ODS 1
Avanço dos agrotóxicos ameaça permanência de quilombolas cercados por fazendas
Uso indiscriminado de veneno dificulta produção agroecológica de comunidades tradicionais e já provoca expulsão de moradores; situação é mais grave em áreas não tituladas
Uso indiscriminado de veneno dificulta produção agroecológica de comunidades tradicionais e já provoca expulsão de moradores; situação é mais grave em áreas não tituladas
Museu, estátua e nome de rua: Dona Joaquina (1752-1824) é figura lendária em Pompéu, município de 32 mil habitantes na região central de Minas Gerais. Em seu testamento constam “11 fazendas, 40 mil cabeças de gado, centenas de escravos, baixelas de prata, bandejas, barras de ouro e outros tesouros”. O escravizado responsável pela ordenha de vacas em uma das propriedades de Dona Joaquina deixou descendentes, que se fixaram no local ainda no século 19, após a morte da antiga dona. O terreno, a 22 km do centro de Pompéu, teria sido doado à época pelos filhos da fazendeira e deu origem ao quilombo Saco Barreiro.
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Segundo a Federação das Comunidades Quilombolas do Estado de Minas Gerais (N’ Golo), Saco Barreiro ocupa hoje 1% de sua área original. O restante teria sido apropriado ao longo dos últimos 40 anos pela empresa Agropéu, que produz açúcar, etanol e energia a partir do bagaço da cana.
Cercados por canaviais, quilombolas denunciam há mais de uma década o envenenamento e a expropriação do território. Até a criação de vacas, resquício dos tempos de Dona Joaquina, precisou ser interrompida. “O leite começou a amargar, aí tivemos que desistir. A gente acha que é por causa do veneno”, atesta Wilton de Almeida, presidente da associação de moradores de Saco Barreiro e bisneto do fundador da comunidade. A associação também atribui aos agrotóxicos a morte de dezenas de galinhas e o apodrecimento de frutas em seus pomares, antes mesmo de madurar.
Esta é a segunda reportagem da série sobre impacto dos agrotóxicos em comunidades quilombolas, que descreve a dificuldade de permanência nos territórios e o uso de pesticidas como ferramenta de expulsão. A primeira discorre sobre os reflexos na saúde dos moradores, e a terceira apresenta o desafio de responsabilização dos fazendeiros e empresas acusadas de contaminar comunidades tradicionais.
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Encolhimento
O processo de titulação da área de Saco Barreiro tramita no Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra) desde 2009. O Relatório Técnico de Identificação e Delimitação está em elaboração há cinco anos, mas as perspectivas de regularização são remotas: nenhuma das 339 comunidades reconhecidas pela Fundação Palmares no estado jamais foi titulada.
“A questão fundiária para negros e negras no Brasil poderia ter sido resolvida na época da abolição. Não havia tanta sobreposição de terras e sabia-se exatamente quem eram os que se diziam donos. Isso não foi feito, e por isso há tantos conflitos hoje”, analisa Kátia Penha, coordenadora da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq) pelo Espírito Santo.
Jesus Rosário Araújo, membro da Federação N’Golo, critica a omissão da atual gestão da Fundação Palmares nos processos de regularização fundiária. “Muitos quilombolas não têm documento que prove que o território ocupado é seu. Por outro lado, os invasores conseguem documentação falsa, porque têm relações com o poder econômico”, analisa. “O envenenamento é mais uma tática de expulsão dos povos dos seus territórios, e o cenário é mais difícil por conta da não titulação”.
Das 37 famílias registradas no Incra em 2009, só 17 continuam em Saco Barreiro. Algumas moram a menos de 50 metros dos canaviais.
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Veja o que já enviamosO êxodo rural se intensificou nos últimos 15 anos, depois que a Agropéu passou a utilizar aviões pulverizadores. Em 2012, por exemplo, uma quilombola foi atingida por um jato de veneno, desmaiou e foi levada a um posto de saúde no centro de Pompéu. Depois do ocorrido, passou a sofrer ataques epiléticos, precisou tomar remédios controlados e não voltou à comunidade – mudou-se para o município de Pitangui (MG), aos cuidados de uma sobrinha.
