O amanhã precisa ser novo – só não pode ser o histórico normal do Brasil

A Gávea e a Rocinha, lado a lado, no Rio: crise climática afeta ricos e provas, mas agenda urgente não circula pela população. Foto Custodio Coimbra

Cidades precisam se tornar mais inclusivas e têm de se debruçar sobre urgências como a desigualdade acentuada pela pandemia, receitam especialistas no último debate (Re) Visão 2050, promovido pelo CEBDS

Por Aydano André Motta | ODS 1ODS 10ODS 11ODS 3ODS 4 • Publicada em 6 de agosto de 2020 - 17:29 • Atualizada em 11 de agosto de 2020 - 10:47

A Gávea e a Rocinha, lado a lado, no Rio: crise climática afeta ricos e provas, mas agenda urgente não circula pela população. Foto Custodio Coimbra

Quando perguntam a Preto Zezé, presidente da Cufa (Central Única de Favelas) Global, sobre a volta ao normal, ele rebate de primeira: “Não quero voltar ao normal da indiferença enorme diante de tanta tragédia social enraizada no Brasil desde a origem. Quero um novo olhar e uma nova percepção sobre tudo”. A ambição por  outro conceito de cidade, mais inclusivo, amigo do meio ambiente, transparente, focado no bem estar de seus habitantes serviu de convergência entre os participantes do oitavo e último webinar (Re)visão 2050, realizado pelo CEBDS (Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável).

O debate reuniu, além de Preto Zezé, Viviane Mansi, presidente da Fundação Toyota do Brasil; Rodrigo Perpétuo, secretário-executivo do Iclei Brasil (organização que congrega governos de cidades e estados pelo mundo); e Marcos Bicudo, presidente da Vedacit. Sob mediação de Marina Grossi, presidente do CEBDS, o webinar tratou, durante 1h43, de agendas urgentes das cidades brasileiras – todas acentuadas dramaticamente pela pandemia. No país em que 86% da população vivem nas áreas urbanas, os problemas se multiplicam, tornando-se pesados obstáculos no caminho da sustentabilidade.

Viviane Mansi reconheceu a complexidade das mudanças, mas sublinhou que elas são inescapáveis, especialmente para empresas globais, mirando em mercados com diferentes maturidades. “O que funciona na Europa precisa ser diferente no Brasil, pela regulação e pelas preferências da população”, observou ela, citando o desafio Toyota 2050, que exige o uso adequado dos recursos, diminuição de CO² e uso inteligente de água. “O sistema busca o desperdício zero, com um portfólio que funcione de maneira sustentável”, acrescentou Mansi, lembrando que a empresa vende tem hoje oito modelos de carros eletrificados no Brasil.

Ela citou ainda o projeto Águas da Mantiqueira, de proteção aos mananciais que abastecem 14 milhões de pessoas em São Paulo; o projeto da APA Costa dos Corais, que cuida de ampla área de berçário de peixes; e a ação de proteção da arara azul, que tirou a ave da lista de animais em extinção. “É suficiente? Não. Decidimos falar mais, abrir o diálogo, ter transparência, trazer outras empresas para a mesma causa. Precisamos de esforço coletivo, num compromisso de longo prazo”.

Na favela, somos doutores em estado mínimo e em dificuldade, pós-doutores em tragédia, PhD em tudo de ruim que acontece. Não temos retrovisor nem capacidade de enxergar muito longe. A preocupação não dá para ser o pós-pandemia, precisa ser o agora-pandemia

Preto Zezé tem mais pressa. Para ele, colaboração significa olhar os gargalos e desafios do ponto de vista da desigualdade social brasileira, tornada transparente pela covid-19. Na direção de uma ONG presente nos 26 estados, no Distrito Federal e em 17 países, ele calcula em 15 milhões os habitantes das favelas – população maior do que a do Rio Grande do Sul. “Somos sempre associados à violência e ao medo e não à potência. Antes da pandemia, o poder de consumo das favelas atingia R$ 119 bilhões, mas o estigma impede a construção de pontes para canalizar o potencial”, analisa. “Interfere no olhar das empresas, do poder público e até na percepção das próprias pessoas que vivem nesses territórios”. A Cufa luta para os habitantes das favelas serem protagonistas da agenda de mudança, trabalhando, na crise, na arrecadação de alimentos e material de limpeza e na viabilização de recursos financeiros, para mães solteiras.

