Falta de políticas públicas é barreira para economia circular no Brasil

A epidemia de plástico: a mergulhadora Sahika Encumen recolhe lixo do mar em Istambul, na Turquia

Tributação no país, por vezes, penaliza empresas que pretendem adotar práticas mais sustentáveis, avaliam executivos e especialistas que participaram de debate promovido pelo CEBDS sobre o tema, na série (Re) Visão 2050

Por Valquiria Daher | ODS 12 • Publicada em 23 de julho de 2020 - 16:00 • Atualizada em 28 de julho de 2020 - 10:25

A epidemia de plástico: a mergulhadora Sahika Encumen recolhe lixo do mar em Istambul, na Turquia

Empresas, governos e consumidores precisam agir em colaboração para o desenvolvimento da economia circular no Brasil, mas a falta de políticas públicas que facilitem a transformação dos processos de produção é um enorme obstáculo a ser superado, avaliam os participantes de mais um webinar da série (Re) Visão 2050, promovido pelo Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS), realizado na quarta-feira (22/07).

O evento discutiu como pode ser feita a transição de uma economia linear, baseada no fluxo extração de matéria-prima, produção e descarte, para a circular, um sistema regenerativo e restaurativo em que um produto, por exemplo, é desenhado para ser reutilizado, impedindo o esgotamento dos recursos naturais do planeta e contribuindo para o combate às mudanças climáticas.

Hoje, por exemplo, se discute uma reforma tributária sem se levar em consideração o desenvolvimento sustentável

“No Brasil, nas últimas eleições não se ouviu falar de economia circular”, lembra Rodrigo Santiago, diretor de Relações Institucionais da Michelin, alertando que nosso país está atrasado num debate já bastante desenvolvido na União Europeia, por exemplo: “A política pública é uma alavanca para a mudança. Não é só falar da legislação de resíduos, é preciso falar do arcabouço fiscal. Hoje, por exemplo, se discute uma reforma tributária sem se levar em consideração o desenvolvimento sustentável. Isso, talvez, nos amarre a travas das quais não vamos conseguir nos desvencilhar a curto e médio prazo”, completa o executivo.

economia circular cebds
Debate: os participantes do webinar sobre o tema Economia Circular (Foto: reprodução)

Um dos modelos de negócios da economia circular, a comercialização de um produto como serviço esbarra na cobrança de diferentes impostos. “Por aqui, quando você vende um produto, é tributado pelo ICMS estadual; quando vende um serviço, tem que pagar ISS, que é municipal. Se tentarmos comercializar um pneu por quilômetro rodado, por exemplo, os clientes têm medo de recair em evasão fiscal. Mas essas práticas são adotadas pelo nosso vizinho Chile. Repensar o desenvolvimento, tomando a economia circular com premissa, demanda uma visão ampla”, argumenta Santiago.

Richard Lee, head de Sustentabilidade da Cervejaria Ambev, também gostaria de ver o fator tributário como uma alavanca para a transformação: “Hoje é mais caro utilizar matéria-prima reciclada por conta de tributação, muitas vezes, dupla ou tripla, o que não é um incentivo para uma empresa que está tentando fazer essa transição”.

Um dos grandes desafios na cadeia de reciclagem é ter volume e disponibilidade de resíduos. É um contrassenso não termos isso diante da quantidade de resíduos que geramos, mas o fato é que a maior parte do volume está indo para os aterros

Para o executivo, no entanto, a responsabilidade não é só do governo, e as empresas têm o papel de criar produtos com a lógica circular que sejam capazes de atrair e fazer sentido para o consumidor. Mas Lee admite que não é fácil. “A transição para economia circular tira as empresas de uma zona de conforto. E é um futuro a longo prazo. Em relação a deter o esgotamento de recursos naturais, a maioria das empresas não é capaz de afirmar que pode continuar operando como hoje. Um dos fatores que geram isso é que o esgotamento desses recursos talvez não seja sentido a médio prazo, mas, em algum momento, será. E as empresas são cobradas por resultados de curto a médio prazo, o que leva a tomadas de decisões que não seguem o modelo circular, mas são somente um prolongamento do modelo linear”.

