulgou um manifesto com demandas relativas ao território, tendo como alvo autoridades da Prefeitura de Belém e das secretarias do estado. “A juventude da Vila da Barca deseja que o poder público realize um grande mutirão de limpeza retirando todo o lixo debaixo das pontes, limpando as praças e colocando pontos de recolhimento de lixo, incentivando a população a limpar e não sujar”, destaca trecho do documento, elaborado pelos integrantes da biblioteca, com a clara a preocupação com a crise dos resíduos sólidos, hoje o principal problema da administração pública e que impacta principalmente as comunidades mais pobres da região metropolitana de Belém.
Outro grande problema citado no manifesto é a falta de respeito de agentes da segurança pública. “A polícia entra com a arma na mão e vai passando apontando arma em cima de mães com seus filhos e de idosos na porta de suas casas. Não há respeito e nunca houve”, destaca o manifesto. Muitos adolescentes da Vila da Barca citaram a violência e o despreparo dos policiais nas abordagens dentro da comunidade.
Hoje, a Barca Literária constrói uma discussão sobre o futuro dessa juventude como parte do planeta, colocando em pauta assuntos como a crise hídrica e o fim dos rios voadores, a energia eólica, as hidrelétricas e a necessidade de se plantar mais árvores em áreas periféricas. A biblioteca itinerante disponibiliza os livros necessários para a base dessas discussões através da doação de equipamentos e obras de autores famosos. A iniciativa também distribui materiais produzidos na própria Vila da Barca, com textos que circulam pelas palafitas e que trazem uma visão de mundo mais consciente em um território ribeirinho ameaçado pelas mudanças extremas do clima. Uma comunidade ameaçada sim, mas que se impõe diante do descaso do poder público através do conhecimento de sua própria realidade em um movimento coletivo pelo direito a viver e não apenas sobreviver. Ô Vila da Barca Boa (expressão usada no território para responder a situações boas e outras nem tanto).
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João Paulo Guimarães, paraense de 43 anos, é foto documentarista e
foto jornalista freelancer para as agências AFP e Pública e para os sites Jornalistas Livres, Metrópoles e Projeto Colabora.