Documentário joga luz sobre terrorismo de barragem em Minas

Exibido no Festival do Rio, longa Rejeito mostra dramas de vizinhos de barragens em risco da Vale e outras mineradoras, após a tragédia de Brumadinho

Por Oscar Valporto | ODS 12ODS 15 • Publicada em 12 de outubro de 2023 - 21:06 • Atualizada em 21 de novembro de 2023 - 09:11

Cenário de devastação após a tragédia de Brumadinho: documentário rejeito denuncia terrorismo de barragem em Minas (Foto: Divulgação)

O documentarista mineiro Pedro de Filippis começou a filmar Rejeito logo após o rompimento da barragem da Vale em Brumadinho que matou 270 pessoas em janeiro de 2019 (três ainda estão desaparecidas). Mas percebeu que as primeiras imagens captadas da devastação e da destruição eram semelhantes às exibidas por toda parte. Seu documentário Rejeito passou, então, a focar mais no que ele chama de “terrorismo de barragem”, mais no presente de pessoas que vivem atualmente ao lado das barragens em Minas e  menos das tragédias do passado. O território de Minas Gerais abriga 354 barragens, das 923 atualmente cadastradas pela Agência Nacional de Mineração. Pelo menos 43 barragens mineiras, têm algum nível de alerta ou emergência.

É o único lugar no mundo onde existem centenas de barragens de rejeitos de mineração com milhões de pessoas abaixo delas. Estamos vivendo, na realidade, ameaçados por bombas-relógio. Não podemos aceitar simulado de salvação numa área em que não há chance de se salvar.

Maria Teresa Corujo
Ambientalista, em depoimento no documentário Rejeito

Essa mudança de chave aconteceu logo depois da tragédia de Brumadinho, quando ele parou para descansar num bar e acompanhou moradores das vizinhanças alarmados com a passagem das águas vermelhas e enlameadas do Rio Paraopeba, carregadas dos rejeitos de minério. “Rejeito introduz com os desastres passados, mas a maior parte do filme passa-se no agora, no que está a acontecer com as barragens que não romperam, mas que ameaçam milhões de pessoas ainda”, disse o cineasta de 36 anos, após uma das sessões de seu documentário no Festival do Rio de Janeiro.

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Pedro de Filippis já conhecia a ambientalista Maria Teresa Corujo, conhecida como Teca, que atua, há mais de 20 anos, na defesa de lugares de Minas Gerais ameaçados ou já impactados pela mineração. É ela que a câmera acompanha na condução do documentário. “É o único lugar no mundo onde existem centenas de barragens de rejeitos de mineração com milhões de pessoas abaixo delas. Estamos vivendo, na realidade, ameaçados por bombas-relógio. Não podemos aceitar simulado de salvação numa área em que não há chance de se salvar. Se o mundo souber o que está acontecendo aqui, o mundo vai ficar estarrecido”, afirma Teca no documentário.

Somos reféns do medo e figurantes de um filme de terror

João Batista Carlos
Aposentado e vizinho de barragem no município mineiro de Itabira, no documentário Rejeito

O documentarista concentra seu foco em duas comunidades vítimas do terrorismo de barragem. “Estamos na rota da morte e não temos como fugir se a barragem romper. Minha casa está a 50 metros da barragem; Com um rompimento, só vai restar o suspiro da morte”, denuncia, no documentário, o aposentado João Batista Carlos, morador da comunidade de Bela Vista, no município de Itabira, tornado famoso pelo poeta Carlos Drummond de Andrade. seu filho mais ilustre. “O Rio? É doce. A Vale? Amarga. Ai, antes fosse. Mais leve a carga”, escreveu Drummond, na abertura do poema Lira Itabirana.

O aposentado João Batista vigia a barragem a 50 metros de sua casa: "com um rompimento, só vai restar o suspiro da morte" (Foto: Divulgação)
O aposentado João Batista vigia a barragem a 50 metros de sua casa: “com um rompimento, só vai restar o suspiro da morte” (Foto: Divulgação)

João Batista é vizinho da Barragem Dique Cordão Nova Vista – bem ao lado fica a Barragem Dique Minervino, ambas da Vale – a antiga Companhia Vale do Rio Doce, nascida também em Itabira. A câmera o acompanha no caminho de casa, passando por placas de “Zona de Risco”, “Zona de Escape” e “Rota de Fuga” e também já dentro da residência, onde o aposentado sobe numa escada para olhar a barragem – segundo seu relato, quando a casa foi comprada, não se via a barragem de rejeitos, que foi crescendo ao longo do tempo. “Somos reféns do medo e figurantes de um filme de terror”, desabafa João Batista em audiência pública em Itabira.

