Como saber se minha roupa foi feita por trabalho escravo?

Trabalhadora boliviana em fornecedora da Animale: grife entrou para a lista suja do trabalho escravo (Foto: Reprodução/Repórter Brasil)

Aplicativos, índices, etiquetas e ateliês abertos à visitação estão entre as iniciativas do setor para deixar a moda mais transparente

Por Fernanda Baldioti | ODS 12 • Publicada em 4 de março de 2019 - 08:00 • Atualizada em 21 de novembro de 2022 - 16:27

Trabalhadora boliviana em fornecedora da Animale: grife entrou para a lista suja do trabalho escravo (Foto: Reprodução/Repórter Brasil)

A nova “lista suja” do trabalho escravo foi divulgada nesta quarta-feira pelo Ministério da Economia. Nessa versão, foram incluídos 48 estabelecimentos. Ao todo, há 186 nomes de empregadores, todos autuados por auditores fiscais. Entre eles, a Animale, grife que pertence ao grupo Soma (assim como Farm, Fábula, A. Brand, FYI, Foxton e Off Premium) e é acusada de subcontratar costureiros imigrantes bolivianos e os submeter a jornadas de mais de doze horas por dia. A fiscalização do extinto Ministério do Trabalho flagrou, em setembro de 2017, o crime em três oficinas na região metropolitana de São Paulo.

Mais: A roupa de algodão que você veste é realmente sustentável?

A Animale justificou que um fornecedor da marca subcontratou, sem consentimento da empresa, serviços de costura onde foram constatadas as irregularidades, descumprindo inclusive o contrato de prestação de serviços. Em nota, a marca informou que após a autuação, tomou as medidas necessárias para tornar mais rigorosa a fiscalização de sua cadeia produtiva, e classificou o ocorrido como um “fato isolado”.

São pessoas que ganham por peça e trabalham de 14h a 16h para ter um valor digno de salário. Isso tem a ver com quanto as empresas pagam pelo produto

André Campos
ONG Repórter Brasil

Não é o que parece se levarmos em conta que outras 37 marcas da moda já foram envolvidas com trabalho escravo no Brasil, segundo constatou o aplicativo Moda Livre, desenvolvido pela “Repórter Brasil”. O aplicativo está disponível no Google Play e na Apple Store e avalia desde 2013 as ações adotadas para combater o trabalho escravo entre seus fornecedores. Segundo levantamento do aplicativo, mais de 400 costureiros e costureiras foram encontrados em condições análogas às de escravos no Brasil desde 2010. As vítimas mais comuns são migrantes sul-americanos que trabalham em oficinas em condições degradantes. São locais suscetíveis a incêndios, marcados pela falta de higiene e que muitas vezes também servem de moradia aos trabalhadores.

O app Moda Livre - Foto: Divulgação
O app Moda Livre – Foto: Divulgação

“Atribuir o problema às terceirizadas é uma das respostas mais recorrentes das marcas. Mas apesar de ocorrem numa terceirizada, o problema tem a ver como esta rede de produção, que é estruturada a partir do topo. São pessoas que ganham por peça e trabalham de 14 a 16h para ter um valor digno de salário. Isso tem a ver com quanto as empresas pagam pelo produto. Esses arranjos são parte do problema que leva a esse trabalho escravo”, avalia André Campos, da ONG Repórter Brasil, que cuida do projeto do Moda Livre.
Moda Livre.

A ONG envia um questionário para marcas e varejistas de moda que atuam em território brasileiro, e as respostas servem como base para classificar as empresas nas categorias: verde (empresas que acompanham sua cadeia produtiva e têm um bom histórico de avaliações), amarela (marcas que têm um histórico negativo apesar de demonstrarem mecanismos para acompanhar a cadeia de produção), e vermelha (quando uma marca não é transparente e não responde ao questionário).

