Agronegócio provoca exaustão ambiental e desertificação

Pesquisador da ActionAid alerta que modelo de produção - baseado na monocultura e voltado para exportação - degrada o solo e exaure recursos hídricos

Por Oscar Valporto | ODS 13ODS 2 • Publicada em 28 de abril de 2022 - 09:27 • Atualizada em 29 de outubro de 2022 - 11:57

Seca no sertão de Alagoas: estado tem a maior porcentagem de terra atingida pela desertificação (Foto: Custodio Coimbra)

De acordo com dados do Levantamento Sistemático da Produção Agrícola, feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) e divulgado em abril, a safra brasileira de grãos – principalmente, soja, milho e arroz – deve ser recorde com produção de 258,9 milhões de toneladas em 2022. A área colhida em 2022 deve ser de 71,8 milhões de hectares, o que representa um crescimento de 4,7% em relação a 2021. Os seguidos recordes da produção agrícola, porém, escondem graves problemas ambientais e sociais. “Esse modelo de produção provoca uma exaustão ambiental: exaure recursos da natureza, como a água, degrada o solo, provoca desertificação”, afirma o pesquisador Júnior Aleixo, especialista em Justiça Climática da ActionAid, organização internacional de combate à pobreza presente em 43 países – desde 1999 no Brasil.

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Em março, Aleixo e e sua colega Jéssica Siviero analisaram, em nota técnica, o avanço da crise hídrica no Brasil e sua relação com o modelo de produção. “Esse modelo agroindustrial baseado na exportação, no uso extensivo da terra, na monocultura, no uso intensivo de agrotóxicos, ou defensivos agrícolas como eles preferem, causa esta exaustão do meio ambiente”, alerta o pesquisador. “Essa super exploração dos recursos da natureza é o primeiro passo para a desertificação. Fica cada vez mais difícil de recuperar a água e o solo”, acrescenta.

Este atual modelo agroindustrial, em todos os aspectos, é insustentável. Este modelo, exportador e de monocultura extensiva, degrada o solo, acelera a crise hídrica, não produz alimentos de verdade

Júnior Aleixo
Pesquisador da ActionAid

Os pesquisadores lembram que, entre 12% e 18% de toda água doce do mundo, esteja em território brasileiro e, mesmo assim, quase 100 milhões de pessoas convivem com a falta de acesso à água ou em situações de insegurança e risco hídrico. “Essa crise hídrica, que está se tornando permanente, está diretamente associada à exaustão ambiental e a degradação do solo provocada por este modelo de produção agroindustrial”, afirma Júnior Aleixo, lembrando que, principalmente em áreas do Cerrado, as populações rurais e os pequenos produtores familiares convivem, cada vez mais, com a com a escassez de água para suas cultivos e criações e também com a desertificação.

A nota técnica da ActionAid alerta que “agricultura de larga escala voltada à exportação vem esgotando os nutrientes dos nossos solos”, frisando a associação do agronegócio com mineradoras e madeireiros, para derrubar florestas e matas nativas. “Esse modelo, que se baseia na superprodução e na super extração de matérias-primas, polui as águas e provoca sérios questionamentos sobre qual será o resultado futuro
de tamanha destruição: o que acontecerá com nossas águas?”, questionam os pesquisadores no documento.

Júnior Aleixo destaca ainda a entrada de novos atores econômicos neste setor agroindustrial, ao lado dos tradicionais proprietários de terras para agricultura e pecuária. “São fundos de investimento, fundos de pensão, instituições financeiras, empresas de outras áreas da economia, nem sempre relacionadas à agropecuária, que buscam a maximização de seus lucros sem preocupação com impactos futuros”, afirma o pesquisador, formando em Relações Internacionais, mestre e doutorando em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pela UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro).

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Comunidade Tauá, na região do Matopiba, em Tocantins, sofre ameaças de grileiros. Foto de Thomas Bauer/ ISPN
Comunidade Tauá, na região do Matopiba, em Tocantins: modelo de agronegócio provoca exaustão ambiental no Cerrado (Foto: Thomas Bauer/ ISPN)

Exaustão ambiental

No estudo da ActionAid, os pesquisadores usam o exemplo do que vem ocorrendo na bacia do Rio Formoso, no Tocantins, com um projeto de monocultivos irrigados. “Muitas barragens foram construídas nos rios Formoso e Urubu – nas chamadas regiões de elevatórias –, onde também foram instaladas 98 bombas para a captação de água para atender as demandas do agronegócio na região”, apontam no documento. Júnior Aleixo acrescenta que essa água toda é desviada para irrigar a lavoura extensiva e pequenos agricultores enfrentam a escassez de água para plantar e até para beber. “Esse tipo de captação causa danos sociais e ambientais, degrada o solo na bacia onde a irrigação não chega e afeta diretamente povos indígenas como Krahô-Takaywrá e Krahô Kanela”, argumenta o pesquisador.