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Rejeito também acompanha uma simulação de alarme de rompimento de barragem nos bairros de Honório Bicalho e Santa Rita, no município de Nova Lima. “Ninguém consegue dormir sossegado aqui”, conta uma moradora.  Mais de três mil pessoas vivem nas comunidades vizinhas às barragens B3/B4, no distrito de Macacos, ambas também da Vale, que tiveram a elevação do seu nível de risco, após a tragédia de Brumadinho. A câmera também segue uma equipe de filmagem contratada pela empresa, recolhendo depoimentos dos moradores após a simulação. “A Vale tinha que ser responsabilizada por isso que está acontecendo conosco”, afirma uma vizinha da barragem.

O documentarista Pedro de Filippis (com o microfone) ao lado do crítico Filippo Pitanga em debate após a exibição de Rejeito no Festival: terrorismo de barragem é “estratégia de despossessão para acumulação” (Foto: Oscar Valporto)

O documentário de Pedro de Filippis também vai à comunidade de Socorro, em Barão de Cocais, evacuada depois de a Vale constatar riscos na Mina de Gongo Soco – a elevação do nível de risco também só ocorreu depois da tragédia de Brumadinho. “É um outro tipo de caso de terrorismo. A mineração aproveita-se dos rompimentos passados e usa possíveis rompimentos para o esvaziamento de território de interesse minerário. É uma estratégia de despossessão para acumulação”, afirmou Pedro de Filippis no debate após a exibição do filme no Festival do Rio.

Sei que não é fácil, pelos interesses envolvidos, mas o que nós queremos é que o máximo de pessoas vejam Rejeito e tomem consciência do que está acontecendo em Minas Gerais e com as vítimas desse terrorismo de barragem

Pedro de Filippis
Documentarista

Em Socorro, a câmera segue uma tentativa de reocupação das casas, a ação da Polícia Militar para retirar pacificamente os moradores e o protesto dos desalojados pelo possível rompimento de mais uma barragem da Vale. “Nós éramos uma família, uma comunidade onde todos se conheciam. Agora, Socorro virou uma cidade fantasma”, lamenta um morador durante protesto onde levava o cartaz ‘A Vale roubou a infância de nossos filhos’. No total, pelo menos 400 pessoas foram obrigadas a deixar suas pelo risco de rompimento da barragem Sul Superior. Recentemente, a Vale firmou um acordo com o Ministério Público de Minas Gerais, o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública de Minas Gerais, onde se compromete a pagar mais de R$ 500 milhões pelos danos em Barão de Cocais.

Documentário usa imagem aérea em que pintura abstrata revela-se mar de rejeitos: impacto visual e denúncia socioambiental (Foto: Julia Pessoa / Divulgação)

No longa de 75 minutos, o documentarista usa ainda imagens das tragédias de Mariana, considerada o maior desastre ambiental do país, principalmente pelos estragos causados no Rio Doce, de Brumadinho, inclusive aquele avanço assustador do mar de lama, exibido em câmera lenta, e até de um filme promocional do Projeto Apolo, mega empreendimento na área central de Minas, que a Vale tenta implantar apesar dos riscos ambientais. Mas Rejeito também impacta com o uso das fotos aéreas de Júlia Pontes, que parecem uma pintura abstrata e revelam-se imagens dos rejeitos das barragens.

O documentário já foi exibido em mostras na França, no Canadá e nos Estados Unidos e, após o Festival do Rio, Pedro de Filippis espera conseguir sua exibição em circuito comercial e em plataformas de streaming. “Sei que não é fácil, pelos interesses envolvidos, mas o que nós queremos é que o máximo de pessoas vejam Rejeito e tomem consciência do que está acontecendo em Minas Gerais e com as vítimas desse terrorismo de barragem”, disse o cineasta, que estreou em 2009 com o curta Pêssegos de Cornicha, e também dirigiu documentários curtos na Europa dentro do programa MFA Doc Nomads.

Oscar Valporto

Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade

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