Das 132 marcas atualmente avaliadas, mais de 40% têm a pior avaliação dentro do aplicativo. Isso porque elas não informam se têm qualquer tipo de ação ou política para evitar o trabalho escravo. André acredita que, por meio da pressão dos consumidores, esse número pode mudar:

“Este é um setor particularmente sensível à sua imagem. Nesse sentido, o consumidor tem um poder grande de influenciar como as empresas gerem seu negócio”.

Índice de Transparência da Moda Fashion Revolution

É também o que acredita representantes do “Índice de Transparência da Moda Fashion Revolution”, que surgiu após a tragédia de Bangladesh e fez sua primeira edição brasileira no ano passado. Foram avaliadas vinte marcas e varejistas da moda. O principal indicador da pesquisa é a transparência da indústria, e as marcas são pontuadas de acordo com a forma que comunicam suas atividades ligadas à responsabilidade socioambiental ao público. As empresas C&A e Malwee ficaram no topo do ranking, com 53 e 51% dos pontos, respectivamente.

Artesã com cartaz do Fashion Revolution - Divulgação
Artesã com cartaz do Fashion Revolution – Divulgação

Oito marcas foram consideradas não transparentes, já que obtiveram pontuação final igual a 0%: Brooksfield; Cia Marítima; Ellus; John John; Le Lis Blanc Deux; Melissa; Moleca e Olympikus. Isso não significa, necessariamente, que elas não tenham boas práticas e iniciativas, mas que, no momento da pesquisa, não compartilhavam publicamente nenhuma informação sobre os temas investigados.

A gestora do projeto e diretora educacional do Fashion Revolution Brasil, Eloisa Artuso, ressalta que, além de servir como meio de informação para os consumidores, o índice busca ser uma ferramenta para as marcas refletirem sobre as próprias práticas. Ela explica que são analisadas informações disponibilizadas pelas empresas em seus sites ou em relatórios anuais de sustentabilidade e códigos de conduta.

“Não dependemos da autorização prévia das marcas porque só lidamos com informações públicas. Convidamos as marcas que estão sendo analisadas a participarem por meio de um questionário com mais de 200 perguntas. Analisamos relatórios anuais que, muitas vezes, tem mais de 300 páginas, ou informações que estão em páginas mais escondidas do site”;

Segundo Eloisa, entre a primeira e última etapa do relatório, houve um crescimento de 122% na disponibilização de dados por parte das empresas. Ao longo do questionário, as questões de trabalho e ambientais são abordadas sob diferentes perspectivas, como número de funcionários, auditorias nos fornecedores, salário mínimo, diferença salarial por gênero…

“O consumidor tem tido papel fundamental ao cobrar mais informações das marcas. Essa mudança de mentalidade tem influenciado a maneira como as marcas lidam com transparência e sustentabilidade. O Fashion Revolution nasceu pelo desastre de Bangladesh, o pior da indústria da moda. É muita gente morrendo no mesmo dia porque estavam produzindo, em condições precárias, roupas para saciar a vontade de consumo do mundo. Esse dia 24/04 virou um marco para que a gente relembre e não permita que aconteça mais algo desse tipo”, afirma Eloisa.

Selo Abvtex

Atualmente, a Associação Brasileira do Varejo Têxtil (Abvtex) também publica a relação de confecções aprovadas pelo seu programa de certificação. Além de combater o trabalho análogo à escravidão e trabalho infantil, o programa busca estimular práticas ambientalmente corretas dentro do varejo da categoria. Mais de 30 mil auditorias foram realizadas desde 2010 e 3.738 empresas obtiveram a certificação, o que beneficia mais de 300 mil trabalhadores formais. Há duas maneiras principais do consumidor identificar as marcas e os fornecedores que se uniram-se a favor da sustentabilidade e responsabilidade socioambiental: pela lista de varejistas signatárias do programa e sua classificação e pela lista de fornecedores aprovados.

De olho nas costureiras

Para além das gigantes do setor, marcas menores também já buscam a transparência em seus modelos de negócio. A Lab77, por exemplo, reúne em um só lugar loja, fábrica, escritório e ateliê. Tudo funciona de forma integrada no Shopping Downtown, na Barra da Tijuca, onde o cliente pode acompanhar todos os processos da empresa.