Outro fator que desestimula a permanência no território é a dificuldade cada vez maior de obter renda a partir da produção de alimentos. “O pessoal sabe que tem muito agrotóxico aqui perto e não compra mais nossa verdura orgânica na feira”, lamenta Wilton de Almeida. “A couve amarela as pontas por causa do veneno, a cebola fica ‘sapecada’. Então, sobra muita coisa que a gente não consegue vender, e acabamos dando para o porco”.
A feira de produtos orgânicos acontece todo sábado no centro de Pompéu. Para não voltar de bolso vazio, a alternativa encontrada temporariamente por algumas famílias é o cultivo e venda de plantas ornamentais, como a samambaia. Por não ser um alimento, o risco de contaminação por agrotóxicos afasta menos a clientela, explica uma das moradoras.
Alguerino Thomaz de Almeida, de 74 anos, diz com orgulho ser o neto mais velho dos fundadores do quilombo. O Córrego do Pari, que atravessa a comunidade, é o cenário das melhores lembranças da infância. “Essa água era clarinha. A gente pescava. Eu adorava ficar ali, deitado, e a água passando, refrescando”, lembra o idoso, com os olhos marejados. “Hoje, não dá mais para comer o peixe. Se tomar banho, sai com a pele pinicando. Só falta arrancar o couro”.
Conforme os moradores abandonam suas casas, a área ocupada pelo quilombo encolhe. Atualmente, é inferior a sete hectares, e não há sequer placa indicando o caminho em meio aos canaviais – a reportagem foi guiada até a comunidade pela Coordenação de Mulheres Quilombolas do Estado de Minas Gerais (Mariana Crioula).
Na última vez que os quilombolas tentaram sinalizar o trajeto, a placa durou pouco: foi alvejada e, em seguida, retirada pelo presidente da associação de moradores, que cita o episódio como tentativa de intimidação.
“Não vai sobrar ninguém”
Quase 1.300 km ao norte de Saco Barreiro, no interior da Bahia, Magda* planeja deixar o local onde viveu as últimas duas décadas com o esposo. As plantações de cebola, que no verão passado estavam a 1 km de sua casa no quilombo Velame, em Morro do Chapéu (BA), se aproximam a cada ano. “A gente vê terra sendo preparada para plantar a uns 50 metros de casa. Se hoje o cheiro do veneno já é insuportável, imagina no final do ano?”, questiona a moradora, em referência ao período mais intenso de pulverização. “Se continuar assim, não vai sobrar ninguém no Velame. Todo mundo vai ter que ir embora”.
Magda trabalha como diarista em fazendas vizinhas de cebola e tomate. “Uma noite precisei ir para o hospital por causa do veneno, mas os médicos nem querem saber o que é. Dão uma olhada na pressão, dão um remedinho e é isso”, reclama.
O processo de titulação do Velame foi protocolado no Incra em 2008, mas não avançou. “Só a titulação vai dar garantias para os nativos permanecerem no território, produzirem para seu próprio sustento e comercialização e viverem com mais dignidade”, defende a Associação Comunitária dos Agricultores Remanescentes de Quilombo do Velame, em resposta coletiva à reportagem.
Relatos de intoxicação por agrotóxicos também são recorrentes em quilombos vizinhos. “Tem pessoas que é como se tivessem pego uma gripe crônica, que não sara. É aquela rouquidão permanente, dor de cabeça, nos olhos, irritação”, conta uma moradora da comunidade Ouricuri II, que prefere não se identificar. “Fica difícil permanecer. Como as áreas não são regularizadas, as pessoas acabam vendendo os terrenos e indo embora. No fim das contas, estamos sendo expulsos, pouco a pouco”.
Quilombolas também acusam fazendeiros de perfurar poços indiscriminadamente, comprometendo o acesso das comunidades à água em plena caatinga. “Quando os poços secam, os fazendeiros vendem tudo e vão plantar em outro lugar. E a gente fica com o prejuízo”, resume um dos moradores do Velame.
Segundo Valdineia Alves, que integra o Conselho Estadual das Comunidades e Associações Quilombolas do Estado da Bahia (CEAQ/BA), queixas relacionadas a pesticidas se tornaram mais frequentes nos últimos dez anos na região. “Na estrada que vai do quilombo Barra II [a 50 km do Velame] para Morro do Chapéu, o cheiro é muito forte. Já tivemos casos de alunos passarem mal dentro do transporte escolar, que passa perto das fazendas”, relata.