Mulheres carregam baldes na cabeça na favela de Paraisópolis, em São Paulo: acesso a água precisa ser universalizado. Foto Maurício Lima/AFP
Mulheres carregam baldes na cabeça na favela de Paraisópolis, em São Paulo: acesso a água precisa ser universalizado. Foto Maurício Lima/AFP

“Somos uma ONG com fins lucrativos, que luta pela construção de ecossistema de saberes e expertises”, define Preto Zezé. “O terceiro setor não pode ficar só na agenda xingacionista ou reclamativa”. Ele se avalia otimista, pelos avanços na agenda pública, com, por exemplo, o debate da renda básica, que o Congresso elevou para R$ 600, o adiamento do Enem e a interrupção das ações policiais em comunidades populares por decisão do STF. “Há renovação do engajamento da sociedade. Na favela, a gente já é doutor em estado mínimo”.

Rodrigo Perpétuo pregou a refundação das cidades, com a eliminação das desigualdades, muito além da mera função para as quais foram concebidas. “O objetivo de aglomerar pessoas para produzir e consumir mercadorias, bens e serviços perdeu o sentido – e a pandemia está mostrando isso. É hora de outra função, a da convivência harmônica das pessoas, o que não será possível se só algumas delas tiverem educação de qualidade, habitação confortável e outras, nem acesso a saneamento e água potável”, argumentou. “Para que em 2050 possamos ter a cidade da convivência, precisamos tratar das questões que Preto Zezé elenca como de curtíssimo prazo. A cidadania pressiona pelas agendas e compartilhar a responsabilidade por elas é fundamental”, acrescentou, alertando que a harmonia com a natureza precisa ser valorizada.

Porque cidade sustentável é a que promove o bem estar das pessoas, sublinhou Marcos Bicudo, da Vedacit. “Temos que batalhar pela melhoria nas condições de habitação e na saúde das edificações, não só de casas, mas de hospitais e outros prédios públicos. Não dá para morar numa casa com mofo e cômodos sem janelas”, defendeu. “Por isso, o Brasil precisa da iniciativa privada com propósito, de parcerias sólidas com terceiro setor e academia e do governo atuando como facilitador”.

Preto Zezé lembrou, então, as urgências que não podem esperar 2050 – na verdade, nem mais um minuto. “Não temos retrovisor nem capacidade de enxergar muito longe. A preocupação não dá para ser o pós-pandemia, precisa ser o agora-pandemia”, pregou, ponderando que a desigualdade é corrosiva por estar construindo “percepção muito perigosa de negação de todos os acordos sociais possíveis”. E o cenário seguinte mostra o descrédito total da política. “Sem programa de proteção social emergencial agora, nesse momento, não acredito que pais e mães de família vão ficar vendo passivamente os filhos chorando de fome”.

Ele louva a “clareia de percepção diferente” com o terceiro setor deixando de ser criminalizado, e vivendo novo momento de parcerias. “Temos que construir o soro a partir do veneno. Somos doutores em dificuldade, pós-doutores em tragédia, PhD em tudo de ruim que acontece. Na favela, já se nasce empreendendo para sobreviver. Por isso, precisamos construir diálogo com poder público, porque senão a agenda já vem pronta, para nos deslegitimar e desacreditar. Queremos melhor de ambas as partes para costurar a colcha de retalhos de ações que deram certo. É um desafio danado, caminhar sem horizonte. Estou na base, sou bem pragmático. O que vier rápido será mais interessante, porque os problemas não esperam”.

