Povos do Xingu produzem na floresta sem desmatar

Extrativistas da comunidade Rio Novo quebram castanhas-do-pará recém cozidas, durante o processo de retirada das cascas, na Mini Usina de Tratamento de Produtos Florestais Não-Madeireiros do Rio Novo, na Reserva Extrativista do Rio Iriri, no Pará (Foto: Foto de Lilo Clareto/ ISA)

Na Terra do Meio, em Altamira, extrativistas e indígenas fazem parceria com grandes empresas, gerando renda para 1.500 pessoas

Por Felipe Porciuncula | ODS 12 • Publicada em 12 de abril de 2021 - 09:36 • Atualizada em 27 de agosto de 2021 - 14:29

Extrativistas da comunidade Rio Novo quebram castanhas-do-pará recém cozidas, durante o processo de retirada das cascas, na Mini Usina de Tratamento de Produtos Florestais Não-Madeireiros do Rio Novo, na Reserva Extrativista do Rio Iriri, no Pará (Foto: Foto de Lilo Clareto/ ISA)

Um velho costume amazônico de escambo inspirou o surgimento da Rede de Cantinas da Terra do Meio, entre os rios Xingu, Caruá e Iriri, em Altamira (PA), o maior município em extensão do país — só a Terra do Meio tem uma área total de 8,5 milhões de hectares, praticamente o tamanho de Santa Catarina, que abriga os povos Xipaya, Curuáya, Xikrin, Yudjá e Arara, além dos beiradeiros das reservas extrativistas Rio Xingu, Rio Iriri e Riozinho do Anfrísio. 

O extrativismo para o próprio consumo sempre foi uma prática dos povos amazônicos. O problema era que quando queriam vender, sofriam na mão dos regatões (os atravessadores), que pagavam pouco e cobravam muito pelos produtos industrializados como gêneros alimentícios, que traziam da cidade de barco. Por morarem distantes do comercio, os ribeirinhos dependiam desse sistema para sobreviver. Por uma a caixa de castanha de 20 kg, por exemplo, os regatões chegavam a pagar menos de um terço do valor de mercado.

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Rede de Cantinas da Terra do Meio. Foto de Lilo Clareto/ ISA
Raimunda Nonato Araújo Rodrigues, cantineira e gerente da Miniusina de Processamento de Produtos Florestais Não Madeireiros (comunidade Rio Novo, RESEX Rio Iriri) em visita ao Mercado Municipal de Pinheiros, em São Paulo. Foto Lilo Clareto / ISA

Em 2008, a situação começou a mudar no Xingu quando o Instituto Socioambiental (ISA), que presta assessoria técnica junto com outros parceiros, passou a apoiar a produção dos extrativistas. Dois anos depois, surgiram as primeiras cantinas, que concentravam o comércio local, em que o extrativista tem a opção de vender sua produção ou trocar por produtos industrializados, além de ser um espaço de formação e informação para os produtores que compõem a rede. “No começo, como capital de giro era pequeno, a maior parte dos negócios era feita através da troca de produtos por produção”, lembra Naldo Lima, assessor técnico da Associação de Moradores da Reserva Extrativista do Rio Iriri (Amoreri). A entidade faz a gestão da Rede de Cantinas da Terra do Meio, que funciona em um sistema de rodízio.

Com o crescimento da cadeia produtiva, as associações iniciaram sua estruturação para vender em larga escala. Atualmente, são 14 associações que representam extrativistas e tribos indígenas. “Eles fazem sua própria governança para não depender de atravessadores”, conta Lima. Um total de 311 famílias, o que significa 1.500 pessoas beneficiadas, recebe, em média, um salário mínimo pelo extrativismo de espécies como a castanha-do-pará, cobioba, seringa (látex da borracha) e babaçu. Além das espécies in natura, também já existem sete miniusinas que beneficiam esses produtos transformando-os em óleo e farinha. Ao todos, há 44 paióis de estocagem, nove casas da borracha e 153 estradas de seringa reabertas.

Na safra de 2020, a Rede de Cantinas da Terra do Meio vendeu mais de 200 toneladas de castanha in natura e duas toneladas de castanha desidratada. Também foram produzidos 330 litros de óleos vegetais entre babaçu, castanha e andiroba. Foram fabricados ainda 500 pacotes de mistura para bolo de farinha de babaçu com cacau em parceria com a Cooperativa de Produtores de Cacau da Transamazônica (CacauWay). Este ano, começou a venda de 30 tecidos emborrachados, produzido pelos indígenas Xipaya e vendidos para dois parceiros comerciais: Flávia Amadeus Designer e Save The Forest.

