ODS 1
Sim, eu sou d’América do Sul
Brasileiros desconhecem o resto do continente e se surpreendem com solidariedade colombiana na tragédia da Chapecoense
Alexandre Barbosa gosta de provocar seus alunos com um exercício: citar cinco grandes cidades latino-americanas. “São Paulo e Rio de Janeiro costumam ficar de fora”, diz o professor da USP, pesquisador de América Latina e coordenador do curso de Jornalismo da Uninove. “Temos os olhos voltados para a Europa e os Estados Unidos e as costas para os países latino-americanos.” Assim como o professor, o #Colabora faz uma provocação: teste neste quiz seus conhecimentos sobre o continente.
No último dia 30, os olhos dos brasileiros se voltaram para a Colômbia. Fomos surpreendidos por uma onda de solidariedade, amizade e respeito que transbordou o Estádio Atanásio Girardot, em Medellín, na exata hora em que entrariam em campo Chapecoense e Atlético Nacional pela final da Copa Sul-Americana – o jogo que não foi disputado por causa do acidente aéreo que vitimou 71 pessoas, entre jogadores, comissão técnica e dirigentes do time catarinense e jornalistas.
“Que se escuche en todo continente, siempre recordaremos campeón Chapecoense”, cantaram e cantaram os mais de 44 mil colombianos. O continente todo ouviu.
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Veja o que já enviamos“Foi uma cerimônia tribal”, disse o carnavalesco Milton Cunha. “Os tambores unem os povos e remetem ao nosso ascendente primitivo. Falam ao coração da gente colombiana, brasileira, sul-americana.”
[g1_quote author_name=”Alexandre Barbosa” author_description=”Professor e estudioso de América do Sul ” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]O que mais incomoda é que a História latino-americana tem pouco espaço no ensino fundamental e não conhecemos os heróis, as lutas. A desculpa da diferença de línguas é tacanha. Veja como o Halloween é conhecido por aqui e a Festa dos Mortos não
[/g1_quote]Se temos tanto em comum – como o futebol, o sincretismo religioso, a música, o carnaval, a colonização ibero-americana, a desigualdade social, o histórico de ditaduras, apenas para citar alguns pontos que compartilhamos – por que uma homenagem, como a que foi feita na Colômbia, nos faz perguntar se faríamos o mesmo por eles? O que nos une e o que nos separa na América do Sul?
Para Barbosa, reforçada pelos noticiários, a relação do Brasil com seus vizinhos é colocada de forma muito mais distante do que conta a história comum da região. “Nos surpreendemos com o sistema de resgate, a qualidade dos hospitais em Medellín, a eficiência em se realizar em tão pouco tempo uma cerimônia como a que vimos na Colômbia”, reflete.
Segundo o professor, um dos fatores que não nos permitiriam uma visão de continente seria a ausência de uma cobertura de mídia com histórias do dia a dia dos nossos países vizinhos. “Quantos correspondentes temos nos países latino-americanos? Nossos veículos cobrem mais os assuntos na Europa e nos Estados Unidos. Quando (o escritor colombiano) Gabriel García Marquez morreu (em 14 de abril de 2014), não tínhamos correspondentes nem na Colômbia e nem no México, e a cobertura foi feita a partir de agências estrangeiras”, lembra Barbosa. “O que mais incomoda é que a História latino-americana tem pouco espaço no ensino fundamental e não conhecemos os heróis, as lutas. A desculpa da diferença de línguas é tacanha. Veja como o Halloween é conhecido por aqui e a Festa dos Mortos não. O papel dos meios é lançar luz sobre toda essa cultura”, conclui.
A ausência de notícias dos vizinhos sul-americanos na imprensa brasileira pode ser mesmo um reflexo de uma carência de informação no ensino fundamental das escolas do país. A ementa do MEC de Parâmetros Curriculares Nacionais – terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental – se resume a uma página do guia para a educação.
