Maconha no Uruguai: usuários saem do armário

Mateus Lopes, da hemp shop 420: “Vem muita gente de terno e gravata”

Com a legalização, cresce o comércio de produtos para uso e cultivo da droga e aparece um consumidor com perfil que foge ao estereótipo do maconheiro

Por Júlio Lubianco | ODS 12 • Publicada em 3 de janeiro de 2018 - 09:20 • Atualizada em 3 de janeiro de 2018 - 19:41

Mateus Lopes, da hemp shop 420: “Vem muita gente de terno e gravata”
Mateus Lopes, da hemp shop 4:20, que vende produtos para consumo de maconha: família salva da falência. Foto: Júlio Lubianco

É uma tarde quente, com temperaturas atipicamente acima de 30 graus. Enquanto muitos aproveitam as praias do Rio da Prata, milhares de pessoas participam das atividades da ExpoCannabis Uruguai 2017, realizada em Montevidéu de 8 a 10 de dezembro. Sentada desconfortavelmente no chão, debaixo de uma tenda de lona branca, uma psicóloga gaúcha, de 61 anos, anota num bloquinho as dicas e orientações para a plantação de cannabis, durante uma oficina de cultivo. “Já temos a nossa plantinha, mas com alguma dificuldade. Estamos vendo agora que não basta apenas esperar crescer”, comenta.

Ela e o marido, arquiteto, de 67 anos, viajaram 800 quilômetros com os dois filhos e as duas noras para participar do evento, que reúne a indústria da cannabis do Uruguai, onde o cultivo e a venda da maconha são legalizados desde 2013. Os dois estão em busca de melhores práticas para o plantio da própria maconha, que começaram a consumir há um ano. “Moramos num sítio e queremos fazer nosso próprio cultivo. Sair (da dependência) do tráfico, ter a nossa planta, mais sadia. Aqui, percebemos a diferença da plantinha para o prensado que compramos, que é terrível”, diz o arquiteto. “Aprendemos coisas interessantes e percebemos alguns erros que estamos cometendo. Não damos nutrientes, plantamos como quem planta qualquer flor no jardim. Estamos observando essas coisas e descobrindo que precisamos de uma estrutura melhor”, completa a psicóloga.

A ExpoCannabis reuniu dez mil pessoas, entre consumidores, pesquisadores, empresários, médicos e curiosos. A maioria do Uruguai e de dois países vizinhos, Argentina e Brasil.  Aproveitando a condição particular do país no que se refere à maconha – é o único do planeta que legalizou o plantio e a venda –, os organizadores querem fazer do evento uma plataforma de informação e articulação de todos os atores da indústria da cannabis. “Há muitos eventos no mundo, mas quase todos focam na promoção do consumo. Buscamos enfatizar as aplicações medicinais, terapêuticas e os usos industriais. Não há outra feira de Cannabis no mundo que tenha apoio estatal”, explica Mercedes Ponce de Léon, organizadora da ExpoCannabis. Ela saiu do Uruguai em 2008 para trabalhar na indústria de maconha medicinal na Califórnia, nos Estados Unidos, e com a aprovação da lei 19.172, achou que era hora de voltar ao país natal. Desde 2013, se dedica ao trabalho de articulação do mercado da maconha no Uruguai.

Vem muita gente de terno e gravata comprar com a gente. Os maconheiros saíram do armário

O local escolhido para o evento não poderia ser mais mainstream: o Laboratório Tecnológico do Uruguai (LATU), onde estão sediadas várias empresas e institutos de pesquisas do país. À primeira vista, um observador mais desatento poderia pensar se tratar de uma feira de agronomia, tal a profusão de materiais para plantio: vasos, regadores, terra, adubo, pesticidas, estufas e lâmpadas especiais. É que a primeira modalidade de acesso à maconha legal se deu pelo cultivo domiciliar, por pessoas registradas, com o limite máximo de seis plantas por residência. Segundo o Instituto de Regulação e Controle da Cannabis (Ircca), são 7.734 cultivadores cadastrados, além de cerca de dois mil associados aos 71 clubes de cultivo do país.

O sol, símbolo do Uruguai, na fachada da Urugrow: desenho que lembra folhas de maconha e aquele ar de quem fumou um baseado. Foto: Júlio Lubianco

A lei criou uma demanda inicial por equipamentos e expertise de cultivo, o que levou à proliferação das chamadas grow shops, lojas especializadas em artigos para o plantio de maconha. A mais antiga e maior delas é a Urugrow, fundada pelo empresário Juan Manuel Varela, de 30 anos, em 2012, um ano antes da regularização. Além das vendas, a loja oferece também workshops de cultivo, para ensinar aos interessados as melhores práticas para garantir uma colheita frutífera. “O ideal é regar sempre de manhã, porque a planta faz a fotossíntese durante o dia, quando há luz, não à noite”, ensina o dono da Urugrow a uma plateia atenta, cheia de dúvidas e que anota cada dica. “O pH da água altera a absorção dos nutrientes. Para a marihuana, ele tem de ser um pouco mais ácido que o da água da torneira, que fica entre 6 e 5. O ideal é um pH de 5.8 a 6.2”, explica, munido de uma espécie de termômetro que mede o nível de acidez da água. O pulo do gato: “Algumas gotinhas de limão podem deixar a água mais perto do nível de acidez ideal”.