Não só da inovação do design de novos produtos e modelos se faz a economia circular. Fabiana Quiroga, diretora de Reciclagem e Plataforma Wecycle da Braskem, destaca a importância de pensar no impacto da produção e na eficiência dos processos internos que proporcionam menos emissão de CO², reutilização de água, uso de matérias-primas e energia renováveis etc. Outro ponto essencial para a executiva é uma infraestrutura que permita às empresas adotarem esse modelo. E aí as políticas públicas também são essenciais. “Estamos vendo isso hoje na pandemia de covid-19, com o problema do descarte inadequado dos EPIs, que está muito vinculado à falta de coleta seletiva. Um dos grandes desafios na cadeia de reciclagem, que não é o único, mas é um ponto importante para a economia circular, é ter volume e disponibilidade de resíduos. É um contrassenso não termos isso diante da quantidade de resíduos que geramos, mas o fato é que a maior parte do volume está indo para os aterros”

A reciclagem no Brasil, ressalta Ricardo Pereira, diretor de desenvolvimento técnico do CEBDS, ainda depende quase em sua totalidade (90%) de catadores que trabalham num alto grau de informalidade e precariedade. “Hoje, o Movimento Nacional dos Catadores, aponta que a atividade reúne 800 mil pessoas, a maioria mulheres”, comenta Pereira, responsável pela mediação do webinar. Ele chama a atenção também para uma pesquisa da Confederação Nacional da Indústria (CNI) que revelou uma porcentagem de 76,4% das empresas afirmando desenvolver ações de economia circular, apesar de 70% dizerem desconhecer esse modelo.

Lea Gejer, fundadora do escritório de design Ideia Circular, vê esse desconhecimento como um ponto que pode frear essa transformação no Brasil. “Precisamos alinhar conceitos do o que é economia circular. Não é aceitável que 76,4% das empresas afirmem que já desenvolvem ações, mas as mesmas não saberem que iniciativas se enquadram no conceito. Isso mostra o tamanho da inconsistência, o que gera uma série de atrasos. Reciclagem e logística reversa fazem parte da economia circular, mas são o guarda-chuva. Precisamos ter cuidado com esses termos”, enfatiza a arquiteta e urbanista.

A agenda da economia circular se tornou mais relevante porque a pandemia destacou a fragilidade de um sistema altamente linear

Para Lea, o Brasil tem uma grande vantagem para adotar a economia circular por ter cadeias industriais completas, como a têxtil, a de plásticos, de construção civil. “Nos Estados Unidos é mais difícil porque você vai comprar uma blusa que obrigatoriamente foi feita na Indonésia ou na China”. Por outro lado, ela destaca, um desafio para os países em desenvolvimento, que enfrentam grande desigualdade: “O custo maior de um produto circular pode funcionar na Europa porque os consumidores aceitam pagar mais um pouco por isso”.

Mike Oliveira, coordenador de Iniciativas Sistêmicas para a América Latina da Fundação Ellen MacArthur, enfatiza, no entanto, que “transferir essa responsabilidade para o consumidor não é o caminho”. “Temos que oferecer soluções circulares aos nossos processos. Isso tem que começar dentro de casa, na produção e na criatividade”, avalia referindo-se às empresas. E se muitos achavam que a pandemia de covid-19 enfraqueceria a transição, ocorreu o oposto. “A agenda da economia circular se tornou mais relevante porque a pandemia destacou a fragilidade de um sistema altamente linear na produção de equipamentos médicos, de alimentos e de economia extrativas. O conceito circular possui uma série de soluções economicamente atraentes para atrair mais valores e resiliência à economia e pode ser usado como parte de uma estratégia de recuperação econômica. Vários países firmaram esse compromisso”, diz Mike, que não vê esse horizonte no Brasil. “Falta uma clareza e uma diretriz, estamos num momento de desgovernança”.

A webserie Visão 2050 é uma realização do Cebds, com patrocínio do Itaú, da Vale, apoio da ERM, da KPMG, da SITAWI e apoio de mídia do #Colabora. Os webinars podem ser vistos pelo YouTube do CEBDS ou pelo Zoom, onde é possível se inscrever para o próximo, o último da série, que será dedicado a Cidades, no dia 5/08, encontros aqui.

Assista ao encontro sobre economia circular na íntegra:

 

Valquiria Daher

Formada em Jornalismo pela UFF, nasceu em São Paulo, mas cresceu na cidade do Rio de Janeiro. Foi repórter do jornal “O Dia”, ocupou várias funções no “Jornal do Brasil” e foi secretária de redação da revista de divulgação científica “Ciência Hoje”, da SBPC. Passou os últimos anos no jornal “O Globo”, onde se dedicou ao tema da Educação. Editou a Revista “Megazine”, voltada para o público jovem, e a “Revista da TV”. Hoje é Editora do Projeto #Colabora e responsável pela Agência #Colabora Marcas.

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