[g1_quote author_name=”Rodrigo Pires” author_description=”Professor” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Quando falamos de Bolívia ou Paraguai, vemos muito preconceito. Para entendermos a situação econômica do Paraguai, temos que rever o período intervencionista do Brasil Império
[/g1_quote]O professor Rodrigo Pires, que leciona a disciplina para alunos do ensino fundamental numa escola particular da Zona Sul do Rio de Janeiro e numa pública de Belford Roxo, acredita que, por ser menos exigida nas provas de acesso às universidades, a História dos países sul-americanos “desperta pouco ou quase nenhum interesse”. Ele afirma que “é preciso despertar a curiosidade dos estudantes. Mostrar que a ditadura brasileira teve seus correspondentes em outros países latinos. Se fala muito superficialmente da cultura Inca, por exemplo. Quando falamos de Bolívia ou Paraguai, vemos muito preconceito. Para entendermos a situação econômica do Paraguai, temos que rever o período intervencionista do Brasil Império, é mais complexa e interessante essa história comum.”
“Somos muitíssimo mais do que nos dizem que somos”, afirm0u, em 2009, o escritor uruguaio Eduardo Galeano. Para ele, a América Latina era a “pátria das diversidades humanas“. Autor do clássico “As Veias Abertas da América Latina”, publicado em 1971, Galeano também era fanático por futebol, paixão comum no continente. Em outro de seus livros, “Futebol Ao Sol e à Sombra”, ele comenta como a evasão de craques uruguaios para a Europa esvaziou os estádios e fez com que o torcedor passasse a assistir aos campeonatos europeus pela TV.
Foi essa a situação que o jornalista Tim Vickery encontrou quando veio para o Brasil cobrir futebol sul-americano para a BBC.
“O nível dos clubes não é muito bom, então o interesse vai mesmo para o futebol europeu. O ‘Lance!’ (principal jornal esportivo do Brasil) publica a tabela do Campeonato Português, mas não a do Argentino”, diz Vickery. “Em outros países, existe um amor pelo futebol brasileiro que nasceu com a seleção de 1970, vista como uma representante do continente. Os colombianos, por exemplo, torceram por aquele time. Nos últimos cinco anos, vejo um pouco mais de envolvimento com o futebol brasileiro, mas apenas porque os clubes contratam mais jogadores sul-americanos, como o peruano Guerrero, no Flamengo”.
[g1_quote author_name=”Pablo Castro” author_description=”Peruano que vive no Rio” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]O Peru tem o maior número de flamenguistas fora do Brasil
[/g1_quote]“O Peru tem o maior número de flamenguistas fora do Brasil”, especula o peruano Pablo Castro, vivendo no Rio desde 1999. Castro chegou ao país com 17 anos para estudar marketing esportivo e trabalhar com futebol. Hoje cuida da logística de diversos clubes brasileiros e é também o amigo que dá dicas ao jogador Guerrero e a outros peruanos sobre como matar a saudade dos produtos de casa.
No restaurante peruano frequentado pelo jogador Guerrero, não se serve uma das mais tradicionais bebidas daquele país: a chicha morada. Feita de uma variedade do milho, roxo como um açaí, chamado maiz morado, é uma bebida popular entre os peruanos e tão antiga quanto o Império Inca. Quando fervido, o caldo é misturado com especiarias, depois servido gelado, com açúcar e pedaços de frutas. A Chicha é tão querida por seu povo, que Gastón Acurio, chef renomado que elevou Lima a capital gastronômica da América do Sul, disse certa vez: “Por que não podemos sonhar que o mundo consuma nossa chicha morada tanto quanto uma Coca-Cola?”. Isso foi em 2011. No Brasil, até hoje, é difícil achar o milho roxo nas gôndolas dos supermercados. Na Rede Hortifruti, com lojas no Rio, em São Paulo e no Espírito Santo, se encontram produtos da Argentina, do Uruguai, do Chile… Mas, do Peru, só a uva Red Globe.
“Como vou ao Peru uma vez ao mês, trago sempre uma garrafa de dois litros de essência para fazer a chicha”, conta Castro. ”No Peru, encontramos açaí e vários produtos brasileiros, o contrário não acontece. E acho que o Chile é o país onde mais vejo mais produtos da América do Sul.”
