Brumadinho: do luto à impunidade, uma tragédia sem fim

Busca de corpos em meio à lama despejada pelo rompimento da barragem da Vale: ainda há desaparecidos (Foto Mauro Pimentel/AFP)

Rompimento da barragem causado pelo descaso da Vale, que matou 270 pessoas, completa dois anos com processos judiciais inconclusos, danos ambientais profundos e a dor sem fim dos parentes das vítimas

Por Cristina Serra | ODS 11ODS 9 • Publicada em 24 de janeiro de 2021 - 20:51 • Atualizada em 25 de janeiro de 2022 - 15:45

Busca de corpos em meio à lama despejada pelo rompimento da barragem da Vale: ainda há desaparecidos (Foto Mauro Pimentel/AFP)

“Não é um luto normal. A minha família foi exterminada. É uma dor profunda saber que essas mortes poderiam ter sido evitadas, que a Vale sabia dos riscos e não fez o que tinha de fazer. Esse meu luto não era para existir.” Assim, Helena Taliberti, 63 anos, explica como tem sido viver desde que, dois anos atrás, a avalanche de lama do complexo da Vale em Brumadinho (MG) matou seus dois filhos, Camila, 33 e Luiz, 31, sua nora, Fernanda, 30, e o bebê que ela carregava no ventre e que se chamaria Lorenzo.

A família de Helena chegara de São Paulo e estava hospedada na pousada Nova Estância, vizinha da barragem, que foi completamente destruída. Camila, Luiz e Fernanda tinham ido a Brumadinho para conhecer Inhotim, museu a céu aberto com um dos maiores acervos de arte contemporânea do país e que escapou da lama. Estavam acompanhados do pai, Adriano da Silva, 61, e da esposa dele, Maria de Lourdes Bueno, 58. Morreram todos.

Eles estão entre as 270 vítimas (número oficial) da maior tragédia humana associada à mineração no Brasil. A Associação dos Familiares das Vítimas e dos Atingidos de Brumadinho (Avabrum) inclui ainda dois nascituros, entre eles Lorenzo, elevando o total para 272. Desse total, onze ainda estão desaparecidas e o Corpo de Bombeiros prossegue na busca pela identificação dos corpos.

O desastre foi uma sequência de colapsos de três barragens. Primeiro, houve o rompimento da B-1, que gerou violência suficiente para a lama derrubar as outras duas. A enxurrada de resíduos de mineração matou trabalhadores dentro do complexo e moradores de dois distritos rurais de Brumadinho: Córrego do Feijão e Parque da Cachoeira. A ruptura das estruturas despejou 9,7 milhões de metros cúbicos de lama no Rio Paraopeba, um dos formadores do São Francisco, causando prejuízos e danos à saúde de ribeirinhos, indígenas, agricultores e outras comunidades da bacia hidrográfica.

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A investigação conduzida pelo Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) corrobora o que Helena Taliberti afirma. A mineradora sabia dos problemas na estrutura e não tomou medidas que poderiam ter evitado a catástrofe. Estudos e consultorias maquiados, que validaram a declaração de estabilidade da barragem, mostram como a empresa tratou a segurança com negligência criminosa. Um gerente-executivo da Vale chegou a classificar internamente a estrutura como “tenebrosa”.

O MPMG acusou criminalmente 16 pessoas – funcionários da Vale e da consultoria alemã Tuv Sud – por 270 crimes de homicídio duplamente qualificado, além das duas empresas, que também respondem por crimes ambientais. A ação penal segue no Tribunal de Justiça de Minas Gerais. A Tuv Sud, que assinou o laudo de estabilidade da barragem quatro meses antes do rompimento, também enfrenta ação judicial na Alemanha. A empresa afirma que não tem responsabilidade legal pelo rompimento.

A investigação criminal da tragédia, feita pelo MPMG e pela Polícia Civil, demandou grande esforço em razão da alta complexidade para definir a responsabilidade penal de cada um dos denunciados. Para ter uma ideia, o inquérito policial ouviu quase 200 pessoas, analisou mais de seis milhões de arquivos digitais e produziu 85 volumes. O promotor Carlos Eduardo Ferreira Pinto, coordenador de Meio Ambiente do MPMG, não tem dúvidas de que a Vale sabia da falta de segurança da barragem. “Desde 2017, a empresa tinha ciência da situação crítica para risco geotécnico. Em 2018, houve uma situação de emergência. O alto escalão da empresa tinha conhecimento e não tomou as cautelas necessárias”.

