Três séculos de luta quilombola por liberdade e terra

Negros escravizados fugidos das minas de ouro formaram o Kalunga no norte de Goiás; descendentes viveram quase isolados até a chegada de grileiros após a inauguração de Brasília

Por Inglid Martins | ODS 10ODS 11 • Publicada em 9 de janeiro de 2024 - 09:13 • Atualizada em 11 de janeiro de 2024 - 09:40

A comunidade Engenho II no Quilombo Kalunga: três séculos de luta por terra e liberdade desde os tempos da escravidão (Foto: Joédson Alves / Agência Brasil – 12/09/2023)

A comunidade Engenho II no Quilombo Kalunga: três séculos de luta por terra e liberdade desde os tempos da escravidão (Foto: Joédson Alves / Agência Brasil – 12/09/2023)

Negros escravizados fugidos das minas de ouro formaram o Kalunga no norte de Goiás; descendentes viveram quase isolados até a chegada de grileiros após a inauguração de Brasília

Por Inglid Martins | ODS 10ODS 11 • Publicada em 9 de janeiro de 2024 - 09:13 • Atualizada em 11 de janeiro de 2024 - 09:40

(Cavalcante/GO*) – Conflitos sangrentos lavaram as terras ao norte de Goiás. A descoberta do ouro de grande profundidade às margens do córrego Lava Pés na Serra da Cavalhada em 1736, atraiu à região aventureiros, descendentes de portugueses, e milhares de negros escravizados, a maior parte da África Ocidental, para trabalhar na mineração. As etnias indígenas que ali viviam foram quase dizimadas pelos bandeirantes em constantes massacres com o objetivo de conseguir mais mão de obra escrava para as minas de ouro e para as lavouras, com a conivência da coroa Portuguesa, conforme está registrado nas cartas enviadas para Portugal pelo então governador da Capitania de Goiás, João Manuel de Melo. Numa dessas cartas, consta, inclusive, um pedido de autorização para levantar “forca para a boa administração da justiça” – e menciona os contra-ataques dos indígenas que resistiam aos colonizadores e às investidas dos jesuítas para conversão religiosa.

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Os povos indígenas – xakriabás, caiapós, avá-canoeiros e os agora extintos acroás e goyazes – da região lutaram contra os colonizadores. E ajudaram muitos negros a fugirem das minas e se esconderem nos vãos e cânios da região, no entorno do na área do Arraial de Cavalcante, fundado pelos colonizadores em 1740. Começava, assim, o maior quilombo do Brasil, dentro de Goiás, Documentos oficiais confirmam a sua existência em 1760: carta enviada ao rei de Portugal, D. José I, pelo governador João Manuel, em 31 de dezembro, além de informar sobre os constantes conflitos com os indígenas, menciona a existência de um quilombo, citando a presença de “carambolas”. Os negros escravizados começavam sua luta pela terra.

Na época, contam os anciãos, muitos quilombolas não queriam a comparação que o Kalunga tinha, de pessoas miseráveis, tentavam se afastar do preconceito recusando a etnia. Hoje, estão na busca por reconhecimento como Kalunga

Alciléia Torres
Pesquisadora e historiadora

Ali, na geografia acidentada por paredões de rochas da Chapada dos Veadeiros e com vegetação de Cerrado, negros se estabeleceram entre os indígenas que resistiram ali – alguns povos fugiram, outros foram simplesmente dizimados. Com a decadência da mineração e o início da agropecuária em Goiás, negros escravizados passaram a ser usados nas lavouras pelos grandes fazendeiros que ocuparam terras antes exploradas para o garimpo de ouro. As fugas eram constantes e mais negros escravizados se embrenhavam na Chapada em busca da liberdade. Integrações étnicas e culturais ocorreram com trocas de conhecimentos e tradições, além de relacionamentos resultando na mistura das raças: assim foram moldados os moradores dos quilombos locais.