Francisca* e seu filho de 14 anos moram no Velame e têm bronquite. “A primeira coisa que a gente sente é náusea. Depois, a boca seca, fica amargando. Às vezes, dá a sensação de falta de ar e tem que ir para o hospital fazer inalação”, descreve. “Já trabalhei muito em roças de cebola, mas parei por indicação médica. Tinha vezes que eles jogavam veneno e, dois dias depois, a gente já estava trabalhando na terra, sem equipamentos de proteção”.
Energia limpa?
Diferentemente dos quilombos Velame e Saco Barreiro, a comunidade Santo Antônio, em Concórdia do Pará (PA), tem seu território regularizado. A titulação ocorreu em 2010, abrangendo outras três áreas quilombolas e totalizando 180 famílias. Na época, os moradores sentiam os primeiros impactos do monocultivo de dendê, a exemplo do que ocorrera anos antes nos municípios vizinhos Moju, Tomé-Açu, Tailândia e Acará. “Pessoas foram impelidas a se retirar, sob a ameaça da bala e por conta de fraudes documentais. Foi uma violência colonial mesmo, que perpassa o controle dos corpos, dos territórios, da vida das pessoas”, analisa Elielson Pereira da Silva, doutor em Ciências com ênfase em Desenvolvimento Socioambiental pela Universidade Federal do Pará (UFPA).
O cultivo de dendê na região foi impulsionado pelo Programa Nacional de Produção e Uso de Biodiesel (PNPB), lançado pelo governo federal em 2004 para substituir gradualmente os combustíveis fósseis por energia limpa.
O solo e o clima da Amazônia são propícios para o crescimento da planta, cujo óleo também é utilizado pelas indústrias alimentícia, farmacêutica e de lubrificantes. “O discurso era de que os biocombustíveis iriam dominar o mercado internacional de commodities. Houve então uma corrida desenfreada por terras, que fez disparar o preço do hectare e elevou as pressões sobre as comunidades”, lembra Silva. Em Concórdia do Pará, a empresa que domina o monocultivo é a Brasil BioFuels (BBF), que em 2020 adquiriu a Biopalma, então subsidiária da mineradora Vale.
A angústia com o avanço do dendê é maior em comunidades não tituladas, como a do Cravo, vizinha a Santo Antônio. “Há alguns anos, famílias começaram a vender suas terras para a empresa, o que é proibido pelo estatuto da associação de moradores”, explica uma liderança quilombola, que também não quis se identificar. “Nossa maior preocupação é com a cabeceira [nascente] do igarapé Cravo, que foi desmatada. A cabeceira está nua e crua, um verdadeiro lamaçal, e a BBF não para de jogar o rejeito”, denuncia, referindo-se à tiborna, resíduo químico da produção do dendê.
“A empresa espalha esse material com o pretexto de realizar ‘fertirrigação’, alegando que isso não causaria nenhum problema. Porém, há registros de que esse resíduo chega ao leito dos rios, aos igarapés, causando a morte de peixes”, observa o pesquisador Elielson Pereira da Silva.
Doutor em Química com experiência nas áreas de Meio Ambiente e Saúde Coletiva, Marcelo de Oliveira Lima lembra que a tiborna não é um adubo qualquer. “É o resíduo de um cultivo que utiliza muito veneno”, enfatiza o pesquisador.
Lima foi um dos responsáveis pelo estudo do Instituto Evandro Chagas (IEC) que constatou a presença de agrotóxicos organofosforados, como o glifosato, no organismo de moradores da comunidade Santo Antônio. “A carga orgânica tem aumentado muito nas águas dessa região, causando um boom de cianobactérias, que comprometem a oxigenação dos rios. Isso ajuda a explicar, por exemplo, a mortandade de peixes”.
Em abril, quilombolas de Concórdia do Pará e do município vizinho Bujaru publicaram uma carta aberta denunciando os danos observados em rios e igarapés e acusando a BBF de racismo ambiental.
A empresa respondeu que “não comete racismo ou qualquer outro ato de preconceito contra quem quer que seja e mantém diálogo contínuo com as aldeias indígenas e com as comunidades quilombolas”.