Não éramos mais transparentes por vergonha de tão pequenos que a gente era

“Os clientes podem ver as costureiras e os cortadores trabalhando. Para quem tem só escritório de criação, esse controle é muito mais custoso, nem sempre os fornecedores são transparentes. Parte da nossa produção é feita em Blumenau, mas procuramos uma facção que se adequava à nossa maneira de ver o mundo. Só trabalhamos com malhas certificadas, o que deixa implícito que a empresa cumpriu não só as exigências ambientais como as sociais”, afirma Guilherme Pecegueiro, um dos sócios e o diretor-criativo da Lab77.

Como a grife só produz sob demanda, não gera desperdício com a perda de estoque. Depois que a peça é desenhada, vira um produto virtual disponível para compra. Após a compra, a Lab77 fabrica o modelo e entrega ao cliente.

Não dá para uma pessoa usar uma roupa duas vezes e depois aquilo não ter mais sentido no guarda-roupa dela

Pelo Instagram, os seguidores da marca podem acompanham nos stories a rotina de quem trabalha e perceber, de cara, que a costureira Rute é evangélica e que adora cantar ou que a dona Aurora morre de saudades da Colômbia, sua terra natal.

“Não éramos mais transparentes por vergonha de tão pequenos que a gente era. Eu atendia o telefone, respondia email…”.

A etiqueta que faz diferença

O crescimento da marca também mudou a postura da Augustana, cujas peças atemporais, inspiradas no estilo e vida chique e descomplicado da carioca, vêm com uma etiqueta que informa muito mais do que aquelas clássicas informações obrigatórias. O código de barras impresso na tag leva à página da roupa correspondente no site da marca, onde é possível saber quanto custou a estamparia, o tecido, os aviamentos, a despesa operacional, os impostos e até a embalagem do produto em questão. O consumidor pode conferir também o nome de quem confeccionou aquela peça.

Roupas da Augustana (Foto: Divulgação)

Natalia Paes, Augustana, explica que a ideia de justificar o preço surgiu como forma de levar mais consciência ao consumidor sobre os custos de produção:

“A marca vai fazer cinco anos. Quando eu comecei o negócio, era um hobby. No processo de evolução da marca, passei a trabalhar com fornecedores certificados. E isso encareceu o produto. Resolvi explicar porque o preço aumentou. Eu me incomodava com o valor, mas também não queria espremer a costureira que trabalha comigo e tampouco me render a uma matéria-prima da China, produzida sabe-se lá como”.

Para acompanhar a produção, Natalia visita as confecções terceirizadas a cada 15 dias, em média, o que, como ela mesma ressalta, só é possível pelo tamanho da marca e pela quantidade de terceirizadas. Para além dos custos e das condições de trabalho, Natalia explica que, por meio das etiquetas, também é possível conferir o quanto o produto é sustentável. Se ele é feito de matéria-prima orgânica, se é vegano…

“Sempre consumi moda de forma inconsequente. Busco que a Augustana seja uma marca mais ligada ao bem-estar e não uma marca fashionista. Não dá para uma pessoa usar uma roupa duas vezes e depois aquilo não ter mais sentido no guarda-roupa dela”, diz ela, lembrando que hoje Reserva e a Alhma têm tags semelhantes quanto ao conteúdo que é informado ao consumidor.

Fernanda Baldioti

Jornalista, com mestrado em Comunicação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), trabalhou nos jornais O Globo e Extra e foi estagiária da rádio CBN. Há mais de dez anos trabalha com foco em internet. Foi editora-assistente do site da Revista Ela, d'O Globo, onde se especializou nas áreas de moda, beleza, gastronomia, decoração e comportamento. Também atuou em outras editorias do jornal cobrindo política, economia, esportes e cidade.

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2 comentários “Como saber se minha roupa foi feita por trabalho escravo?

  1. LUCIANA disse:

    que legal esta materia, vou baixar o app agora msm – e pegar no pé de todos aqui em casa para que divulguem e PRATIQUEM consumo consciente assim

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