A inclusão tem de chegar muito antes de 2050, concordou Viviane Mansi. A cidade que acolhe é para poucos e precisamos torna-la um espaço público para todos. É necessários colaborar mais, encontrar soluções conjuntas”, convocou, reivindicando uma “ética planetária”, como ensinou Edgar Morin. “Fomos nos tornando mais individualistas e perdemos todos. Só vamos ser bem-sucedidos se o ecossistema for pra todos. Somos muitos bons de iniciativa, mas não de “acabativa”, por isso precisamos mexer nas nossas bases mais profundas, aqui no brasil”, constatou.

Ela revelou que a Toyota abriu para o público 24 mil patentes relativas a carros híbridos e elétricos, mas, de outro lado, alertou para o grande hiato social que a pandemia está formando. “No ensino superior, temos alunos assistindo à aula até dia 15 do mês, que é quando acaba o pacote de internet”, lembrou. “Imaginem o que acontece na escola, e a mãe com apenas um celular que tem de ser usado por ela e por duas crianças para terem aula”.

Engarrafamento no Rio: cidades precisam ser repensadas na lógica da mobilidade. Foto de Yasuyoshi Chiba (AFP)
Engarrafamento no Rio: cidades precisam ser repensadas na lógica da mobilidade. Foto de Yasuyoshi Chiba (AFP)

Rodrigo Perpétuo destacou a importância da economia circular, com empresas e fornecedores se aproximando em práticas e posturas. “A ética deve nortear todas as organizações, públicas, privadas e do terceiro setor. Precisamos da atividade produtiva sustentável, dobrando a aposta na logística reversa, para uma melhor gestão dos resíduos. E o setor privado precisa mensurar suas emissões de carbono”, listou.

O fomento ao fortalecimento do empreendedorismo, dentro das comunidades e fora delas também tem status de prioridade para Marcos Bicudo. “As cidades inteligentes diminuem deslocamentos, pensam na vocação de cada região, constroem transporte público com qualidade, e democratizam o acesso digital”, explicou. “A pandemia acelera tudo. Temos que ser mais ágeis, adaptáveis e enfrentar mais riscos. Se a gente não cuidar das questões de base, será pior”, previu Viviane Mansi. “O efeito do confinamento vai criar outras discrepâncias a serem gerenciadas. A pandemia traz algo positivo para repensar espaços. Ser menos high tech, mais high touch”.

No fim, Marina Grossi saudou os debatedores de todas as edições, com a certeza que a necessária busca por um mundo mais sustentável ganhou conteúdo valioso. A (Re)visão está em curso e começará muito antes de 2050.

Aydano André Motta

Niteroiense, Aydano é jornalista desde 1986. Especializou-se na cobertura de Cidade, em veículos como “Jornal do Brasil”, “O Dia”, “O Globo”, “Veja” e “Istoé”. Comentarista do canal SporTV. Conquistou o Prêmio Esso de Melhor Contribuição à Imprensa em 2012. Pesquisador de carnaval, é autor de “Maravilhosa e soberana – Histórias da Beija-Flor” e “Onze mulheres incríveis do carnaval carioca”, da coleção Cadernos de Samba (Verso Brasil). Escreveu o roteiro do documentário “Mulatas! Um tufão nos quadris”. E-mail: aydanoandre@gmail.com. Escrevam!

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Um comentário em “O amanhã precisa ser novo – só não pode ser o histórico normal do Brasil

  1. Giovanni Fratello disse:

    Espero ajudar varias pessoas que necessitam de voltar a ter renda: uma boa ideia investir no ramo alimentício. Eu conheço varias amigos que por conta da pandemia abriram pequenos negócios. Este aqui de comidas saudáveis é muito bom! Vejam! https://bit.ly/ricoefitness

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