Elas estão onde sempre estiveram, no meio do caminho. A poucos passos da Lagoa de Jacarepaguá, entre a grandiosidade do Parque Olímpico e uma fileira de contêineres brancos, estão as últimas casas da Vila Autódromo. Muitas se confundem com os escombros de outras já abandonadas. Nas paredes, habitadas ou não, a lembrança de uma luta que está prestes a terminar: “Srs. políticos, deem uma trégua em suas ambições. Respeitem a democracia”, diz uma delas. “O governo é um instrumento das empreiteiras”, diz outra. Numa porta de chapa metálica, apoiada num monte de entulho, vê-se o desenho infantil de um casal com uma criança. Em cima, a inscrição: “perdão, não aguentamos a pressão”.
[g1_quote author_name=”Carlos Bernardo Vainer” author_description=”Sociólogo e professor da UFRJ” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Não é mais o bonde indo para Copacabana, mas o metrô e vias expressas na direção de áreas vazias, com a diferença de que agora há uma coalizão de poder que estrutura de maneira sólida esse empreendimento, com a justificativa de um megaevento e o pleno apoio da grande mídia, buscando legitimar essa política que só beneficia os grandes proprietários dessas terras vazias.
[/g1_quote]Nessas casas moram onze famílias. Nos contêineres, que funcionam como moradias improvisadas, moram outras nove. Perto dali a movimentação de operários, tratores, caminhões, técnicos e engenheiros da Prefeitura do Rio de Janeiro é constante, barulhenta. O trabalho sem trégua é para entregar as vinte casas brancas previstas no projeto de urbanização da comunidade: imóveis de dois quartos, quintal, redes de drenagem, esgoto, iluminação e pavimentação na Rua Nelson Piquet. Além do paisagismo da área. Um prêmio para as vinte famílias que protestaram, apanharam, receberam ofertas em dinheiro, mas resistiram. Recusaram-se a deixar para trás uma história de vida.
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Veja o que já enviamosNum dos contêineres vive o professor de educação física Luiz Claudio Silva, que mora na comunidade há 22 anos. Na semana passada, quando voltava do trabalho, dois caminhões e um trator fechavam a passagem. Havia espaço para que o carro estacionasse, mas do banco do carona, com o vidro aberto, Luiz Cláudio ordenava: “Pode ir que eles dão um jeito. Aqui é minha casa. Já aturei muita coisa por aqui. Agora eles que deem o jeito deles”. Um dos caminhões dá ré, o trator vai pra frente, pra trás, um operário arrasta para a lateral algumas ferramentas, um carrinho de mão é afastado e a pista fica livre.
No rol de tudo que Luiz Claudio teve de aturar inclui-se a agressão à mulher, Maria da Penha Macena, 51 anos, que teve o olho esquerdo atingido no dia 3 de junho do ano passado. Moradores tentavam impedir a demolição de uma casa e guardas municipais reagiram usando cacetetes e balas de borracha. Além de Maria da Penha, outras oito pessoas ficaram feridas no episódio. Foi mais um dos muitos momentos de tensão vividos na área desde que se intensificou a pressão da prefeitura para a retirada dos moradores.
A comunidade nasceu no início dos anos 60, em torno de um grupo de pescadores que tirava o seu sustento da lagoa, à época ainda limpa. Cresceu com a chegada dos operários que construíram o antigo autódromo e, depois, com a vinda de mecânicos, que abriram várias oficinas na região. Quando Luis Claudio, Maria da Penha e a filha, Nathália, chegaram à Vila Autódromo, em 1994, havia ainda um certo clima rural. Viam-se capivaras e até jacarés pela lagoa onde ninguém mais entrava para nadar ou tomar banho, como antigamente, mas de onde ainda se tirava o que comer. “Pesquei muito peixe dessa lagoa”, lembra o professor de educação física. A filha, que tinha 7 anos quando a família se mudou para lá, confirma. “Não peguei a época de entrar na lagoa, mas comi muito peixe dela. Havia uma vegetação rica, que não tem mais”, conta Nathália.
Um pouco antes da chegada da família à Vila Autódromo, os moradores receberam do então governador Leonel Brizola a concessão do uso dos imóveis que ocupavam, em área pertencente ao Estado. Em 1998, o governador Marcello Allencar renovou o direito por 99 anos, prorrogáveis por mais 99. Desde 1993, no entanto, na primeira gestão de César Maia à frente do município, a prefeitura tentava retirar o pessoal da área. Principalmente da faixa marginal da Lagoa de Jacarepaguá, baseada em leis de proteção ambiental. O que ficou mais difícil de ser realizado depois que a Câmara de Vereadores do Rio aprovou a Lei Complementar 74/2005, que deu ao lugar o título de Área Especial de Interesse Social.