Os voos mensais frequentados por Castro vão sempre cheios de surfistas brasileiros: “O Peru tem as ondas mais longas do mundo.” Por esse motivo, o produtor Renato Byington já foi ao Peru sete vezes. “Vai surfista do Brasil todo. As ondas são boas, tem Inka Cola (refrigerante de erva-doce peruano), a comida é ótima e é mais barato do que ir para o Havaí”.
[g1_quote author_name=”Sebastián Cordero” author_description=”Cineasta” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Eu sou do Equador e tenho dificuldade para ver um filme colombiano, peruano, mexicano. Apesar do mesmo idioma, eles não viajam entre os países. Isso só acontece isso quando uma produção vai muito bem num festival lá fora
[/g1_quote]O desafio de encontrar comidas típicas de vizinhos sul-americanos no país vale também para a exibição de filmes produzidos no continente pelo circuito de cinemas.
“Eu sou do Equador e tenho dificuldade para ver um filme colombiano, peruano, mexicano. Apesar do mesmo idioma, eles não viajam entre os países. Isso só acontece isso quando uma produção vai muito bem num festival lá fora”, conta o cineasta Sebastián Cordero. “Com o Brasil, temos o problema adicional do idioma, por isso muito do nosso cinema não se compartilha.”
Para o premiado diretor de cinema, esse cenário poderia ser diferente se os distribuidores demonstrassem interesse nessa troca.
[g1_quote author_name=”Tim Vickery” author_description=”Jornalista” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]O que Bolívar fez daria um filme de Hollywood
[/g1_quote]“Há propostas interessantes de diretores que acabam não sendo conhecidas nessas duas regiões da América Latina”, diz Cordero. “Isso não acontece só com o cinema. Quando fiz meu filme ‘Crônicas’ (2004), trabalhei com o brasileiro Antônio Pinto. Viajei para São Paulo e fiquei surpreso de ver como se conhece pouco da música latino-americana. Acho uma pena, porque existem coisas igualmente criativas nos outros países. Claro que do Equador, para se chegar ao Brasil, é preciso atravessar toda a Amazônia, mas isso não deveria ser problema num mundo globalizado. É algo muito simbólico que isso pareça mais distante do que se houvesse um mar entre nós.”
Esse oceano imaginário se criou na trajetória geopolítica de países que lutaram por sua independência (“O que Bolívar fez daria um filme de Hollywood”, diz o jornalista Tim Vickery, que também é formado em História Política), enquanto o Brasil a conquistou num acordo político. “Qual é a ‘identidade’ latino-americana? Ela existe?”, provoca o escritor e cientista político mexicano Jorge Castañeda, no livro “Amanhã para Sempre”. “Para o Brasil, é uma questão de pertencimento e de vontade: com um idioma, uma história, uma composição étnica e uma vocação diferentes do resto dos países da região, que significado tem se sentir participante de uma unidade alheia?”.
Essa unidade pode nunca acontecer. Mas, para Milton Cunha, que crê que o carnaval seja uma ligação atávica entre as culturas latino-americanas, o que se viu em Medellín deixou os brasileiros em débito. “Ficamos devendo um tributo aos povos pré-colombianos. Seria uma oportunidade para um abraço fraterno. Uma mensagem de universalidade.”
Jornalista e mineira de Juiz de Fora.
adorei a matéria,. Confesso minha ignorância na história da América Latina. Fiquei motivadíssima em saber sobre os nossos vizinhos. Parabéns Simone, gostei demais.
Realmente, os brasileiros pouco conhecem sobre a América Latina. Para mim, uma das melhores formas de intercambiar a cultura é através dos filmes. Conhecemos costumes, cultura e pontos de vista sobre diversos assuntos por meio da sétima arte. Eu, particularmente, gosto muito dos filmes argentinos , que são premiadíssimos e conseguem nos encantar e prender do início ao fim. O filme A Cordilheira é um drama que nos envolve, com a ótima direção de Santiago Mitre e com atores como Erica Rivas, Dolores Ponzi e Ricardo Darin.