ODS 1
Invasão russa na Ucrânia põe em xeque a agenda ESG em países autoritários
O desafio de conciliar a pauta social e ambiental com os interesses econômicos em algumas regiões do mundo
A guerra na Ucrânia e o êxodo corporativo na Rússia, que já alcança 600 casos, exigirão revisão da pauta ESG (Governança Social e Ambiental na sigla em inglês) de corporações em regimes autocráticos. A perspectiva é do professor Jeffrey Sonnenfeld, da Escola de Administração da Universidade de Yale, que monitora diariamente o movimento do êxodo corporativo junto com a sua equipe.
Sonnenfeld disse ao #Colabora que a invasão russa na Ucrânia levará companhias globais a reconsiderarem suas responsabilidades na hora de questionar o que chamou de “atrocidades locais de direitos humanos”. Embora a guerra na Ucrânia venha causando mobilização internacional sem precedentes, uma série de conflitos sangrentos e crises humanitárias segue em curso em diversas regiões do mundo.
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Para o professor de Yale, essa reavaliação deve substituir a postura de presumirem que o simples fato de estarem presentes em países com regimes autocráticos representa uma espécie de “engajamento construtivo”. Outro desafio da pauta ESG é garantir que valores culturais corporativos não sejam sacrificados em troca de concessões convenientes para tiranias locais.
“Os tópicos ESG são importantes, porém muito vagos. Embora bem-intencionados, muitos se desviam para sofismas”, comentou.
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Veja o que já enviamosSegundo o especialista, muitas vezes as empresas estão engajadas em discussões sobre carbono zero, neutro ou negativo, enquanto aspectos como colapsos de democracias e massacre de inocentes acabam ficando fora do foco.
Levantamentos como os feitos pelo International Crisis Group elencam uma série de conflagrações globais. Alguns países, particularmente no Cone Sul são afetados, como Etiópia, Iêmen, Mianmar e Haiti, dentre outros, inclusas as suas crises humanitárias.
Até a terceira semana de guerra na Ucrânica, 400 empresas já haviam anunciado que deixariam a Rússia em razão da invasão russa, segundo levantamento da equipe do Yale Chief Executive Leadership Institute. O centro de estudos registra que enquanto uma parte das companhias define retirada de solo russo, outro grupo “continua a operar na Rússia sem se deixarem intimidar”.
“Embora estejamos satisfeitos por nossa lista ter sido amplamente divulgada, estamos mais inspirados pelas milhares de mensagens que recebemos de leitores de todo o mundo, especialmente os da Ucrânia”, afirma o centro de estudos.
Questionado sobre que circunstâncias poderiam levar as empresas de volta à Rússia, Sonnenfeld respondeu que será necessária uma mudança de liderança, que respeite o Estado de direito e a imprensa livre.
O centro de estudos da Universidade de Yale não é o único a acompanhar a evolução da reação de grupos empresariais americanos desde o início da invasão russa. A Fundação da Câmara de Comércio dos Estados Unidos e o movimento The Good Lobby também acompanham a forma com que grandes corporações estão reagindo aos desdobramentos da guerra na Ucrânia.
“Depois de professar as virtudes dos fatores ambientais, sociais e de governança, a maioria das empresas parece não seguir o mesmo caminho quando se trata das contínuas violações sociais e de governança cometidas por tal invasão”, registra Alessandro Alemano, fundador do Good Lobby e professor de Direito na HEC Paris.
O acompanhamento da Fundação da Câmara de Comércio dos Estados Unidos compila iniciativas corporativas em curso em torno da guerra no Leste Europeu. O Airbnb, por exemplo, enviou cartas para Polônia, Romênia, Alemanha e Hungria oferecendo ajuda para abrigar refugiados com moradia gratuita e temporária para até cem mil pessoas que fogem da Ucrânia. As operadoras de telefonia Verizon e AT&T isentaram tarifas de ligações internacionais para Ucrânia. A rede de hotéis Hilton doa até US$ 1 milhão para apoiar refugiados ucranianos e esforços humanitários em toda a Europa.