 

O desastre de Brumadinho também é considerado, pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), o maior acidente trabalhista da história do Brasil, já que a maioria dos mortos é de funcionários da Vale e terceirizados. O rompimento aconteceu na hora do almoço e não deu a menor chance de fuga aos empregados que lotavam o refeitório, explicação para as quase três centenas de vítimas. Tanto o refeitório quanto o escritório do complexo minerário e a sirene de emergência ficavam abaixo da barragem, o que dá bem a medida do descaso da empresa com a segurança dos trabalhadores e das povoações em volta. A sirene foi engolida pela lama antes que pudesse soar o alerta.

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Um dos trabalhadores que estava no refeitório era o eletricista Denilson Rodrigues, 49 anos, na Vale havia 17 anos. Naquele dia, ele tinha ido almoçar mais cedo porque teria treinamento de segurança à tarde. Não houve tempo. Quem conta o infortúnio da troca de horário é sua filha, Marcela, 27 anos, inconformada com a irresponsabilidade da empresa em relação à segurança dos funcionários. “Nunca vou aceitar o fato de que o refeitório ficava abaixo da barragem. Era praticamente um galpão. Não iria custar tanto pra empresa construir outro refeitório e o escritório num lugar seguro. Por que não fizeram isso?”, questiona.

Vinte dias depois do colapso, o corpo de Denilson foi identificado por meio de amostras de DNA. Era o mais velho de três irmãos. Seus pais, Roberto, 77, e Maria da Conceição, 75, nunca se recuperaram completamente do baque. A viúva, Maria José, e dois filhos ficaram tão traumatizados que se mudaram para Vitória (ES), tentando afastar as lembranças. Apenas Marcela ficou em Brumadinho, ajudando a mobilizar outras vítimas a obter as reparações devidas. “Transformei meu luto em luta”, afirma ela, uma das demandantes da ação contra a Tuv Sud, na Alemanha.

Quase todo morador de Brumadinho conhecia alguém que morreu ou que perdeu parente ou amigo. “O mais difícil é acompanhar a busca pelos corpos. A gente aprendeu a falar a linguagem dos legistas”, relata Marina Paula Oliveira, coordenadora de projetos para as comunidades atingidas da Arquidiocese de Belo Horizonte, que perdeu vários amigos. Nesses dois anos, ela tem vivido de perto os problemas da relação dos atingidos com a Vale. Uma das maiores dificuldades, relata, é a empresa reconhecer pessoas como atingidas e definir os danos sofridos.

Marina afirma que entre os sobreviventes e parentes dos mortos muitos têm problemas de saúde físicos e emocionais, como depressão, doenças respiratórias e dermatológicas. “A venda de antidepressivos nas farmácias de Brumadinho explodiu. Eu já recebi pedido de socorro de pessoas pra comprar os remédios em outras cidades porque aqui não estavam mais encontrando”, narra Marina. Outro problema é o abastecimento de água. “Até hoje, recebemos pedidos de doação de água na Igreja, de comunidades que não são reconhecidas como afetadas. Fornecer água para a população é uma obrigação da empresa, não da Igreja”, critica Marina.

O estudo mais completo sobre a qualidade da água do Rio Paraopeba foi feito pela SOS Mata Atlântica, ao longo de 356 quilômetros, entre Brumadinho e Felixlândia, já na formação do Lago de Três Marias, a jusante do Reservatório de Retiro Baixo, no Alto São Francisco. O exame das amostras coletadas em janeiro de 2020 mostrou a contaminação da água por metais pesados, o que a torna totalmente imprópria para consumo humano, de animais e para irrigação de lavouras.

Em média, as concentrações de ferro estavam 15 vezes superiores ao nível máximo permitido pela legislação; cobre, em concentrações 44 vezes mais altas; cromo e manganês,14 vezes acima dos limites máximos permitidos. Já o sulfeto (que pode ser decorrente da drenagem ácida da mineração) foi encontrado em concentrações 211 vezes superiores ao máximo estabelecido em lei. “Esses metais pesados são reconhecidamente poluentes severos e podem causar diversos danos aos organismos, desde interferências no metabolismo e doenças até efeitos mutagênicos e morte”, afirma o relatório da SOS Mata Atlântica.

A bióloga Marta Ângela Marcondes, professora da Universidade Municipal de São Caetano do Sul, participou da coleta e análise das amostras. Baseada no que viu no Paraopeba, ela tem dúvidas sobre a capacidade de regeneração do rio. “O rejeito ainda está lá. Isso muda completamente a dinâmica do rio. A perda de microbioma é incalculável. Morreram toneladas de peixes e moluscos, a vegetação aquática, a mata ciliar. Uma das coisas mais impressionantes quando percorri o rio foi o silêncio. Não se ouve um inseto, uma ave. A lama é biocida, mata tudo. Quero acreditar que o rio será resiliente e terá capacidade de se reestruturar. Mas, realmente, ninguém pode afirmar que isso será possível”, avalia a pesquisadora.

