Uma corrida de resistência

Segundo a prefeitura, 275 famílias da Vila Autódromo tiveram de deixar suas casas para a construção de via de acesso e recuperação ambiental da faixa marginal da Lagoa

Após anos de batalha, 20 famílias da Vila Autódromo vão continuar no meio do caminho

Por Luis Edmundo Araújo | ODS 11Rio 2016 • Publicada em 1 de agosto de 2016 - 08:00 • Atualizada em 1 de agosto de 2016 - 11:54

Segundo a prefeitura, 275 famílias da Vila Autódromo tiveram de deixar suas casas para a construção de via de acesso e recuperação ambiental da faixa marginal da Lagoa
Segundo a prefeitura, 275 famílias da Vila Autódromo tiveram de deixar suas casas para a construção de via de acesso e recuperação ambiental da faixa marginal da Lagoa
Segundo a prefeitura, 275 famílias da Vila Autódromo tiveram de deixar suas casas para a construção de via de acesso e recuperação ambiental da faixa marginal da Lagoa

Elas estão onde sempre estiveram, no meio do caminho. A poucos passos da Lagoa de Jacarepaguá, entre a grandiosidade do Parque Olímpico e uma fileira de contêineres brancos, estão as últimas casas da Vila Autódromo. Muitas se confundem com os escombros de outras já abandonadas. Nas paredes, habitadas ou não, a lembrança de uma luta que está prestes a terminar:  “Srs. políticos, deem uma trégua em suas ambições. Respeitem a democracia”, diz uma delas. “O governo é um instrumento das empreiteiras”, diz outra. Numa porta de chapa metálica, apoiada num monte de entulho, vê-se o desenho infantil de um casal com uma criança. Em cima, a inscrição: “perdão, não aguentamos a pressão”.

Não é mais o bonde indo para Copacabana, mas o metrô e vias expressas na direção de áreas vazias, com a diferença de que agora há uma coalizão de poder que estrutura de maneira sólida esse empreendimento, com a justificativa de um megaevento e o pleno apoio da grande mídia, buscando legitimar essa política que só beneficia os grandes proprietários dessas terras vazias.

Nessas casas moram onze famílias. Nos contêineres, que funcionam como moradias improvisadas, moram outras nove. Perto dali a movimentação de operários, tratores, caminhões, técnicos e engenheiros da Prefeitura do Rio de Janeiro é constante, barulhenta. O trabalho sem trégua é para entregar as vinte casas brancas previstas no projeto de urbanização da comunidade: imóveis de dois quartos, quintal, redes de drenagem, esgoto, iluminação e pavimentação na Rua Nelson Piquet. Além do paisagismo da área. Um prêmio para as vinte famílias que protestaram, apanharam, receberam ofertas em dinheiro, mas resistiram. Recusaram-se a deixar para trás uma história de vida.

Num dos contêineres vive o professor de educação física Luiz Claudio Silva, que mora na comunidade há 22 anos. Na semana passada, quando voltava do trabalho, dois caminhões e um trator fechavam a passagem. Havia espaço para que o carro estacionasse, mas do banco do carona, com o vidro aberto, Luiz Cláudio ordenava: “Pode ir que eles dão um jeito. Aqui é minha casa. Já aturei muita coisa por aqui. Agora eles que deem o jeito deles”. Um dos caminhões dá ré, o trator vai pra frente, pra trás, um operário arrasta para a lateral algumas ferramentas, um carrinho de mão é afastado e a pista fica livre.

