‘A soberania nacional e alimentar foi colocada em jogo’

Horta comunitária no Acampamento Cícero Guedes: para professor da Uenf, iniciativa do MST no Rio pode ser exemplo para novo modelo de produção agroecológica (Foto: Vivi Fernandes de Lima)

Para criador de programa de mestrado em Agroecologia, Brasil sofre com dependência externa no seu modelo de produção agrícola

Por Vivi Fernandes de Lima | ODS 12ODS 2 • Publicada em 8 de setembro de 2021 - 09:28 • Atualizada em 14 de setembro de 2021 - 12:26

Horta comunitária no Acampamento Cícero Guedes: para professor da Uenf, iniciativa do MST no Rio pode ser exemplo para novo modelo de produção agroecológica (Foto: Vivi Fernandes de Lima)

Professor do Laboratório Solos, do Centro de Ciências e Tecnologias Agropecuárias da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (Uenf), desde 2002, Luciano Canellas acompanha o movimento dos trabalhadores rurais sem terra desde 1986, quando entrou para a Faculdade de Agronomia na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), no Rio Grande do Sul. Ele sabe que o interesse desses trabalhadores em agroecologia é recente e reconhece que o MST do Rio de Janeiro tem um papel importante nessa nova forma de produção.

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O professor Luciano Canellas: interesses econômicos impedem ampliação da produção com base agroecológica (Foto: Arquivo Pessoal)
O professor Luciano Canellas: interesses econômicos impedem ampliação da produção com base agroecológica (Foto: Arquivo Pessoal)

Para o professor, os processos de transição nos modelos de agricultura precisam de uma qualificação maior dessas comunidades. E foi este pensamento que contribuiu para a aprovação recente do Mestrado Profissional em Agroecologia e Desenvolvimento Rural Sustentável da Uenf. Nesta breve entrevista, Canellas fala sobre a importância deste programa de formação no Norte Fluminense: “Toda experiência agroecológica é local, é territorializada”, ensina. O tema já está presente na formação dos alunos da Uenf, mas as dificuldades para a ampliação da agricultura com base ecológica não são poucas: “Interesses econômicos muito poderosos são colocados em questionamento com a agroecologia”.

A agroecologia é uma alternativa para gerar emprego, renda e alimentos saudáveis para toda a população. Algo que o agronegócio não faz

Como surgiu a ideia da criação do Mestrado Profissional em Agroecologia e Desenvolvimento Rural Sustentável da Uenf? Qual é seu público-alvo?

Dois fatores concorreram para a criação do curso. O primeiro foi a experiência pioneira do professor Fábio Cunha Coelho, que ofereceu a disciplina de Agroecologia para a Faculdade de Agronomia no início dos anos 2000 e foi acumulando conhecimento e experiência acadêmica. O segundo foi a criação das políticas de Territórios da Cidadania ainda em 2003. Com a política nacional em curso em 2008, foi consolidado o território do Norte Fluminense. São cerca de 25 projetos de assentamento de reforma agrária e seis áreas de quilombolas reconhecidas. Há uma necessidade de qualificar o pessoal que trabalha com essas comunidades e em processos de transição de modelos de agricultura. A política de Ater foi desmontada, mas é preciso continuar a formação dos profissionais.

Qual a importância deste curso no Norte Fluminense?

Toda experiência agroecológica é local, é territorializada. As políticas universais em agroecologia tendem a se dispersar. O grande esforço realizado nos governos anteriores foram praticamente anulados. O que restou são as experiências regionalizadas organizadas pelas ONGs e pelos movimentos sociais. Nesse sentido, um programa de pós-graduação no Norte Fluminense deve fazer toda a diferença.

Quando o curso deve ter início?

Para os movimentos sociais, agricultores familiares, quilombolas e professores vinculados à proposta, o curso já iniciou, é um processo dinâmico que foi disparado com a discussão da criação do programa. Em relação à primeira turma, ainda é uma incógnita. Estamos esperando a Capes abrir o processo de avaliação de novas propostas. Legalmente, o Conselho Universitário da Uenf já aprovou o programa.

Existem outras experiências de cursos de pós-graduação em agroecologia pelo país, como o da Universidade Estadual de Maringá e da Federal do Espírito Santo. Pode-se dizer que há uma tendência para a criação desses cursos?