“Fazemos óleo do babaçu, óleo da castanha, farinha do babaçu (mesocarpo), extratos para a produção da farinha que pode substituir a farinha de trigo, e mistura para bolo de farinha de babaçu com cacau”, relata Raimunda Rodrigues, da Cantina do Rio Novo. Além da extração de espécies amazônicas não-madeireira, existe a venda significativa de artesanato produzido pelos indígenas, que prezam por sensibilidade, transparência, garantia de origem e de qualidade. Todos esses produtos fazer parte da marca Vem do Xingu.

Um pouco depois surgiu uma grande oportunidade de parceria com o selo Origens Brasil, que agrega empresas de porte, interessadas na matéria-prima amazônica, mas que tinha compromissos com a sustentabilidade e rastreabilidade. Ao participar dessa articulação, a empresa se comprometia a não exigir prazos muito curtos na entrega da produção e se dispunham a oferecer preços mais vantajosos que os atravessadores. Isso significou o estabelecimento de contratos de longo prazo entre a Rede de Cantinas e as empresas para a venda da produção de todas as associações.

O resultado é que, a cada ano, os extrativistas conseguem melhorar seus ganhos. Um dos impactos é que os atravessadores hoje esperam que eles estabeleçam os preços para poder entrar no circuito. “A existência dos regatões se justifica pois trazem produtos da cidade que as cantinas anda não conseguem ter acesso”, comenta Lima.

Para melhorar o diálogo entre os vários atores, a Rede de Cantinas começou a organizar dois grandes encontros. Um entre extrativistas e tribos indígenas do Xingu (em novembro) para preparar a safra do próximo ano, estabelecendo responsabilidades desde a logística da produção, passando pela limpeza e empacotamento dos produtos, até quem vai às empresas entregar a produção e fechar o negócio.

O outro encontro, a Semana do Extrativismo da Terra do Meio (Semex), reúne os extrativistas e as empresas, que mandam representantes à Terra do Meio para negociar diretamente com os extrativistas. No último encontro, que foi online por conta da pandemia, participaram representantes de Mercur, Wickbold, Funai, ICMBio, Rainforest Noruega, Moore Foundation, ISA, Fundação Viver Produzir e Preservar, e Norte Energia, que tem a obrigação de executar uma série de programas de mitigação socioambiental por impactos causados por pela implantação da hidrelétrica de Belo Monte, na bacia do Rio Xingu, sobre os indígenas.

Outro ganho dessa iniciativa é que os indígenas também resgataram culturas agrícolas que começaram a ser esquecidas com o início da construção da Hidrelétrica de Belo Monte. À época, os indígenas da região foram considerados populações impactadas pelo empreendimento, o que significou que passaram a receber ajuda financeira e, com o dinheiro, comprar produtos industrializados.

Com o surgimento das cantinas e um pouco mais capitalizados, as associações resolveram resgatar essas culturas tradicionais, como o plantio da batata, do milho e da mandioca. “A consequência foi a redução de doenças como a diabetes, causadas pelo excesso de consumo de produtos industrializados”, explica Kwazady Xipaia, comentando que as festas tradicionais também passaram a ser valorizadas para mostrar que a vida na reserva é diferente da cidade, que se resume ao trabalho produtivo.

Kwazady Xipaia membro da Rede de Cantinas da Terra do Meio. Foto de Lilo Clareto/ ISA
Kwazady Xipaia membro da Rede de Cantinas da Terra do Meio. Foto de Acervo Pessoal

“É comum dedicarmos um tempo ao descanso e ao divertimento, o que, para nós, tem um valor grande”, relata o cantineiro Kwazady Xipaia, acrescentando que quando os ribeirinhos vão fazer a coleta das espécies, eles monitoram a floresta para saber se existem invasores. Apesar de Altamira ser campeão de desmatamento no país, a Terra do Meio levantou uma barreira de proteção contra as motoserras e as queimadas.

 

Felipe Porciuncula

Jornalista com 25 anos de estrada. Passou pelas redações de Jornal do Comercio, TV Pernambuco, Valor Econômico e GloboNews. Faz parte da Ashoka Society, onde teve apoio para seu projeto Agência Popular de Notícias. Foi consultor da Unicef e da Unesco. Editou o livro “Guia para o amanhã: sustentabilidade e mudanças climáticas”, publicado pela editora Senac (finalista do Prêmio Jabuti 2010). Adora cinema e viajar. Escreve ficção. Gosta muito de estudar a ciência da política.

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