No rol de tudo que Luiz Claudio teve de aturar inclui-se a agressão à mulher, Maria da Penha Macena, 51 anos, que teve o olho esquerdo atingido no dia 3 de junho do ano passado. Moradores tentavam impedir a demolição de uma casa e guardas municipais reagiram usando cacetetes e balas de borracha. Além de Maria da Penha, outras oito pessoas ficaram feridas no episódio. Foi mais um dos muitos momentos de tensão vividos na área desde que se intensificou a pressão da prefeitura para a retirada dos moradores.
A comunidade nasceu no início dos anos 60, em torno de um grupo de pescadores que tirava o seu sustento da lagoa, à época ainda limpa. Cresceu com a chegada dos operários que construíram o antigo autódromo e, depois, com a vinda de mecânicos, que abriram várias oficinas na região. Quando Luis Claudio, Maria da Penha e a filha, Nathália, chegaram à Vila Autódromo, em 1994, havia ainda um certo clima rural. Viam-se capivaras e até jacarés pela lagoa onde ninguém mais entrava para nadar ou tomar banho, como antigamente, mas de onde ainda se tirava o que comer. “Pesquei muito peixe dessa lagoa”, lembra o professor de educação física. A filha, que tinha 7 anos quando a família se mudou para lá, confirma. “Não peguei a época de entrar na lagoa, mas comi muito peixe dela. Havia uma vegetação rica, que não tem mais”, conta Nathália.

Os moradores que saíam tinham a casa demolida e o entulho deixado no local, formando o cenário de terra arrasada que pressionava ainda mais os moradores resistentes
Os moradores que saíam tinham a casa demolida e o entulho deixado no local, formando o cenário de terra arrasada que pressionava ainda mais os moradores resistentes

Um pouco antes da chegada da família à Vila Autódromo, os moradores receberam do então governador Leonel Brizola a concessão do uso dos imóveis que ocupavam, em área pertencente ao Estado. Em 1998, o governador Marcello Allencar renovou o direito por 99 anos, prorrogáveis por mais 99. Desde 1993, no entanto, na primeira gestão de César Maia à frente do município, a prefeitura tentava retirar o pessoal da área. Principalmente da faixa marginal da Lagoa de Jacarepaguá, baseada em leis de proteção ambiental. O que ficou mais difícil de ser realizado depois que a Câmara de Vereadores do Rio aprovou a Lei Complementar 74/2005, que deu ao lugar o título de Área Especial de Interesse Social.

Em outubro de 2009, quando a cidade foi escolhida para sediar os Jogos Olímpicos de 2016, moravam na Vila Autódromo 824 famílias. De acordo com a prefeitura, “a comunidade foi a única impactada na preparação da cidade para a Olimpíada. Parte dos reassentamentos de famílias foi feita para permitir a abertura de vias de acesso e de serviço do Parque Olímpico, e uma parcela deles teve como razão garantir a proteção das faixas marginais da Lagoa de Jacarepaguá e do Rio Pavuninha, áreas de proteção ambiental que estavam ocupadas”.

A mesma prefeitura argumenta que parte significativa dos moradores optou espontaneamente por sair da área. “A partir de 2013 iniciou-se uma forte pressão com ameaças e também propostas financeiras elevadas buscando romper a unidade da comunidade”, discorda o sociólogo e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Carlos Bernardo Vainer, coordenador do Laboratório Estado, Trabalho, Território e Natureza (Ettern), ligado ao Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano (Ippur) da UFRJ.

No Ettern, Carlos Vainer também coordena o Observatório de Conflitos Urbanos, e é um crítico ferrenho da política de expansão da cidade com concentração de investimentos em áreas antes vazias, como a Zona Oeste, que segundo ele segue a tendência do histórico de grandes deslocamentos de população urbana, na sua maioria pobre, do Rio. “Não é mais o bonde indo para Copacabana, mas o metrô e vias expressas na direção de áreas vazias, com a diferença de que agora há uma coalizão de poder que estrutura de maneira sólida esse empreendimento, com a justificativa de um megaevento e o pleno apoio da grande mídia, buscando legitimar essa política que só beneficia os grandes proprietários dessas terras vazias”.