Em geral, recursos e doações são carreados para instituições humanitárias e internacionais de apoio, como a Cruz Vermelha Internacional, a agência da ONU para Refugiados (Acnur), a Save The Children e a Unicef, dentro outras. A decisão russa de invadir a Ucrânia joga luz sobre o desafio de ESG em um regime autocrático. Que limites um regime forte impõe ao receituário da governança social e ambiental?
O dilema vem sendo experimentado por quem opera na Rússia. Assim como deverá gerar impactos na forma de novos critérios e limites sobre onde e como investir, depois da conflagração. Nada como uma guerra para mudar perspectivas. Até mesmo sobre como encarar a produção de material bélico na ótica do aceitável ou não dentro dos princípios de ESG.
O grupo financeiro nórdico SEB atualizou há poucos dias a política de sustentabilidade para investimentos na indústria de defesa. A partir de abril, fundos poderão investir no setor bélico. A instituição sueca assegura, no entanto, que seus fundos continuarão a excluir “investimentos em empresas que fabricam, desenvolvem ou vendem armas que violem as convenções internacionais”, além de armas atômicas.
Na prática, a invasão russa despiu os investimentos em países autocráticos. É isso que está por trás da veloz debandada de fundos de investimentos e corporações do território russo. O simples fato de investir em regimes autocráticos reforça estes sistemas, irriga recursos e confere algum grau de credibilidade como destino de investimentos.
Quando isso fica a serviço de uma guerra, a luz vermelha acende. Um regime autocrático inviabiliza a existência de investimentos social e ambientalmente responsáveis?
Países autocratas podem facilitar ou dificultar implementar a agenda ESG. Pode-se sempre, por hipótese, aumentar impactos positivos ou minimizar impactos negativos do próprio regime.
“Depende do impacto e da agenda desses regimes. Mas tudo começa na governança”, diz Maria Eugenia Buosi, CEO da Resultante ESG. “Essa talvez seja a questão mais desafiadora. Até onde consigo ter os instrumentos para a gestão dentro do meu alcance? Se algo não faz parte da gestão ou é limitado pelo ambiente político, vou ter mais dificuldade de implementar esse tipo de iniciativa”.
ESG não é um estado de espírito, é uma prática. Dependendo do país em que uma empresa opera, terá mais ou menos dificuldade para implementar políticas sociais e ambientais. A própria viabilidade econômica como país atrapalha o investimento sob a ótica ESG. Sem ganhos de produtividade, renda, consumo e recursos, aumenta o desafio de fazer acontecer práticas ESG.
A natureza do ataque russo traz questões de princípios. Eles foram abordados pelo ex-ministra das Finanças da Ucrânia, Natalie Jaresko, em artigo no britânico Financial Times: “A comunidade empresarial global deve entender que nutrir, defender e proteger a liberdade e a democracia é parte de sua responsabilidade ESG”, escreveu no artigo, sob o título A invasão da Ucrânia pela Rússia deve levar a um acerto de contas ESG.
O mundo ESG está na primeira infância. Deverá sofrer recalibragens a partir do fenômeno da invasão russa e do rebote na forma de sanções de países e empresas ocidentais. Essa recalibragem já acontece, mas exigirá algum tempo para decantar – e ver como e se impactará no resto do mundo conflagrado.
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Nilson Brandão é advogado e jornalista, foi repórter e editor em grandes jornais em Economia e atua hoje como consultor em comunicação estratégica e reputação por meio da Conteúdo Evolutivo.
Muito bom o artigo de Nilson Brandão. Aborda questões prementes, mas que não ocupam, como deveriam, a atenção de quem se preocupa com os rumos do planeta Terra. As grandes corporações de todo o tipo precisam efetivamente participar dos esforços pró-democracia e, ao mesmo tempo, da luta para evitar que nosso planeta se torne inabitável.