Tragédia dupla
Além de estar rodeado por monocultivos de cana, o quilombo Saco Barreiro foi incluído este ano entre as comunidades atingidas pelo rompimento da barragem da mineradora Vale em Brumadinho (MG), em 2019.
A água do Córrego do Pari, que banha a comunidade, está imprópria para consumo. Os níveis de ferro, segundo coleta realizada em novembro de 2021, estavam 4,9 vezes acima do limite permitido. A cor e a turbidez também extrapolaram os parâmetros considerados toleráveis.
A análise ocorreu a pedido do Instituto Guaicuy, organização homologada pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais (MPMG) para assessorar tecnicamente as populações atingidas pelo rompimento da barragem. Na mesma ocasião, foi investigada a presença de 15 pesticidas na água do córrego. Nenhum deles estava acima dos níveis permitidos pela Resolução nº 357 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama).
“O método usado tem limitações e não garante que determinado contaminante não esteja presente na água”, pondera Bernardo Beirão, coordenador de Análises Ambientais do Instituto Guaicuy. “O maior problema é que o Limite de Quantificação [LQ], para alguns contaminantes, é igual ao limite da resolução do Conama”.
O LQ é o volume mínimo que o método consegue analisar com precisão. “É como se tivéssemos uma balança para pesar caminhões. Se você botar uma mala de 50 kg em cima dessa balança, ela não vai sentir”, compara Beirão.
Em cinco dos 15 pesticidas analisados no córrego de Saco Barreiro, o LQ era igual ao limite estipulado pelo Conama. Dois deles, Acrilamida e Paration, estão associados a possíveis danos no sistema nervoso e reprodutivo, conforme informação dos fabricantes.
“São raríssimos os laboratórios que fazem análises abaixo do limite permitido. Então, os resultados geralmente não são capazes de afirmar se tem ou não agrotóxico na água”, ressalta Franciléia Paula de Castro, engenheira agrônoma e vice-presidenta regional da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA). “Além disso, os limites não consideram a exposição diária, ao longo de anos, que leva à acumulação dos agrotóxicos no organismo e à contaminação crônica”.
Doutora em Saúde Pública com ênfase em Toxicologia e Saúde, Karen Friedrich acrescenta que o Brasil é mais permissivo que a maioria dos países. “O nível permitido de glifosato na água, por exemplo, é 5 mil vezes maior que na Europa”, lembra ela, que integra o Grupo de Trabalho (GT) Saúde e Ambiente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), organização que apoia a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida. “Outro problema grave é que se analisa um agrotóxico por vez, separadamente. Na prática, porém, a gente entra em contato com misturas. São substâncias que interagem e que causam efeitos mais nocivos quando estão juntas”.
Receosos de beber a água captada no córrego ou em cisternas, moradores de Saco Barreiro percorrem 25 km para matar a sede. Eles enchem seus galões na torneira de um empresário de Pompéu, que tem poço artesiano e permite o uso pelos quilombolas.
Agroecologia e resistência
Além de garantir a subsistência, a produção de alimentos também é a principal fonte de renda das comunidades, por meio do fornecimento a feiras municipais e equipamentos públicos, como creches e hospitais. Sebastião Pereira da Costa, ex-presidente da Associação da Comunidade Remanescente de Quilombos Nova Esperança de Concórdia do Pará (Arquinec) e morador do quilombo Santo Antônio, é uma das lideranças da Associação Bujaruense dos Agricultores e Agricultoras (ABAA). Ele produz mel, frutas e hortaliças e conta com orgulho que o quilombo abastece escolas da região com produtos como farinha, maxixe, mandioca, tapioca e cítricos.
A aposta na produção agroecológica escancara a diferença em relação aos monocultivos da BBF, mas não está imune a seus efeitos. A agricultora quilombola Jacilma Rodrigues da Costa mora na comunidade vizinha, Velho Expedito, e afirma que os agrotóxicos e a tiborna lançados pela empresa prejudicam os cultivos de sua família. “Nossas mangas, acerolas e abacaxis estão cheios de bichos que vieram dos dendezais. No verão, o embuá [piolho-de-cobra] está se proliferando muito rápido. Eles comem as hortaliças, entram na macaxeira, no pepino”, lastima. “No inverno, o problema são as borboletas, que tomam conta da laranja, da tangerina. O pior é o mamão, que está causando um tipo de alergia. Ainda não temos uma solução natural para essas pragas, que cresceram muito com a chegada do dendê”.