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Durante mais de um século, os quilombolas do norte do Goiás viveram quase isolados. Há registros de sua existência nos extensos trabalhos do antropólogo, etnógrafo e psiquiatra Arthur Ramos, morto em 1949, sobre os negros brasileiros; em 1962, artigo do engenheiro Manoel Passos, funcionário do Ministério da Agricultura, identificava como “calungueiros”, os habitantes do quilombo estabelecido às margens do Rio Paranã “constituído de negros fugidos dos duros trabalhos da mineração das minas de ouro de Arraias, Monte Alegre e Cavalcante”: foi a primeira citação dos Quilombo Kalunga nos jornais de Goiás.

Mas, em 1975, os quilombolas resolveram buscar o direito ao seu território devido aos constantes conflitos que vinham enfrentando contra grileiros: representantes foram ao Idago (Instituto de Desenvolvimento Agrário de Goiás), então presidido pelo advogado e professor de Direito Agrário Aldo Azevedo Soares, para solicitar a titulação de posse coletiva. Segundo a Associação Quilombo Kalunga (AQK), a grilagem das terras dos quilombolas começou em 1940, mas ganhou força a partir da fundação de Brasília em 1960. A proximidade da região com a capital do Brasil atraiu pessoas em busca de terras, que encontraram, naquela região bela e isolada ao norte de Goiás, condições propícias para fraudar documentos, negociar áreas em reservas naturais e se apropriar indevidamente dos territórios de quilombolas e indígenas.

A antropóloga Mari Baiochi em visita ao Kalunga no começo dos anos 1980: trabalho decisivo para reconhecimento do território quilombola (Foto: Reprodução / Asssociação Quilombola Kalunga)
A antropóloga Mari Baiochi em visita ao Kalunga no começo dos anos 1980: trabalho decisivo para reconhecimento do território quilombola (Foto: Reprodução / Asssociação Quilombola Kalunga)

Somente com o trabalho de pesquisa de doutorado em antropologia de Mari de Nasaré Baiocchi pela Universidade Federal de Goiás, o processo avançou para o reconhecimento do território quilombola Kalunga, que ganhou demarcação e mapeamento, No início dos anos 1980, neste período Mari Baiocchi estabeleceu contato com os quilombolas Kalunga, visitou a região, percorrendo as serras e vãos da Chapada dos Veadeiros.

As pesquisas de campo, lideradas pela antropóloga, contribuíram para remontar toda história dos negros em Goiás, e foram responsáveis pela inclusão oficial dos Kalunga na sociedade, adquirindo direitos de cidadania e visibilidade perante aos órgãos oficiais – as primeiras titulações, realizadas em 2005, tiveram como base o mapeamento feito na década de 1980. Mari Baiocchi reuniu no livro Kalunga Povo da Terra – publicado pela UFG em 1999 – material riquíssimo em informações e imagens retratando vida, cultura, festividades, religião e outros dados e detalhes sobre os quilombolas da região e sua história desde o século XVIII.

A historiadora e pesquisadora Alciléia Torres, quilombola Kalunga da comunidade de Vão de Almas e estudante de jornalismo, vem resgatando memórias dos anciãos de seu território para o podcast Nossa Vida Quilombola – iniciativa da Embaixada dos EUA em Brasília, que reúne 15 comunicadores de quilombos de todo o Brasil. Alciléia busca registrar e documentar essas informações que vêm sendo passadas oralmente de geração em geração, no intuito de preservar as tradições ancestrais agora usando a tecnologia e facilitando o acesso para os atuais e futuros membros das comunidades Kalunga.

Comunidade Engenho II no Quilombo Kalunga: na época da demarcação do sítio histórico, muitos quilombolas evitaram identificação por temerem preconceito (Foto: Joédson Alves / Agência Brasil - 12/09/2023)
Comunidade Engenho II no Quilombo Kalunga: na época da demarcação do sítio histórico, muitos quilombolas evitaram identificação por temerem preconceito (Foto: Joédson Alves / Agência Brasil – 12/09/2023)

Alciléia conta que, durante a demarcação do Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Quilombola Kalunga, no início dos anos 1990, muitos quilombolas não queriam ser reconhecidos como da etnia Kalunga. A pesquisadora explica que alguns quilombolas viviam em situação de vulnerabilidade extrema na região do Riachão e eram chamados, de forma pejorativa, de ‘calungas’ – no racismo local, virou sinônimo de miseráveis.