O desastre de Brumadinho aconteceu três anos após outra grande calamidade associada à indústria da mineração no Brasil, o rompimento da barragem de Fundão, da mineradora Samarco, em Mariana, também em Minas Gerais. A lama de Fundão matou 19 pessoas, destruiu três povoados e contaminou o Rio Doce. O promotor Carlos Eduardo Ferreira Pinto esteve à frente das investigações do caso Samarco e afirma: “Mariana foi o começo de Brumadinho. Em 2015, afirmei que outros desastres viriam pela forma como as empresas atuam e sua relação com o poder político. Infelizmente, a previsão se confirmou”, lembra.

Outras barragens ameaçam a população. O levantamento mais recente do MPMG mostra que o Brasil tem 47 bloqueios de rejeitos em nível de emergência. Desse total, 42 ficam em Minas Gerais e 31 são da Vale. Depois da catástrofe de Brumadinho, a legislação federal e estadual de barragens mudou. Agora, por exemplo, não é mais permitido construir barragens de rejeito pelo método de alteamento a montantem muito usado pelas empresas por ser mais econômico, porém mais inseguro porque a estrutura vai sendo erguida aos poucos sobre o próprio rejeito de minério, depois de drenado e assentado. Tanto em Mariana quanto em Brumadinho as construções eram de alteamento a montante. “A legislação brasileira melhorou, mas ainda é insuficiente. É mais permissiva do que no Canadá e na Austrália, dois países onde a atividade de mineração é muito importante na economia”, avalia o promotor.

Na visão dele, porém, os avanços na legislação não resolvem tudo. “Nem a melhor lei do mundo vai ser capaz de evitar novas tragédias, se a sociedade não cobrar do poder político o investimento em políticas públicas ambientais. É muito preocupante quando vemos, neste momento, um enfraquecimento do Estado brasileiro no que se refere ao meio ambiente. A sociedade tem que cobrar que uma política pública relevante no setor”, defende.

Neste 25 de janeiro, as famílias de Brumadinho vão mais uma vez se reunir para honrar a memória de seus mortos, de maneira virtual ou em eventos menores por causa da pandemia. Em São Paulo, as homenagens ficarão por conta do Instituto Camila e Luiz Taliberti, criado por Helena e pelos amigos dos dois irmãos, seis meses depois do desastre. “O instituto tem sido a minha sustentação. Procuro transformar a minha dor, que sempre vou carregar, em ação produtiva. Não quero que a raiva e a indignação me paralisem. Isso não vai me levar a nada”, constata ela.

O Instituto Camila e Luiz Taliberti se dedica a dar voz aos atingidos e a promover ações relacionadas aos ideais dos dois irmãos. Camila era advogada e ativista pelos direitos das mulheres. Luiz, arquiteto e ligado a temas ambientais. “Sempre vou continuar lutando e pressionando para que se faça justiça. Se não assistir a esse dia, os amigos e amigas dos meus filhos vão continuar lutando e verão esse dia chegar. As 272 vidas que se foram querem isso de nós”, afirma Helena.

A mesma disposição de lutar impulsiona outras pessoas que sofrem com as consequências da tragédia. “Decidi ficar em Brumadinho para honrar a memória do meu pai. Nossa família foi feliz aqui. Lembro todos os dias como ele me esperava chegar em casa, deitado no sofá. É muito difícil, um desgaste emocional muito grande. Mas o ativismo me dá esperança e me ajuda a ver um sentido em tudo isso”, explica Marcela Rodrigues.

Marta, a professora que estuda a água do Paraopeba, diz que será necessário monitorar o rio por uma década, no mínimo, para avaliar suas transformações. “O rio não morre, mas ele foi maltratado. Digo que é preciso dar voz ao rio, o que significa ouvir as pessoas que dependem dele para sobreviver. Essas vozes não podem se calar”, prega a bióloga. Marina Oliveira, que dá assistência aos atingidos, deixa uma reflexão: “Ninguém mais precisa morrer para a gente abrir os olhos para esse modelo predatório de mineração. A vida tem que estar na centralidade, não o lucro”.

Cristina Serra

Trabalhou nas redações dos jornais Resistência, Leia Livros e Jornal do Brasil, da revista Veja e da Rede Globo. Cobriu o desastre de Mariana, em 2015, para o Fantástico. Escreveu o livro "Tragédia em Mariana - A história do maior desastre ambiental do Brasil" (Record).

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