O caso de Rio Formoso foi um dos 15 analisados pelo Tribunal Permanente dos Povos (TPP), instância internacional que procura reconhecer, visibilizar e ampliar as vozes dos povos vítimas de violações de direitos. O TPP foi criado para suprir a ausência de uma jurisdição internacional competente que se pronuncie sobre os casos de violações: durante dois meses, seus especialistas se debruçaram sobre casos no Cerrado. O TPP destacou que Projeto Rio Formoso consiste na implementação de infraestruturas de irrigação por inundação para o desenvolvimento de monocultura de arroz e soja transgênica, baseadas no intenso consumo de água e no uso de agrotóxicos. “Milhares de hectares de terras públicas foram doados aos produtores do agronegócio, retirando-os, portanto, da condição de bem comum, e transferindo-os para o estoque comercializável de terras privadas”, afirma o documento final do TPP.

Júnior Aleixo também cita o caso de Correntina e outras cidades no oeste da Bahia, onde pequenos agricultores, ribeirinhos e pescadores sofrem com o avanço do agronegócio sobre as águas que servem de fonte de renda para essa população local. “São milhões, bilhões de litros de água capturados pela agricultura em larga escala em detrimento das comunidades tradicionais, que sofrem com a escassez hídrica, com a degradação do solo, com a exaustão ambiental”, destaca o pesquisador.

O documento da ActionAid lembra que o modelo usado no Tocantins e no Oeste da Bahia, com o direcionamento da água para produção de monocultura para exportação tem como consequência “o desabastecimento de rios e aquíferos necessários para a produção alimentar doméstica, agravando a insegurança hídrica e alimentar”. Nos dois exemplos, o modelo agroindustrial utiliza pivôs centrais, sistemas que demandam enorme captação de água e aplicação intensiva de energia elétrica. “Esse sistema simula a água da chuva nas produções e integra a aplicação de agrotóxicos nas mesmas lâminas de distribuição, aumentando a contaminação dos solos e o escoamento de agrotóxicos para rios e solos em outras áreas”, alerta a nota técnica.

Fotogaleria do semiarido. Foto de Mirian Fichtner
Típica família sertaneja – muitos filhos e muitos netos vivendo na mesma casa – no semiárido: desertificação avança pelo Nordeste (Foto: Miriam Fichtner)

A caminho da desertificação

A exaustão ambiental constatada em muitos pontos do Cerrado brasileiro é o primeiro passo no processo de desertificação que atinge, principalmente, o semiárido nordestino. O estudo da ActionAid cita o relatório do IPCC (Intergovernamental Panel on Climate Change, Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, publicado em 2021, que destaca o processo de desertificação do semiárido brasileiro. “As mudanças climáticas estão acelerando o processo de desertificação, mas ele também está diretamente ligado ao modelo de produção agrícola, que agrava a escassez hídrica no semiárido”, explica Júnior Aleixo.

Essa história de celeiro do mundo é uma falácia. A maior parte da produção agrícola brasileira não vai para alimentação da população. As lavouras de soja e milho são voltadas para alimentar o gado; o foco da produção de cana de açúcar é o biocombustível

Júnior Aleixo
Pesquisador da ActionAid

O pesquisador destaca que o relatório do IPCC indica que Alagoas é o estado brasileiro com maior parte de seu território (32,8%) atingida pela desertificação. De acordo com estudo do Laboratório de Análise e Processamento de Imagens de Satélites (Lapis) da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), o fenômeno vem avançando no Agreste e no Sertão: a área mais afetada é a região central de Alagoas. Esse processo, explicam os pesquisadores da Ufal, se deve ao histórico de ocupação dos solos dessas áreas, com atividades econômicas que acarretaram em maior nível de degradação – como a monocultura da cana de açúcar.

O processo de desertificação tem ligação com a superexploração do solo e ao uso inadequado da terra. Outros estados nordestinos têm grande parte do seu território atingido pela desertificação: Paraíba (27,7%), Rio Grande do Norte (27,6%), Pernambuco (20,8%), Bahia (16,3%) e Sergipe (14,8%). “No caso de exaustão ambiental, é possível reverter o processo e recuperar o solo. A desertificação é irreversível”, alerta Júnior Aleixo, lembrando que o relatório do IPCC prevê que a Região Nordeste será muito impactada pela redução do volume de chuva: diminuição de 22% do número de chuvas, reduzindo drasticamente a vazão das bacias hidrográficas e dos rios.

Estrutura fundiária

O pesquisador da ActionAid chama a atenção para outro aspecto da produção agrícola brasileira. “Nossa estrutura fundiária tem historicamente um modelo concentrador que, com os lucros gerados no agronegócio, tornou essa estrutura cada vez mais desigual”, afirma Aleixo, destacando que há uma “clara” desigualdade, para frisar o racismo ambiental.