A Urugrow se mudou recentemente para uma nova loja, na região central de Montevidéu, a cerca de um quilômetro da Praça Independência, onde fica o prédio administrativo da Presidência da República. Do lado de fora, chama a atenção o logo na fachada da loja: o sol símbolo nacional do Uruguai, com olhos semicerrados, sorriso de orelha a orelha, claramente com ar de chapado. Parte dos raios foram substituídos por folhas verdes alongadas, características da maconha. Na prateleira de insumos agrícolas, porém, um produto não é encontrado nem na Urugrow, nem nas grow shops concorrentes: as sementes da planta. Pelo menos não oficialmente, já que a venda ainda não foi regulamentada pelo governo. Mais uma idiossincrasia do processo uruguaio de regulamentação da maconha.

Maconha legal, dentro do pacote: controle de qualidade. Foto: Júlio Lubianco

As lojas acabam vendendo sementes por baixo dos panos. “Tem clube com 200 plantas. Todo grow vende. Você liga e pergunta, ‘tem semente?’. Ah, tem. Como você não pode vender?”, questiona um brasileiro radicado no Uruguai que trabalha numa grow shop e comercializa sementes na encolha: dependendo da variedade, o pacote com quatro custa de US$ 20 a 30, entre R$ 70 e R$ 100. Todas importadas, já que a produção nacional é proibida. “O que o pessoal faz é trazer do Chile, mas eles nos fornecem as últimas do lote, de pior qualidade”, reclama o brasileiro.

Além das grow shops, outros negócios canábicos floresceram no Uruguai a partir da legalização da maconha. As chamadas hemp shops vendem produtos relacionados ao consumo, como cachimbos, bongs, desbelotadores, papel, filtros, e também outras mercadorias temáticas, como camisas, bonés e todo tipo de souvenir inspirado na cultura canábica. Sem o risco, claro, de serem enquadradas em qualquer lei de apologia às drogas. Uma delas é a 4:20, localizada na Avenida 18 de Julho, a principal via de Montevidéu. A lei uruguaia salvou a família de proprietários da falência. “Minha mãe já tinha uma loja, que estava indo mal, e os três filhos eram maconheiros. Aproveitamos o momento para mudar o foco e foi um sucesso”, conta Mateus Lopes, um dos sócios. “Vem muita gente de terno e gravata comprar com a gente. Os maconheiros saíram do armário”.

Tem gente que percorre 200 quilômetros para poder comprar (maconha legal)

Uma das vantagens da lei foi derrubar alguns dos mitos do universo canábico. Dados da mais recente versão da pesquisa nacional domiciliar sobre consumo de drogas no país revelam um consumidor mais velho, escolarizado e com emprego fixo, bem diferente do que o estereótipo nos levaria a supor. Setenta por cento dos usuários registrados são do sexo masculino, 44% têm entre 18 e 29 anos, 35%, entre 30 e 44 anos e 20%, mais de 45 anos.  Com relação à educação, quase a metade (48%) iniciou ou completou o ensino superior. Além disso, 51% trabalham no setor privado e 12% no público, enquanto 25% declaram não ter atividade – vale ressaltar que neste grupo se incluem estudantes e aposentados.

Em busca de um produto de maior qualidade, aos poucos, “as pessoas vão deixando de consumir o prensado paraguaio, que era a maconha mais vendida no Uruguai, para produzir suas próprias plantas ou comprar as comercializadas nas farmácias, que são as mais testadas”,  constata Mercedes Ponce de Léon. O número de consumidores de maconha legal, no entanto, poderia ser bem mais expressivo. “Nem todo mundo tem acesso. Só 12 farmácias, em todo o país, vendem o produto. Tem gente que percorre 200 quilômetros para poder comprar “, diz.  Apesar dos problemas que persistem – como a oferta aquém da demanda -, para Mercedes, a legalização é um caminho sem volta. “Estamos indo numa direção em que a proibição não é mais uma opção”, comemora.

Júlio Lubianco

É jornalista formado pela UFF. Começou a carreira em 2003, no caderno Cidade do Jornal do Brasil. Foi repórter, chefe de reportagem e gerente de jornalismo na CBN. Fez mestrado em mídia e comunicação na London School of Economics (LSE), com bolsa do programa Jornalistas de Visão. É professor do curso de jornalismo da PUC-Rio e integra o time de mentores do Brio Hunter. Venceu os prêmios Imprensa Embratel, em 2007, o Alexandre Adler, em 2008, e duas vezes o Tim Lopes de Jornalismo Investigativo, em 2009 e 2014.

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2 comentários “Maconha no Uruguai: usuários saem do armário

  1. Nadia Pires Carneiro disse:

    Fantástica a reportagem, sabendo-se que a maconha é utilizada como medicamento , podendo assim, ajudar muitas pessoas. Regularizar o uso com consciência, não vejo mal algum.
    Parabenizo o Jornalista Julio Lubianco, que com muita clareza e competência soube nos dá informações que até o momento eram desconhecidas.

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