Em outubro de 2009, quando a cidade foi escolhida para sediar os Jogos Olímpicos de 2016, moravam na Vila Autódromo 824 famílias. De acordo com a prefeitura, “a comunidade foi a única impactada na preparação da cidade para a Olimpíada. Parte dos reassentamentos de famílias foi feita para permitir a abertura de vias de acesso e de serviço do Parque Olímpico, e uma parcela deles teve como razão garantir a proteção das faixas marginais da Lagoa de Jacarepaguá e do Rio Pavuninha, áreas de proteção ambiental que estavam ocupadas”.
A mesma prefeitura argumenta que parte significativa dos moradores optou espontaneamente por sair da área. “A partir de 2013 iniciou-se uma forte pressão com ameaças e também propostas financeiras elevadas buscando romper a unidade da comunidade”, discorda o sociólogo e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Carlos Bernardo Vainer, coordenador do Laboratório Estado, Trabalho, Território e Natureza (Ettern), ligado ao Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano (Ippur) da UFRJ.
No Ettern, Carlos Vainer também coordena o Observatório de Conflitos Urbanos, e é um crítico ferrenho da política de expansão da cidade com concentração de investimentos em áreas antes vazias, como a Zona Oeste, que segundo ele segue a tendência do histórico de grandes deslocamentos de população urbana, na sua maioria pobre, do Rio. “Não é mais o bonde indo para Copacabana, mas o metrô e vias expressas na direção de áreas vazias, com a diferença de que agora há uma coalizão de poder que estrutura de maneira sólida esse empreendimento, com a justificativa de um megaevento e o pleno apoio da grande mídia, buscando legitimar essa política que só beneficia os grandes proprietários dessas terras vazias”.
Vainer fala em “urbanicídio” para definir os males que a seu ver atingem a cidade onde esse tipo de política é implementada. “As cidades são grandes aglomerados urbanos, densos e heterogêneos, onde os diversos se encontram. A cultura do convívio faz parte da alma do Rio, e está sendo destruída por essa “guetificação” dos ricos em condomínios fechados, e dos pobres nas periferias. Mata-se o que a cidade tem de específico, único, para que ela passe a replicar os mesmos espaços comuns, idênticos, aos de outras cidades desenvolvidas pela lógica do grande capital, por isso falo em “urbanicídio”.
[g1_quote author_name=”Maria da Penha” author_description=”Moradora” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]
Muito casamento acabou por aqui. A mulher queria uma coisa, o marido outra e a briga era inevitável.
[/g1_quote]Feito com base em dados da Secretaria Municipal de Habitação, o livro SMH 2016: remoções no Rio de Janeiro Olímpico (Mórula Editorial), do arquiteto e pesquisador da UFRJ Lucas Faulhaber, aluno de Carlos Vainer, e da jornalista Lena Azevedo, aponta a quantidade de 20.299 famílias removidas na cidade de 2009 a 2013, o que equivaleria a cerca de 67 mil pessoas. “Hoje falaria em algo em torno de 80 mil pessoas reassentadas nessas duas administrações do prefeito Eduardo Paes”, calcula o coordenador do Ettern.
De qualquer maneira, os números já superam os dos dois outros grandes períodos de mudanças, remoções e reassentamentos na cidade: o governo de Pereira Passos (1902-1906), em que uma população de aproximadamente 20 mil pessoas foi removida de suas casas, e a administração de Carlos Lacerda (1961-1965), que registra cerca de 60 mil pessoas removidas. A prefeitura não concorda com esses números e alega que, entre 2009 e 2015, foram reassentadas no Rio 22.059 famílias, “todas já estabelecidas em novas moradias”.
No caso da Vila Autódromo, a construção das 20 casas para as famílias remanescentes é resultado de um termo de acordo administrativo assinado entre a Prefeitura do Rio e a Defensoria Pública do estado e prevê ainda a construção de duas escolas e área de lazer na região. As escolas serão erguidas, de acordo com a Prefeitura, com a estrutura da Arena do Futuro, que durante os Jogos receberá os Jogos de Handebol. O projeto não tem absolutamente nada a ver com o Plano Popular de Urbanização, o projeto desenvolvido pelos próprios moradores em conjunto com o Ippur e o Núcleo de Estudos e Projetos Habitacionais e Urbanos (Nephu) da Universidade Federal Fluminense (UFF), que tinha o custo previsto de R$ 14 milhões e venceu o prêmio Urban Age Award, do Deutsche Bank e da London School of Economics em Political Sciences.
