ODS 1
As viagens de Jeff Bezos e a crise climática
Enquanto a Europa sofre com as enchentes, a África padece com o aumento da fome e a Califórnia arde em chamas, bilionários brincam de deuses e astronautas
Como já disse Elton John, no clássico Rocket Man, “Marte não é o melhor lugar para criar os seus filhos”. Então, por que diabos todos os noticiários do mundo seguem dando destaque para essa batalha entre três velhos bilionários para saber quem tem o pênis maior. Sim, porque no fundo é disso que se trata. Richard Branson, dono da Virgin Galactic, chegou primeiro, voou antes. Jeff Bezos, dono da Amazon, voou mais alto. Enquanto o sul-africano Elon Musk investe mais e sonha em colonizar Marte. A que preço? Esse mercado de viagens espaciais comerciais, exploração privada de outros planetas e missões de colonização gira em torno de US$ 200 bilhões (cerca de R$ 1 trilhão), mas o custo ambiental e climático pode ser muito maior.
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Bezos tem se vangloriado de que os seus foguetes Blue Origin são mais verdes do que a unidade VSS de Branson. O Blue Engine 3 (BE-3) que, na terça-feira (20 de julho), lançou o empresário, seu irmão e dois convidados ao espaço, usou propelentes de hidrogênio líquido e oxigênio líquido. O voo de Branson usou um composto de combustível sólido à base de carbono, polibutadieno e um oxidante líquido. Já o SpaceX Falcon, de Elon Musk, usa querosene líquido e oxigênio líquido. Se você, assim como eu, não entende nada de combustíveis, basta saber que a queima de todos esses propelentes e afins gera gases de efeito estufa e poluentes atmosféricos. Muito? Entre 50 e 100 vezes mais, por passageiro, do que um voo entre Paris e Nova York, por exemplo. Vale frisar que só a Virgin Galactic ameaça oferecer 400 voos anuais para os poucos privilegiados que podem pagar US$ 250 mil por cada passagem.
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Veja o que já enviamosMas tão grave quanto a vaidade embutida nesse conflito fálico entre velhos empresários e os seus consequentes impactos ambientais é a absoluta falta de senso crítico, senso de oportunidade ou mesmo de bom-senso. Em sua conta no Twitter, Elon Musk, fundador da Tesla disse: “Aqueles que atacam o espaço, talvez não percebam que ele pode representar a esperança para tantas pessoas”. Pode? Para quantas pessoas?
Em 2019, durante um discurso para anunciar a sonda lunar da Blue Origin, Jeff Bezos foi ainda mais direto: “Podemos ter trilhões de humanos no sistema solar, incluindo milhares de Mozats e Einsteins”. Quem vai querer conviver com trilhões de humanos? Já não basta a bagunça que fizemos e fazemos na Terra? Em seu pronunciamento, Bezos passou rapidamente por questões cruciais como pobreza, fome, falta de moradia, poluição e pesca excessiva. Resumiu tudo na expressão: “problemas imediatos urgentes”. Em seguida falou sobre o que seria, para ele, a verdadeira crise enfrentada pela humanidade:
“Um problema fundamental e de longo alcance é que não teremos mais energia na Terra. Não queremos parar de utilizar energia, mas ela é insustentável. A única forma de evitar cobrir toda a superfície da Terra com células solares é explorar além do nosso planeta natal. Se nos mudarmos para outras partes do sistema solar, teremos recursos ilimitados”
Em resumo, no sonho futurista de Jeff Bezos, a Terra seria uma espécie de condomínio residencial, com algumas poucas indústrias leves. Já a indústria pesada e poluente seria levada para o espaço, que viraria uma versão da China nos seus piores momentos. Nosso lixo jogado fora, literalmente. Segundo Bezos, tudo isso para “garantir um futuro de dinamismo e crescimento”. Vale registrar que nestes quase dois anos de pandemia e quarentena, Bezos e Musk se revezaram na lista dos mais ricos da Forbes. A riqueza de Bezos praticamente dobrou.
Em artigo no site “The Conversation”, o matemático e filósofo inglês Tim Jackson explica que a “retórica espacial dos super ricos mostra uma mentalidade antiga, que alguns diriam ser uma característica fundamental do capitalismo. A viagem espacial seria uma extensão natural da nossa obsessão com o crescimento econômico”. O problema é que o crescimento a qualquer custo e a riqueza obscena para uns poucos talvez não seja mais tão primordial, especialmente no mundo pós-covid-19. Segue Tim Jackson: “Pergunte às pessoas o que é mais importante em suas vidas. Dificilmente teremos uma lista diferente desta: “saúde para si próprios, saúde para os amigos e familiares e saúde também – às vezes – para o frágil planeta em que vivemos e de cuja saúde dependemos muito”.
Neste mesmo momento em que Bezos, Musk e Branson batalham para superar a “fronteira final”, a Europa sofre com enchentes que antes pareciam afetar apenas as nações pobres; A Califórnia volta a enfrentar grandes incêndios que expulsam moradores de suas casas; e a África bate novos recordes de fome. Três regiões diferentes do planeta vítimas de um mesmo mal: o descontrole climático.
Quando a vida e a saúde estão em jogo, a luta insana por riqueza e poder talvez pareça um pouco menos charmosa. A família, o convívio saudável com os amigos e um certo senso de propósito ganham mais relevância. Lições da pandemia, sem dúvida. Mas itens que sempre foram fundamentais para uma prosperidade verdadeiramente sustentável. Já passou da hora de substituir o consumismo frenético por uma economia de cuidado, relacionamento e significado.
Para pensar:
“Estamos sendo persuadidos a gastar o dinheiro que não temos, em coisas que não precisamos, para criar impressões que não duram, em pessoas que não nos importam”
Tim Jackson, matemático e filósofo inglês
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Formado em Jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ. Foi repórter de Cidade e de Política, editor, editor-executivo e diretor executivo do jornal O Globo. Também foi diretor do Sistema Globo de Rádio e da Rádio CBN. Ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo, em 1994, e dois prêmios da Society of Newspaper Design, em 1998 e 1999. Tem pós-graduação em Gestão de Negócios pelo Insead (Instituto Europeu de Administração de Negócios) e em Gestão Ambiental pela Coppe/UFRJ. É um dos criadores do Projeto #Colabora.