A nota técnica destaca que o Brasil tem uma das estruturas fundiárias mais concentradas do mundo: de acordo com o Censo Agropecuário de
2017, os 10% maiores estabelecimentos agropecuários brasileiros controlam 73% das terras. Essa desigualdade torna-se escandalosa com o recorte racial e étnico: pessoas brancas dominam 208 milhões de hectares, quase 60% de toda a área utilizada para agropecuária. O censo também revela a desigualdade de gênero: enquanto homens são chefes de 81% dos estabelecimentos agropecuários, mulheres comandam apenas 9% deles.

Júnior Aleixo também critica a estratégia usada pelo agronegócio brasileiro de se apresentar como grande produtor de alimentos. “Essa história de celeiro do mundo é uma falácia. A maior parte da produção agrícola brasileira não vai para alimentação da população. As lavouras de soja e milho são voltadas para alimentar o gado; o foco da produção de cana de açúcar é o biocombustível”, ressalta o pesquisador.

A nota técnica da ActionAid reforça essa visão crítica. “Essa produção monocultora promove estagnação e redução na produtividade nas áreas de produção alimentar, como os cultivos de feijão e mandioca. Além de não promover segurança alimentar porque está restrito a poucos produtos, que não são voltados especificamente para a alimentação, as grandes monoculturas agrícolas causam desmatamento, assoreamento de rios, perda total e irreversível da vida biológica nos solos, redução da diversidade alimentar para os animais locais, empobrecimento dos solos e contaminação das águas”, destaca o documento.

Aparecida e a cisterna de produção. Foto de Mirian Fichtner
Cisterna no semiárido do Rio Grande do Norte: programa para levar água ao sertão está encolhendo (Foto: Mirian Fichtner)

Modelo insustentável

O pesquisador Júnior Aleixo acredita que somente uma mudança estrutural no modelo de produção agrícola pode frear a exaustão ambiental e a desertificação. “Com esse modelo de produção agrícola, não é possível preservar os recursos naturais, nem garantir a alimentação dos brasileiros. É impossível manter essa produção, nessa escala, com esse foco exportador, sem degradar o solo”, afirma o pesquisador. “É preciso mudar todo o modelo, mas, para isso, é preciso realmente vontade política. Precisamos mudar o foco para garantir a segurança alimentar da população e não o superávit na balança comercial e o lucro dos grandes empresários agroindustriais”, acrescenta.

Na nota técnica, os pesquisadores da ActionAid indicam alternativas para enfrentar a crise hídrica e fortalecer um novo modelo de produção agrícola. Eles lembram o do Programa Um Milhão de Cisternas, que, em 2017, ganhou prêmio de Política do Futuro da ONU como melhor iniciativa de combate à desertificação, mas ressaltam o desmonte paulatino da iniciativa. “No Semiárido, mesmo com a seca alarmante, o governo federal vem reduzindo cada vez mais o ritmo deste programa, que já atingiu o pior desempenho desde 2003, quando foi criado”, alertam os autores. Em 2019, foram entregues 26.460 equipamentos, até então a quantidade mais baixa em um ano; em 2020, foram 7.190 cisternas, número 73% menor que no ano anterior; em 2021, o programa alcançou novo recorde negativo com a entrega de apenas 4.205 mil cisternas.

Os pesquisadores defendem ainda a transição agroecológica: uma forma de agricultura verdadeiramente sustentável, sem qualquer tipo
de agrotóxico, praticada por famílias rurais, indígenas, quilombolas, povos tradicionais e, especialmente, por mulheres. Este tipo de produção agropecuária, de acordo com o documento, protege o solo e as espécies locais, gerando alimentos saudáveis o ano inteiro, até mesmo em localidades com longos períodos de seca, como o semiárido. “O MST é considerado o maior produtor de arroz orgânico da América Latina: isso mostra que novos modelos são possíveis”, afirma Júnior Aleixo.

O pesquisador alerta que uma série de inciativas são necessárias para avançar na mudança do modelo: investir em produção agroecológica, retomar programas como o Um Milhão de Cisternas, para o acesso à agua, o PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar) e o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), para reforçar a agricultura familiar, priorizar fontes de energia verdadeiramente limpas e renováveis, e barrar o uso irrestrito dos recursos hídricos para produção de monoculturas de exportação. “Este atual modelo agroindustrial, em todos os aspectos, é insustentável. Este modelo, exportador e de monocultura extensiva, degrada o solo, acelera a crise hídrica, não produz alimentos de verdade. É uma questão de escolha: ou manter esse modelo insustentável ou preservar o solo e água e proteger os recursos naturais”, argumenta Júnior Aleixo.

Oscar Valporto

Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade

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