Assim, na consulta pública, de casa em casa, muitos se recusaram a se identificar como Kalunga. A pesquisadora conta que muitos se arrependeram: “Na época, contam os anciãos, muitos quilombolas não queriam a comparação que o Kalunga tinha, de pessoas miseráveis, tentavam se afastar do preconceito recusando a etnia. Hoje, estão na busca por reconhecimento como Kalunga”, afirma. Na língua Bantu, Kalunga para os negros trazidos na diáspora, principalmente de Angola, Congo e Moçambique, tem o significado de lugar sagrado e de proteção.

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Reconhecido pelo governo de Goiás no início dos anos 90 como Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Quilombola Kalunga, o território tem contornos irregulares devido a formação geográfica da região e se estende pelos municípios de Monte Alegre, Cavalcante e Teresina de Goiás, conforme consta no mapa feito por Wânia Alencastro Veiga, em 1982, para a pesquisa de Mari Baiocchi, e anexado à lei nº 11.409 de 21 de janeiro de 1991, aprovada pela Assembleia Legislativa do Estado de Goiás e sancionada pelo governador Henrique Santillo. O parágrafo único delimita o espaço geográfico e acrescenta: “os habitantes do sítio histórico, a serem beneficiados por esta lei, são pessoas que nasceram na área delimitada, descendentes de africanos que integram o quilombo que ali se formou no século XVIII.” De toda a extensão de 262 mil hectares, as proporções territoriais do Sítio Histórico ocupam 71% dos 6.954 km² da cidade de Cavalcante, 13% dos 3.120 km² de Monte Alegre e 15% dos 774.635 km² de Teresina de Goiás.

Quilombola prepara refeição em comunidade do Kalunga: só 10% dos 262 mil hectares do sítio histórico tiveram efetivamente títulos de posse emitidos em nome da Associação Quilombola Kalunga (Foto: Joédson Alves / Agência Brasil - 12/09/2023)
Quilombola prepara refeição em comunidade do Kalunga: só 10% dos 262 mil hectares do sítio histórico tiveram efetivamente títulos de posse emitidos em nome da Associação Quilombo Kalunga (Foto: Joédson Alves / Agência Brasil – 12/09/2023)

A lei estabelecendo o sítio histórico e patrimonial marcou o passo inicial para a titulação do território quilombola, que ganhou força com o reconhecimento do território tradicional Kalunga pela Fundação Palmares, em 2000, primeira etapa do processo oficial de titulação. Em 2003, o presidente Lula assinou o Decreto 4.887/2003, que “regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias”, considerado um marco da regularização dos territórios quilombolas.

No ano seguinte, o Incra abriu o processo oficial para demarcação e titulação do Quilombo Kalunga, o que parecia o passo definitivo. Mas, apesar do decreto de 2009 declarando de “interesse social, para fins de desapropriação, os imóveis abrangidos pelo ‘Território Quilombola Kalunga’, situado nos Municípios de Cavalcante, Teresina de Goiás e Monte Alegre de Goiás”, nestas duas últimas décadas, entretanto, só 10% dos 262 mil hectares do sítio histórico tiveram efetivamente títulos de posse emitidos em nome da Associação Quilombo Kalunga, criada em 1999 para representar e lutar pelos direitos da população do TQK. A demora só facilitou mais invasões e conflitos. Neste século XXI, a luta dos quilombolas pela terra, que tem quase 300 anos, ficou ainda mais dura.

*Esta reportagem foi realizada com o apoio do Programa Acelerando a Transformação Digital, parceria do ICFJ (International Center for Journalism) e da Meta, e a mentoria do jornalista Chico Otávio

Inglid Martins

Graduanda em Jornalismo pela Universidade Estácio de Sá em Trindade (GO), é estagiária no Diário da Manhã, de Goiânia e,pesquisadora IC - CNPq/Capes na Unesa. Foi professora de Artes Visuais, Sociologia e Filosofia na rede estadual de ensino de Goiás. Apaixonada por contar histórias, atualmente está descobrindo o Cerrado através do Jornalismo

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