O Plano Popular de Urbanização previa o reassentamento de quem morava às margens da lagoa para o miolo da comunidade, sem remoções. Foi entregue em 2013 ao prefeito, que aceitou começar a negociá-lo após as grandes manifestações populares de junho do mesmo ano. “O projeto foi mudado umas cinco vezes. O prefeito nunca apresentava qualquer proposta e a cada momento vinha com alguma necessidade diferente para a área, alargamento de avenida, ou a construção de um estacionamento para a imprensa nos Jogos, e nós mostrávamos, mais uma vez, que não havia a menor necessidade de acabar com a Vila Autódromo para aquilo”, conta Carlos Vainer.
Em dado momento, a Prefeitura encerrou as discussões sobre o projeto e passou a negociar com cada morador individualmente. “Foi muita pressão. O pessoal da prefeitura vinha aqui em comboio. Falavam que ou a pessoa aceitava a oferta ou ia acabar saindo sem nada. A comunidade acabou dividida e muita gente cedeu”, lembra Nathália. Quem saía tinha a casa demolida e o entulho era deixado no local, formando o cenário de terra arrasada que pressionava ainda mais os moradores resistentes.
Segundo a prefeitura, 275 famílias da Vila Autódromo tiveram de deixar suas casas para a construção de via de acesso e recuperação ambiental da faixa marginal da Lagoa. Para estas famílias foram oferecidas as opções de apartamentos do Condomínio Parque Carioca, a cerca de um quilômetro da comunidade, ou indenização, opções estas escolhidas por 268 delas. Outras 536 famílias, segundo a Prefeitura, não precisariam sair mas solicitaram o reassentamento ou indenizações.
Localizado na Estrada dos Bandeirantes, o Parque Carioca é um empreendimento dentro do Minha Casa, Minha Vida, de R$ 105 milhões, e possui 900 apartamentos de dois e três quartos (com suítes), sendo 45 adaptados para pessoas com necessidades especiais, com 43 e 63 metros quadrados. De acordo com as informações da prefeitura, o condomínio conta com área verde, praças, espaço para comércio, piscina com toboágua, quiosque, quadras poliesportivas, playground, academia a céu aberto, salão de festas com copa e duas churrasqueiras. Nem todo mundo na Vila Autódromo, porém, foi seduzido por esses atrativos. “Muito casamento acabou por aqui. A mulher queria uma coisa, o marido outra e a briga era inevitável”, diz Maria da Penha.
Penúltima moradora a deixar a Vila Autódromo, “há dois ou três meses”, a babá Conceição Queiróz da Silva, de 43 anos, já estava separada do marido quando foi obrigada pelas circunstâncias a aceitar a mudança para o Parque Carioca. “A Prefeitura ofereceu um apartamento e R$ 200 mil para cada um de nós pela nossa casa. Queria ficar na Vila, mas no projeto das casas só foi oferecida uma para nós dois, e já estávamos separados”. Conceição está sempre na Vila Autódromo, frequenta a Igreja da comunidade e não esconde a preferência. “Morar em apartamento não é o mesmo que na nossa casa. Não dá para botar a cadeira na porta, conversar com os vizinhos ao ar livre”.
Casada com o técnico em eletricidade Carlos Augusto, Sandra Regina Damião, de 53 anos, teve o apoio necessário para resistir até o fim da luta numa das últimas casas da comunidade. O marido tinha uma loja nos fundos da casa, mas teve de fechar o pequeno negócio porque, com as obras do Parque Olímpico, os clientes foram impedidos de entrar com os equipamentos a serem consertados. Nada que a fizesse pensar em sair da Vila, onde chegou há 21 anos. “Nunca pensei em sair. Aqui fiz minha vida e criei meus dois filhos”.
No container ocupado pela família de Luis Cláudio e Maria da Penha, Sandra não continha a animação com a proximidade da conclusão de sua casa na Rua Nelson Piquet. “Já viu como vai ficar? Tudo gramadinho, com caminho de pedra até a porta. Não tem indenização que pague essa casa”, dizia. Ao lado dela, enquanto lá fora os caminhões, de fato, descarregavam a grama a ser usada nas casas, Maria da Penha também via motivos para celebrar, mas nem tanto. “É uma pequena vitória. Grande vitória seria se a comunidade inteira tivesse sido urbanizada, se ficasse como o grande legado social dessa Olimpíada”.