Outros meios de subsistência também estão ameaçados. Quilombolas que tinham o hábito de pescar à noite e limpar o peixe no dia seguinte contam que ele tem apodrecido antes dos primeiros raios de sol. “Vários tipos de caça também morrem por causa dessa porcaria. Tatu, paca… até onça já foi encontrada envenenada”, acrescenta a agricultora da comunidade Velho Expedito.
No quilombo Velame, na Bahia, Itamar* precisa fazer barreiras naturais para impedir que o veneno pulverizado em fazendas de cebola e tomate impacte seus cultivos agroecológicos. “O manejo orgânico aqui é super complicado. Eu uso cana e mamona como barreira para o vento. Mesmo assim, as pragas e o cheiro de veneno às vezes vêm para cá”, confirma. “Nos piores dias, eu e minha esposa temos que fazer inalação. Muitas pessoas aqui têm problema respiratório, mas acham que é alergia a alguma coisa”.
Itamar afirma que tem visto cada vez mais formigas em seu terreno. “É mais fácil elas se reproduzirem aqui do que na área do vizinho, do agronegócio”, observa. “O que faço é usar produtos naturais, como mandioca e gergelim, para afastar as formigas. O gergelim é um defensivo natural também. Depois de um tempo, ele acaba matando a formiga”.
A diversidade dos cultivos orgânicos chama a atenção: banana, aipim, mamão, maracujá, alho poró, abobrinha, tomate cereja. A maior preocupação do agricultor é com a segurança alimentar dos quilombolas. “Trinta anos atrás, todo mundo tinha sua terrinha, então se produzia bastante comida. Mas o acesso à água era difícil, então as terras eram baratas, e o agronegócio foi comprando”, lembra. “Tenho um poço artesiano, que é suficiente para manter minha área agroecológica e minha casa. Mas, aqui ao lado, propriedades de 50 a 60 hectares têm entre 15 a 20 poços. Logo pode faltar água para a comunidade”.
Franciléia Paula de Castro, engenheira agrônoma e vice-presidenta da Regional Centro-Oeste da ABA, afirma que os desafios citados por Itamar são recorrentes em áreas próximas a monocultivos. “Muitos deixam de plantar arroz, feijão, plantas mais sensíveis, e substituem por pastagens, que são mais resistentes à pulverização”, observa. “Outro impacto é a migração de pássaros, abelhas e outros insetos, que tentam se refugiar dos agrotóxicos e acabam prejudicando os cultivos agroecológicos. Ou então desaparecem, morrem, comprometendo a polinização”.
No quilombo Saco Barreiro, em Minas Gerais, Wilton de Almeida conta que os pomares vêm sendo afetados há mais de 10 anos pelos agrotóxicos dos canaviais vizinhos: “Dava tanto mamão bonito aqui. Hoje, depois que o pé cresce, vai apodrecendo de cima para baixo, até não dar mais nada. A gente sabe que é o veneno”.
“Esse pé de limão era lindo. Hoje em dia, amadurece antes da hora. Está todo enferrujado”, acrescenta a cunhada, Neide Alves de Almeida. Ela tem um filho e três netos, e nenhum deles mora no quilombo. “Do jeito que as coisas estão, eles não querem ficar”, finaliza.
*Nome alterado a pedido do(a) entrevistado(a).
**Esta reportagem foi financiada por uma bolsa promovida pela Alter Conteúdo Relevante e pelo #Colabora, em parceria com a Fundação Heinrich Böll, para promover e aprofundar o debate sobre o uso de agrotóxicos e suas consequências.
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Jornalista e mestre em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Trabalhou por cinco anos no portal Brasil de Fato, como repórter, editor e correspondente internacional. Autor dos livros "O oligopólio da RBS" (Insular, 2017) e "Dossiê Lava Jato: um ano de cobertura crítica" (Outras Expressões, 2018). Coordena projeto, no escritório latino-americano da organização Repórteres Sem Fronteiras, para aprimoramento dos mecanismos de proteção a jornalistas no continente.