#RioéRua: A divinamente carioca Elizeth

A carioca Elizeth Cardoso e o prédio em Ipanema onde ensaiava com Tom e Vinicíus: centenário de uma cantora ligada em sua cidade (Fotos: Arquivo Nacional e Prefeitura do Rio)

No centenário de Elizeth Cardoso, um viagem pela trajetória da magnífica cantora que viveu intensamente o Rio de Janeiro

Por Oscar Valporto | ODS 11 • Publicada em 13 de julho de 2020 - 09:53 • Atualizada em 17 de julho de 2020 - 10:03

A carioca Elizeth Cardoso e o prédio em Ipanema onde ensaiava com Tom e Vinicíus: centenário de uma cantora ligada em sua cidade (Fotos: Arquivo Nacional e Prefeitura do Rio)

Quando eu me apaixonei de verdade por música, através dos Beatles, lá pelos 14 anos, comecei também a vasculhar os discos da modesta coleção familiar. Ouvi quase tudo que meus pais tinham guardado: dos álbuns de minha mãe do rei Roberto Carlos à coleção eclética de meu pai que ia de Elvis Presley a Jair Rodrigues, de Nat King Cole a Martinho da Vila,  apesar de ser raro vê-lo colocar um disco na vitrola – versão anterior do toca-discos que antecedeu o aparelho de CD que antecedeu o Sportify e o Deezer… “Essa mulher canta pra caramba”, disse o pai, que evitava palavrões em casa quando nós éramos ainda menores, ao ver “Elizete Sobe o Morro” girando na vitrola. Fiquei feliz por estar ouvindo as coisas que ele gostava, mas eu era um garoto que amava os Beatles, antes de tudo.

A Divina Elizeth: talento da cantora lhe valeu uma série de apelidos majestosos como também magnífica e enluarada (Reprodução)
A Divina Elizeth: talento da cantora lhe valeu uma série de apelidos majestosos como também magnífica e enluarada (Reprodução)

Confesso que só recoloquei Elizeth Cardoso em minha vida talvez meia-dúzia de anos depois quando lia muito Vinicius de Moraes e andava muito por ali em Ipanema: “Rua Nascimento Silva 107, você ensinando para Elizeth, as canções de Canção do Amor Demais” – dizia a “Carta ao Tom”, do poetinha com Toquinho. A mãe do amigo, moradora de Ipanema, tinha esse disco incrível que a divina Elizeth cantava um repertório de 13 canções de Antonio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes, com João Gilberto ao violão em Chega de Saudade. Nem parecia bossa nova apesar de o LP ser considerado o marco inicial do gênero. Mas tinha eu, já naqueles hoje remotos anos 80, uma curiosidade carioca que me levou a ver o prédio da Nascimento Silva, onde Tom morou, a buscar a história desse encontro de gênios e a conhecer e ouvir um pouco mais de Elizeth, uma carioquíssima cantora que merece todas as comemorações do seu centenário, agora no dia 16 de julho.

No começo, era Elizete: foi assim, com essa grafia, que seu nome apareceu nos primeiros discos da carreira – inclusive na estreia em disco (um compacto, pequeno vinil com uma música de cada lado) em 1949 e em “Canção do Amor Demais”, nove anos depois. Nasceu no bairro de São Francisco Xavier, perto do Morro da Mangueira, O pai tocava violão, a mãe gostava de cantar. Trabalhava desde os 10 anos: tinha 16 anos quando cantou na festa da casa de uma tia, sua vizinha na Rua do Resende – que começa na Lapa e termina perto do Campo de Santana – e encantou um jovem Jacob do Bandolim. O músico a levou para fazer um teste na Rádio Guanabara; aprovada, começou sua carreira de cantora. Era, na época, porta-estandarte do rancho Turunas da Monte Alegre, com sede nas esquinas de André Cavalcanti e Riachuelo. A adolescente Elizeth namorou o craque Leônidas da Silva, adotou um bebê abandonado na porta de sua casa, casou-se com o cavaquinista Ary Valdez, teve um filho, separou-se: tudo isso antes dos 20 anos. Depois trabalhou no Dancing Avenida, na esquina da Rua São José com a Avenida Rio Branco, morou em Jacarepaguá, num quarto no Catete, com a mãe e os dois filhos, e na Rua Moncorvo Filho, no Centro, perto da Praça da República e em São Cristóvão. Quando a vida profissional começou a melhorar um pouco, mudou-se com a família para Bonsucesso.

Era no bairro, na Avenida Democráticos, que Elizeth morava quando lançou seus primeiros discos, chamou a atenção com “Canção de Amor” (de Elano de Paula e Chocolate), foi contratada pela Rádio Tupi, quando estreou no cinema. Pegava o lotação todos os dias para a rádio. Em 1953, ia de lá para a boate Casablanca, na Praia Vermelha quando estrelava o musical “Feitiço da Vila”, ao lado do cantor Silvio Caldas e do ator Grande Otelo. Já era famosa quando gravou seu primeiro LP em 1955; era também a estrela da boate Vogue, uma das mais badaladas da cidade, no primeiro andar do hotel do mesmo nome na Avenida Princesa Isabel, fronteira entre Copacabana e Leme. Para não ter que voltar tarde da noite para Bonsucesso, Elizeth, às vezes, até dormia no hotel, enquanto a mãe tomava conta das crianças. Mas dormiu em casa na noite de agosto quando um incêndio consumiu boate e hotel e matou cinco pessoas.