Vainer fala em “urbanicídio” para definir os males que a seu ver atingem a cidade onde esse tipo de política é implementada. “As cidades são grandes aglomerados urbanos, densos e heterogêneos, onde os diversos se encontram. A cultura do convívio faz parte da alma do Rio, e está sendo destruída por essa “guetificação” dos ricos em condomínios fechados, e dos pobres nas periferias. Mata-se o que a cidade tem de específico, único, para que ela passe a replicar os mesmos espaços comuns, idênticos, aos de outras cidades desenvolvidas pela lógica do grande capital, por isso falo em “urbanicídio”.

Muito casamento acabou por aqui. A mulher queria uma coisa, o marido outra e a briga era inevitável.

Feito com base em dados da Secretaria Municipal de Habitação, o livro SMH 2016: remoções no Rio de Janeiro Olímpico (Mórula Editorial), do arquiteto e pesquisador da UFRJ Lucas Faulhaber, aluno de Carlos Vainer, e da jornalista Lena Azevedo, aponta a quantidade de 20.299 famílias removidas na cidade de 2009 a 2013, o que equivaleria a cerca de 67 mil pessoas. “Hoje falaria em algo em torno de 80 mil pessoas reassentadas nessas duas administrações do prefeito Eduardo Paes”, calcula o coordenador do Ettern.

De qualquer maneira, os números já superam os dos dois outros grandes períodos de mudanças, remoções e reassentamentos na cidade: o governo de Pereira Passos (1902-1906), em que uma população de aproximadamente 20 mil pessoas foi removida de suas casas, e a administração de Carlos Lacerda (1961-1965), que registra cerca de 60 mil pessoas removidas. A prefeitura não concorda com esses números e alega que, entre 2009 e 2015, foram reassentadas no Rio 22.059 famílias, “todas já estabelecidas em novas moradias”.

No caso da Vila Autódromo, a construção das 20 casas para as famílias remanescentes é resultado de um termo de acordo administrativo assinado entre a Prefeitura do Rio e a Defensoria Pública do estado e prevê ainda a construção de duas escolas e área de lazer na região. As escolas serão erguidas, de acordo com a Prefeitura, com a estrutura da Arena do Futuro, que durante os Jogos receberá os Jogos de Handebol. O projeto não tem absolutamente nada a ver com o Plano Popular de Urbanização, o projeto desenvolvido pelos próprios moradores em conjunto com o Ippur e o Núcleo de Estudos e Projetos Habitacionais e Urbanos (Nephu) da Universidade Federal Fluminense (UFF), que tinha o custo previsto de R$ 14 milhões e venceu o prêmio Urban Age Award, do Deutsche Bank e da London School of Economics em Political Sciences.

O Plano Popular de Urbanização previa o reassentamento de quem morava às margens da lagoa para o miolo da comunidade, sem remoções. Foi entregue em 2013 ao prefeito, que aceitou começar a negociá-lo após as grandes manifestações populares de junho do mesmo ano. “O projeto foi mudado umas cinco vezes. O prefeito nunca apresentava qualquer proposta e a cada momento vinha com alguma necessidade diferente para a área, alargamento de avenida, ou a construção de um estacionamento para a imprensa nos Jogos, e nós mostrávamos, mais uma vez, que não havia a menor necessidade de acabar com a Vila Autódromo para aquilo”, conta Carlos Vainer.

Em dado momento, a Prefeitura encerrou as discussões sobre o projeto e passou a negociar com cada morador individualmente. “Foi muita pressão. O pessoal da prefeitura vinha aqui em comboio. Falavam que ou a pessoa aceitava a oferta ou ia acabar saindo sem nada. A comunidade acabou dividida e muita gente cedeu”, lembra Nathália. Quem saía tinha a casa demolida e o entulho era deixado no local, formando o cenário de terra arrasada que pressionava ainda mais os moradores resistentes.