Não sei se há uma tendência, mas existe um processo em andamento de institucionalização da agroecologia. Ela pode ser entendida em três dimensões que se complementam: como movimento social, como disciplina científica e como prática produtiva. Duas dessas dimensões se encaixam dentro da prática acadêmica.

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Quais são os benefícios da agroecologia?

O capitalismo superou todas as expectativas e levou o processo de exploração do homem e da natureza ao extremo. Estamos nos aproximando perigosamente de um ponto no qual não poderemos retornar mais. O modelo de produção se esgotou e é sustentado por um pacto político que faz com que a sociedade arque com os prejuízos econômicos, sociais e ambientais desse modelo e uma parcela muito pequena fique com a riqueza gerada. Quando o agronegócio tiver que arcar com os custos ambientais da sua exploração e pagar suas dívidas, a casa cai. Outro processo muito perigoso hoje é a dependência externa do modelo de produção agrícola: de sementes a agrotóxicos e, hoje, também os fertilizantes. Ou seja, todos os insumos são importados. O sistema é extremamente frágil porque é dependente de agentes externos. A soberania nacional e alimentar foi colocada em jogo. A agroecologia é uma alternativa para gerar emprego, renda e alimentos saudáveis para toda a população. Algo que o agronegócio não faz. Os benefícios da agroecologia são decorrentes dessa alternativa viável à crise civilizatória em que fomos colocados.

Horta comunitária no Acampamento Cícero Guedes: para professor da Uenf, iniciativa do MST no Rio pode ser exemplo para novo modelo de produção agroecológica (Foto: Vivi Fernandes de Lima)
Irrigação de plantação de hortaliças em acampamento do MST em Campos: professor Luciano Canellas afirma que oposição do agronegócio barra ampliação da agroecologia (Foto: Pablo Vergara/MST)

Qual é a maior dificuldade para o desenvolvimento da agroecologia?

A oposição do agronegócio. Interesses econômicos muito poderosos são colocados em questionamento com a agroecologia. De certo modo, o Brasil ainda pode ser economicamente descrito como um grande fazendão colonial sustentado pela exploração suicida do meio e da mão de obra quase escrava. Os senhores da terra têm um laço estreito com o novo/moderno capitalismo financeiro, mas não abandonaram suas raízes originais.

O acampamento Cícero Guedes, no complexo da Usina Cambahyba, já começou a colher hortaliças produzidas sem agrotóxicos. O que o cultivo alimentar agroecológico representa para essas terras especificamente?

Na minha opinião, não existe um “cultivo agroecológico” pois a agroecologia é um movimento social. A transição de sistemas (do convencional para as agriculturas de base ecológica) tem um papel importante no aprendizado e na cocriação de conhecimento. Na fase inicial, a substituição dos insumos convencionais pelos de origem biológica, a busca por autonomia de sementes e material propagativo, o trabalho coletivo, a inclusão de mulheres e crianças no processo de tomada de decisões e escolhas representam uma construção de um novo ofício de fazer agricultura que constitui a base de uma nova sociedade. Representa, portanto, o início de um processo emancipatório. O fim, não se sabe. São muitos interesses em disputa.

O senhor acompanhou a ocupação anterior da usina? Já havia, na ocasião, uma preocupação agroecológica com a produção?

Sou um apoiador do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra desde 1986 quando entrei para a Faculdade de Agronomia. Essa preocupação com a agroecologia no MST é relativamente nova e o MST do Rio de Janeiro teve um papel importante nessa questão.

Como era a participação de Cícero Guedes nos projetos de extensão que ministrava?

Tive uma estreita ligação com o Cícero. Sempre foi um militante cientificamente curioso e tinha total clareza da necessidade de viabilização técnica-produtiva dos lotes para reforçar a luta pela reforma agrária.

Vivi Fernandes de Lima

Vivi Fernandes de Lima é jornalista formada pelo Instituto de Artes e Comunicação Social da UFF e mestre em Políticas Públicas e Formação Humana pela Uerj. Tem experiência em jornais diários, como O Globo e O Dia; assessorias de comunicação; revistas, como Pesquisa Fapesp e Revista de História da Biblioteca Nacional, e cinema documentário. Dedica-se especialmente aos temas de direitos humanos, cultura, saúde, educação, história e sustentabilidade. É perseguidora de boas histórias e vê pautas por toda parte.

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