Canções do Amor Demais: marco da Bossa Nova com músicas de Tom e Vinícius e o violão de João Gilberto (Reprodução)
Canções do Amor Demais: marco da Bossa Nova com músicas de Tom e Vinícius e o violão de João Gilberto (Reprodução)

Para ficar mais perto das rádios, das gravadoras, das boates, a cantora, em 1956, levou a família toda – aquela altura, a filha Teresa já estava casada – para morar em Botafogo, num apartamento mais amplo na Voluntários da Pátria.  Era de Botafogo que ela ia para Ipanema, ensaiar na casa de Tom Jobim – naquele prédio pequeno da Rua Nascimento Silva 107 – as canções do disco que o maestro e Vinícius de Moraes planejaram após o começo da parceria em Orfeu da Conceição. O poeta era fã de cantora que “impôs-se como a lua para uma noite de serenata” – de acordo com o texto de Vinícius na contracapa do LP. Já era então chamada de Divina nas revistas, como assim definira o compositor e jornalista Haroldo Costa após um show da cantora. O disco – hoje entronizado como marco inicial da Bossa Nova, pelas canções da dupla e o violão de João Gilberto – nem fez sucesso. Mas Elizeth, perto dos 40 anos, já tinha consagração e público cativo: lançou 10 LPs em seis anos, cantou as Bachianas de Villa Lobos no Teatro Municipal de São Paulo, apresentou o programa “Nossa Elizeth”, com a participação luxuosa do violonista Baden Powell, na TV Continental (em Laranjeiras) e faz a abertura do show do cantor americano Nat King Cole, outro favorito do meu pai, no Maracanãzinho.

Elizete Sobe o Morro: repertório com Cartola, Zé Keti, Nelson Cavaquinho, Nelson Sargento e outros bambas (Reprodução)
Elizete Sobe o Morro: repertório com Cartola, Zé Keti, Nelson Cavaquinho, Nelson Sargento e outros bambas (Reprodução)

O LP Elizete sobe o Morro – com o nome da cantora ainda com E – é de 1965. Nas audições de beatlemaníaco adolescente, uma década depois, não me impressionou muito. Mais uns 10 anos depois e eu passaria a entender a dimensão do disco – iniciativa da própria Elizeth após ver o espetáculo Rosa de Ouro, que reunia bambas do samba carioca. É o primeiro registro fonográfico de Nelson Cavaquinho, que toca violão em algumas faixas. Tem a primeira gravação de uma composição do jovem Paulinho da Viola (Minhas Madrugadas, parceria com Candeia). E reúne também composições de Cartola, Zé Keti, Nelson Sargento e do próprio Nelson, além da participação de Elton Medeiros, de Anescarzinho do Salgueiro, de Jair do Cavaquinho.  A direção musical foi do maestro e saxofonista Moacyr Silva, com quem Elizeth tinha gravados dois discos só de sax e voz, e a produção de Hermínio Bello de Carvalho, idealizador do Rosa de Ouro.

Naquela época, Elizeth Cardoso já tinha se mudado de novo: desta vez para uma cobertura no Flamengo onde morou até o fim da vida. Desfilava todos os anos na Portela; frequentava o Bola Preta; mais raramente ia ao Maracanã ver o Flamengo; dirigia seu próprio carro, prestigiava shows de colegas cantores e cantoras pelos palcos da cidade. Era uma apaixonada pelo Rio. Foi de Hermínio também a direção do único show que vi de Elizeth – desde a década de 70 assinando com H – Cardoso: a cantora brilhava no palco do Teatro João Caetano, na Praça Tiradentes, na série Seis e Meia, acompanhado do virtuose do violão Rafael Rabello, em 1989. Hermínio também já dirigira a cantora em show histórico no mesmo teatro, com Jacob do Bandolim e seu Época de Ouro e o Zimbo Trio, 11 anos antes, para levantar recursos para Museu da Imagem do Som.

Creio que poucos sabiam, mas no show de 1989 com Rafael Rabello, Elizeth já tinha sido diagnosticada com câncer no estômago durante uma excursão ao Japão; as reportagens com a cantora falavam apenas de uma úlcera que a afastara dos palcos.  No João Caetano, um ano depois, o corpo de Elizeth seria velado por uma multidão: a Divina morreu na Clínica Bambina em 16 de julho de 1990. O show no teatro – que viraria LP/CD póstumo – foi batizado de ‘Todo Sentimento’, primeira parceria de Chico Buarque e Cristóvão Bastos que ela cantava, perdão, divinamente. “Depois de te perder/ Te encontro, com certeza/ Talvez num tempo da delicadeza/ Onde não diremos nada/ Nada aconteceu/ Apenas seguirei, como encantado/ Ao lado teu”.

#RioéRua

Oscar Valporto

Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade

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