Segundo a prefeitura, 275 famílias da Vila Autódromo tiveram de deixar suas casas para a construção de via de acesso e recuperação ambiental da faixa marginal da Lagoa. Para estas famílias foram oferecidas as opções de apartamentos do Condomínio Parque Carioca, a cerca de um quilômetro da comunidade, ou indenização, opções estas escolhidas por 268 delas. Outras 536 famílias, segundo a Prefeitura, não precisariam sair mas solicitaram o reassentamento ou indenizações.

Localizado na Estrada dos Bandeirantes, o Parque Carioca é um empreendimento dentro do Minha Casa, Minha Vida, de R$ 105 milhões, e possui 900 apartamentos de dois e três quartos (com suítes), sendo 45 adaptados para pessoas com necessidades especiais, com 43 e 63 metros quadrados. De acordo com as informações da prefeitura, o condomínio conta com área verde, praças, espaço para comércio, piscina com toboágua, quiosque, quadras poliesportivas, playground, academia a céu aberto, salão de festas com copa e duas churrasqueiras. Nem todo mundo na Vila Autódromo, porém, foi seduzido por esses atrativos. “Muito casamento acabou por aqui. A mulher queria uma coisa, o marido outra e a briga era inevitável”, diz Maria da Penha.

Penúltima moradora a deixar a Vila Autódromo, “há dois ou três meses”, a babá Conceição Queiróz da Silva, de 43 anos, já estava separada do marido quando foi obrigada pelas circunstâncias a aceitar a mudança para o Parque Carioca. “A Prefeitura ofereceu um apartamento e R$ 200 mil para cada um de nós pela nossa casa. Queria ficar na Vila, mas no projeto das casas só foi oferecida uma para nós dois, e já estávamos separados”. Conceição está sempre na Vila Autódromo, frequenta a Igreja da comunidade e não esconde a preferência. “Morar em apartamento não é o mesmo que na nossa casa. Não dá para botar a cadeira na porta, conversar com os vizinhos ao ar livre”.

Casada com o técnico em eletricidade Carlos Augusto, Sandra Regina Damião, de 53 anos, teve o apoio necessário para resistir até o fim da luta numa das últimas casas da comunidade. O marido tinha uma loja nos fundos da casa, mas teve de fechar o pequeno negócio porque, com as obras do Parque Olímpico, os clientes foram impedidos de entrar com os equipamentos a serem consertados. Nada que a fizesse pensar em sair da Vila, onde chegou há 21 anos. “Nunca pensei em sair. Aqui fiz minha vida e criei meus dois filhos”.

No container ocupado pela família de Luis Cláudio e Maria da Penha, Sandra não continha a animação com a proximidade da conclusão de sua casa na Rua Nelson Piquet. “Já viu como vai ficar? Tudo gramadinho, com caminho de pedra até a porta. Não tem indenização que pague essa casa”, dizia. Ao lado dela, enquanto lá fora os caminhões, de fato, descarregavam a grama a ser usada nas casas, Maria da Penha também via motivos para celebrar, mas nem tanto. “É uma pequena vitória. Grande vitória seria se a comunidade inteira tivesse sido urbanizada, se ficasse como o grande legado social dessa Olimpíada”.

Luis Edmundo Araújo

Jornalista, começou como repórter do jornal O Fluminense, de Niterói, e redator da revista Incrível, da Editora Bloch. Trocou tudo pra ser repórter de Cidade do Jornal do Brasil, até sair pra ser repórter da revista Istoé Gente. De 2005 a 2016, foi editor do Jornal do Commercio, editor de Empresas, Economia, Mundo, Rio, SP, Brasília, Minas, Opinião, Direito & Justiça e, principalmente, País. Colaborou com o blog O Cafezinho em 2016 e 2017, e em 2018 participou da aventura da volta do Jornal do Brasil impresso, como editor-assistente de Política. Agora, batalha por uma causa dada como perdida: o jornalismo literário

Newsletter do #Colabora

Um jeito diferente de ver e analisar as notícias da semana, além dos conteúdos dos colunistas e reportagens especiais. A gente vai até você. De graça, no seu e-mail.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *