Encontros à mesa: plataforma Fartura conecta pequenos produtores e chefs

Festival leva pratos brasileiros de diferents regiões país afora (Foto Lucas Chagas)

Expedições e festivais gastronômicos ajudam a preservar origens e receitas de comidas brasileiras de todo o país

Por Carla Lencastre | ODS 12 • Publicada em 12 de maio de 2019 - 08:00 • Atualizada em 13 de maio de 2019 - 16:58

Festival leva pratos brasileiros de diferents regiões país afora (Foto Lucas Chagas)
Festival leva pratos brasileiros de diferents regiões país afora (Foto Lucas Chagas)
Festival leva pratos brasileiros de diferents regiões país afora (Foto Lucas Chagas)

Marlene dos Santos é quituteira da comunidade de São Bento, perto de Maragogi, no litoral de Alagoas. Dos seus bolos de goma, que na realidade são biscoitos, ela tira o sustento. Aprender a fazer os docinhos, a partir de uma receita de família, e a comercializá-los mudou não apenas a vida de Marlene, a pioneira, mas a de dezenas de pessoas de São Bento. Hoje moradores da região vendem em lojas e barracas, ao longo da rodovia que atravessa a comunidade, sequilhos de farinha de mandioca, coco ralado, açúcar, ovos e manteiga.

Marlene é um dos muitos personagens do Fartura Comidas do Brasil. O projeto poderia ser apenas mais um delicioso festival gastronômico. E já seria bom um evento que ajuda a preservar o patrimônio gastronômico brasileiro e permite a moradores de uma cidade conhecer a cozinha de outra, às vezes em um estado distante, visto o tanto de comida boa e diferente deste país. Mas o evento mineiro de Belo Horizonte cresceu, se espalhou pelo Brasil, atravessou o Oceano Atlântico e deu mais visibilidade a uma plataforma de compartilhar conhecimento, como a história de ingredientes brasileiros descobertos em expedições pelo país, contada por quem cultiva e produz, e de aproximar pessoas, entre elas pequenos produtores e grandes chefs, público curioso e cozinheiros dos rincões do país.

O Fartura não é um projeto social. É um modelo de negócio que dá visibilidade a quem planta, colhe e faz, e encurta o caminho até o consumidor, seja ele proprietário de restaurante ou não. Mas tem sempre uma preocupação social em mente. Em Belo Horizonte, por exemplo, o dinheiro arrecadado com a venda de ingressos é convertido em alimentos para comunidades carentes (e a entrada também pode ser paga com alimentos não perecíveis).

O festival Fartura: de Belo Horizonte para o Brasil e até além (Foto Nereu Jr)
O festival Fartura: de Belo Horizonte para o Brasil e até além (Foto Nereu Jr)

A programação de 2019 começou em janeiro por Belém, uma das cidades onde melhor se come no Brasil. A primeira edição do ano teve como uma das atrações o chef Caetano Sobrinho, do novo, moderno e gostoso Caê, de Belo Horizonte, que levou para o Norte sua coxinha de carne de sol com requeijão de raspa. Coxinhas estavam na área de petiscos e doces do festival junto com brigadeiros das Filhas do Combu, de Dona Nena, uma celebridade local.

Dona Nena é fornecedora do belenense Remanso do Bosque, de Thiago Castanho, e também do paulistano D.O.M., de Alex Atala, ambos frequentadores das listas de melhores do mundo. Os doces são feitos com cacau nativo, da Ilha de Combu, no Rio Guamá, em frente a Belém, e recheados com cupuaçu ou castanha-do-Pará. Na bela Estação das Docas, às margens do Guamá, o encontro de coxinhas de requeijão de raspa com brigadeiros de cupuaçu exemplifica a diversidade da cozinha brasileira para a qual o Fartura quer chamar a atenção.

As palestras e aulas práticas dos festivais seguem o mesmo caminho de valorizar o percurso entre a origem do alimento e o prato à mesa. Podem reunir no mesmo programa gente tão diferente quando Ruth de Almeida, do restaurante Raízes Gastronômicas, de Palmas, no Tocantins, apresentando o coco babaçu, e Alberto Landgraf, ex chef do paulistano Epice e hoje à frente do carioca Oteque, falando sobre “beleza e sustentabilidade”. Todos os festivais têm uma área de restaurantes, com cozinhas locais e de outras cidades, e uma de produtores, com iguarias do estado. Em Belém tem molho de tucupi, cachaça de jambu, palmito de açaí, farinhas variadas. Em Belo Horizonte os destaques são queijos, azeites, doces de leite.

O festival acontece ao logo do ano em todas as regiões do país, mas ainda não chegou ao Rio. Depois de Belém esteve em Brasília (março) e agora vai para Porto Alegre (maio), São Paulo (agosto), Tiradentes (entre agosto e setembro, junto com o tradicional festival de gastronomia da cidade histórica), Belo Horizonte (setembro) e Fortaleza (outubro). O ano termina além-mar, em Lisboa, em novembro. Lá o evento tem formato um pouco diferente, e permite também encontros formais de negócios. Se nenhum destes lugares estiver no seu roteiro, viaje pela ótima plataforma digital do Fartura para ter uma boa prova do projeto.

A gastronomia tem um poder transformador não só no aspecto cultural, mas também no econômico no Brasil.

No site quem quer uma receita nova, descobre não apenas o modo de fazer quase cem diferentes pratos, mas também uma história de vida acompanhando os ingredientes e uma lista de onde comer ou onde encontrar o produto. Quem gosta de conhecer a história dos ingredientes tem bom material para leitura. Quem procura um endereço diferente para comer bem ou fazer compras para casa ou restaurante, encontra ali contatos de mais de uma centena de produtores, mercados e casas selecionados ao longo das expedições pelo Brasil. Como o telefone de Marlene, a dos bolos de goma, que aceita encomendas de outros estados.

Histórias encantam, números impressionam

O Fartura começou com expedições Brasil adentro, em busca de histórias de agricultores, produtores, comerciantes. A partir daí veio a inspiração para os festivais. Depois das viagens, os depoimentos dos personagens são transformados em livros (são cinco volumes) e vídeos, estes distribuídos em instituições de ensino e disponíveis no site do projeto e no canal deles no YouTube.

Um dos vídeos mais recentes, por exemplo, conta a história da torta capixaba. O prato típico do estado vizinho ao Rio teria surgido no litoral, durante a Semana Santa, em meados do século XIX, para aproveitar o excedente de peixes e frutos do mar que os pescadores salgavam para conservar. Ainda que servidos em panela de barro, os frutos do mar são mais sequinhos do que na moqueca, e cobertos por um creme de ovos. Os vídeos são curtinhos. A maioria tem menos de dois minutos de duração e deixa aquele gosto bom de “quero mais”.

Os números das expedições impressionam. Desde 2012 o Fartura foi a todos os estados do país e ao Distrito Federal, num total de 208 cidades, 71 mil quilômetros percorridos e 526 entrevistas, de agricultores a chefs. Os nomes e contatos estão listados no site, e são de fácil consulta. Em 2016, concorrendo com 109 projetos de 50 países, o Fartura ficou em segundo lugar no prêmio de inovação da Organização Mundial de Turismo (Unwto, na sigla em inglês). Os livros já ganharam também outros prêmios internacionais de sustentabilidade e gastronomia. O Fartura foi criado por um empresário mineiro do ramo de alimentos e bebidas, Rodrigo Ferraz, para conhecer melhor fornecedores de seus bares e restaurantes.

“A gastronomia tem um poder transformador não só no aspecto cultural, mas também no econômico no Brasil. Em 2017, o PIB da agropecuária aumentou 13% em relação a 2016. A safra agrícola bateu recorde de grãos, com 240 milhões de toneladas, 29,5% a mais que 2016. Os números dão uma ideia da grandiosidade do setor. O prato é o ponto final. O consumidor, seja no restaurante ou em casa, precisa entender o que está por trás da refeição”, diz Ferraz.

Conheci o Fartura no final do ano passado, na edição de Belo Horizonte, ao lado da bonita Sala Minas Gerais. Foi uma alegria ouvir tanta história boa nas palestras, bater papo com os produtores e ver gente que gosta de comer bem se divertir conhecendo a cozinha e a cultura gastronômica de outros estados. Em dois dias, dez mil pessoas estiveram no evento, que reuniu 70 atrações gastronômicas de todas as regiões, mapeadas ao longo das expedições.

Ali descobri as deliciosas minicoxinhas de caranguejo de Lia Quinderé, da Sucré Pâtisserie, em Fortaleza, e matei as saudades do chef César Santos, do ótimo Oficina do Sabor, em Olinda. Tudo acompanhado pelo bom gim artesanal mineiro Ivy. Como estava em Minas Gerais, provei também queijos do Serro e de outras regiões e doces de leite, na área de produtores locais. Ao vivo e em site, livros e vídeos, sabor é o que não falta ao Fartura.

Carla Lencastre

Jornalista formada pela Universidade Federal Fluminense (UFF), trabalhou por mais de 25 anos na redação do jornal O Globo nas áreas de Comportamento, Cultura, Educação e Turismo. Editou a revista e o site Boa Viagem O Globo por mais de uma década. Anda pelo Brasil e pelo mundo em busca de boas histórias desde sempre. Especializada em Turismo, tem vários prêmios no setor e é colunista do portal Panrotas. Desde 2015 escreve como freelance para diversas publicações, entre elas o #Colabora e O Globo. É carioca e gosta de dias nublados. Ama viajar. Está no Instagram em @CarlaLencastre 

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