#RioéRua – Ao Marechal, as batatas

A menor porção da famosa batata de Marechal: R$ 10 para matar a fome de, pelo menos, dois (Foto: Oscar Valporto)

Bairro centenário da Zona Norte abriga as batatas fritas mais famosas da cidade

Por Oscar Valporto | ODS 11 • Publicada em 9 de março de 2020 - 12:27 • Atualizada em 19 de setembro de 2020 - 12:27

A menor porção da famosa batata de Marechal: R$ 10 para matar a fome de, pelo menos, dois (Foto: Oscar Valporto)

Foi no começo do ano que rodou pelas redes sociais um desafio carioca com 75 programas na cidade: na minha checagem, faltavam nove. Alguns jamais farei como a trilha do Pedra do Telégrafo e saltar de asa delta ou parapente; recoloquei outros na agenda. E precisei da internet para descobri o que era “a batata de Marechal”, que deve ter conquistado fama durante minha temporada em Salvador. Nunca tinha ouvido falar, mas, vim a constatar, muita gente recomendava. E fica ao lado da estação de trem: este #RioéRua adora um trilho. O programa subiu logo para o topo da minha lista.

Mas demorou um pouco porque as batatas só estão disponíveis depois das 16h e é preciso abrir espaço na agenda para pegar o trem do ramal Deodoro em plena tarde. Enquanto isso, vasculhei a memória e depois as estantes para descobrir em que livro de Machado de Assis tem a frase “ao vencedor, as batatas”. Já não me lembrava do contexto mas sabia que a frase existia – ouvi ser usada em situações diversas – e que era do nosso escritor maior. Não foi difícil localizar as batatas em Quincas Borba, filósofo personagem que empresta, em parceria com um cachorro, o nome ao livro. “Aos vencidos, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas”, conclui Quincas Borba ao expor parte de sua teoria filosófica ao amigo Rubião, este sim o protagonista do romance.

A estação de Marechal Hermes, inaugurado com o bairro há mais de um século: estilo arquitetônico preservado (Foto: Oscar Valporto)
A estação de Marechal Hermes, inaugurado com o bairro há mais de um século: estilo arquitetônico preservado (Foto: Oscar Valporto)

As batatas machadianas não têm qualquer relação com o Rio de Janeiro apesar de Quincas Borba ser um dos romances mais cariocas do escritor. Rubião vai morar numa casa com vista para a enseada de Botafogo, janta com amigos em Santa Teresa, circula pelo Centro: Largo de São Francisco, Praça da Constituição, Rua do Cano, Rua do Ourives, Rua do Ajuda, Rua do Alfândega, e, claro, Rua do Ouvidor. E visita um amigo doente em Praia Formosa – que, sim, já foi uma praia e não apenas a estação final do VLT.  Neste dia, volta caminhando: passa pelo Saco do Alferes – pequena enseada que sumiu como a Praia Formosa -, pela Gamboa e pela Saúde até chegar a Praça da Harmonia onde a trama machadiana retoma seu rumo após esse flanar pelo que ainda viria ser a Zona Portuária.

A Praça Montese com a estação ferroviária no coração de Marechal Hermes: barraca das batatas fica encostado ao muro da ferrovia (Foto: Oscar Valporto)
A Praça Montese com a estação ferroviária no coração de Marechal Hermes: barraca das batatas fica encostada ao muro da ferrovia (Foto: Oscar Valporto)

Mas também essa crônica precisa retomar seu rumo em direção às batatas de Marechal Hermes, bairro batizado com o nome do presidente que o idealizou para ser um bairro proletário. Marechal Hermes tem data de inauguração: 1º de maio de 1913, quando também foi inaugurada a estação de trem. O bairro planejado não deu muito certo: das 1350 casas projetadas, nem 200 ficaram prontas. Mas a região cresceu de qualquer forma, impulsionada pela ferrovia: a estação de Marechal Hermes conserva, mais de um século depois, suas características históricas e está mais bem cuidada do que a média das estações dos subúrbios cariocas.  Foi a antiga estação que ajudou Marechal a ganhar a primeira APAC (Área de Proteção do Ambiente Cultural) da Zona Norte, para preservar imóveis em seis ruas próximas à ferrovia, em torno da Avenida Marechal Cordeiro de Frias que liga Praça Montese, a praça da estação, à Praça Quinze de Novembro.

A batata frita do ADM Lanches: generosidade nas porções é a marca da pioneira e famosa batata de Marechal (Foto: Reprodução)
A batata frita do ADM Lanches: generosidade nas porções é a marca da pioneira e famosa batata de Marechal (Foto: Reprodução)

Este trecho é a parte mais movimentada do bairro e, ali, colado no muro da linha do trem, fica o ADM Lanches, nome oficial da barraca que vende a tradicional e famosa Batata de Marechal. É um exagero de batata frita; a porção mais simples – só batata e e fatias de linguiça calabresa, por R$ 10 – mata fome de pelo menos dois.  Sou guloso mas não dei conta de uma sozinho. O mineiro Ademar Moreira, dono do estabelecimento, pega uma quentinha de alumínio, coloca no saco plástico e vai colocando batata frita. A maior porção – a R$ 30, a mais simples, ou R$ 40 se tiver, além da calabresa, frango e bacon – deve ter mais de dois quilos de batata. Ademar não economiza nas porções: de tarde, são turmas de alunos das escolas da região atrás das batatas; à noite, o pessoal compra cerveja e fica beliscando nas mesas colocadas ao longo do muro da ferrovia.

Busto do Marechal Hermes da Fonseca, no bairro que ele planejou e inaugurou: árvores e clima suburbano (Foto: Oscar Valporto)
Busto do Marechal Hermes da Fonseca, no bairro que ele planejou e inaugurou: árvores e clima suburbano (Foto: Oscar Valporto)

Os moradores garantem que este canto de Marechal Hermes é o único do bairro que tem realmente vida noturna – a batata de Marechal e outras barracas ficam abertas até o começo da madrugada. O sucesso de Ademar e as batatas do ADM ajudaram a concorrência com a abertura de pontos de vendas de hamburguer, cachorro-quente, salgados árabes e até outras barracas de batata frita. Mas o resto desta parte central do bairro ainda tem muitas árvores, casas e prédios baixos e um clima de subúrbio – apesar de os moradores reclamarem da falta de segurança e de atenção do poder público. Mas ninguém se queixa das batatas que hoje ajudam o bairro idealizado pelo Marechal Hermes da Fonseca a ganhar destaque no mapa da cidade.

#RioéRua

Oscar Valporto

Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade

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