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Veja o que já enviamosA volta do Mercadinho São José e as encruzilhadas de Laranjeiras
Inauguração de novo centro gastronômico em tradicional bairro da Zona Sul provoca temor de trânsito ainda mais caótico
Quando me mudei da casa dos meus pais em Laranjeiras, onde passei a infância e a adolescência, costumava dizer que decidi morar em outro bairro para fugir dos engarrafamentos crônicos e encontrar um lugar onde a minha alma boêmia pudesse encontrar pousos sem precisar vagar pela cidade. Faltavam bons botequins – e bons locais para comer – em Laranjeiras lá no começo dos anos 1980. Ainda hoje, um amigo diz que Laranjeiras é o túmulo da gastronomia; outro conta que procura em bares recém-abertos, sem encontrar, um oásis de boa boemia. Por isso, a maioria dos moradores e frequentadores de Laranjeiras (meus irmãos ainda vivem lá) recebeu com animação a notícia da reabertura do Mercadinho São José, que, durante três décadas, foi um ponto de concentração de bares e outras atividades: lojas de artesanato, ateliês, oficinas de danças e capoeira funcionaram nos boxes, que, no passado mais remoto, eram usados para venda de verduras, legumes e frutas.
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A minha alma boêmia nunca achou lugar confortável no mercadinho, apesar da fachada do imóvel ter um certo charme pela antiguidade: foi erguido, provavelmente, no período colonial ou no começo do Império; pela história do bairro, o espaço foi ocupado por uma senzala para escravos e, posteriormente, pela estrebaria para cavalos da chácara da família Carvalho de Sá, proprietária de boa parte do que hoje é Laranjeiras e o vizinho Catete. Em 1942, o imóvel adquirido pelo governo federal, foi reformado e reabriu, ainda durante a Segunda Guerra Mundial, como Mercado São José, parte de uma rede criada com o objetivo de oferecer alimentos mais baratos em um período de escassez devido ao conflito – as antigas baias dos cavalos foram adaptadas para os pontos de venda dos produtos.


O mercado funcionou até a década de 1960 e, durante quase 20 anos, o imóvel, incorporado ao patrimônio da Previdência, ficou praticamente abandonado. Só reabriu em 1989, como Mercado São José das Artes, após acordo entre o INSS e a administração municipal. Como o nome adianta, o espaço deveria abrigar um centro cultural: espetáculos teatrais, shows musicais e exposições chegaram a ter o São José como palco, mas a maioria dos boxes – herança dos tempos de mercado – acabou, aos poucos, ocupado por bares e restaurantes. As almas boêmias de Laranjeiras até gostavam – depois de um certo horário, era um raro lugar onde se podia beber uma cerveja gelada e ver gente no bairro. Em 1993, porém, o INSS começou a querer retomar o prédio: teve a oposição dos moradores que, no ano seguinte, conseguiram o tombamento do imóvel pelo município.
A briga judicial, naturalmente, não fez bem ao Mercadinho São José, como já era chamado pela cidade. Reformas necessárias nunca foram feitas: a parte coberta era abafada; a área central, descoberta, alagava com qualquer chuva. Lembro de ter comido um ótimo acarajé num restaurante do lugar abaianado na primeira década deste século; na mesma época, jovens eram atraídos por uma combinação de cerveja e pizza em outro boxe; no começo da década seguinte, em 2012, foi inaugurado ali o Botero, honesto botequim que vagou por outros bairros e ainda resiste em Botafogo. Nenhum desses estabelecimentos estava lá em 2018 quando o INSS finalmente conseguiu despejar os locatários: cinco bares, uma escola de capoeira, um estúdio musical, um ateliê e um espaço cultural multiuso. O imóvel seguia deteriorado, mas os bares ainda tinham movimento: Laranjeiras, pouco mais de 30 anos depois de eu deixar o bairro, seguia com poucas opções boêmias.
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A história da região explica a escassez. Depois da fase das chácaras durante o Império, Laranjeiras e o vizinho Cosme Velho foram urbanizados como bairros residenciais, com comércio basicamente local. Até a metade do século passado, era um lugar de pouco movimento, na comparação com outras áreas da Zona Sul como Copacabana ou Botafogo. Isso mudou com a construção dos túneis Santa Bárbara – obra iniciada em 1947 e concluída em 1963 – e, principalmente, do Rebouças, com duas galerias que ligam o Rio Comprido, na Zona Norte, a Lagoa, na Zona Sul, com uma saída pelo Cosme Velho, o que multiplicou, a partir do começo dos anos 1970, o movimento de veículos em Laranjeiras e, aos poucos, foi tornando o trânsito entre permanentemente congestionado e caótico.
Os bairros continuaram residenciais, mas registrou aumento de estabelecimentos de comércio e serviços: os moradores sofriam com os engarrafamentos nas ruas das Laranjeiras e Cosme Velho, vias de mão dupla e estreitas para tamanho movimentos; muitos empreendimentos comerciais, bares e restaurantes incluídos, preferiam, entretanto, se aventurar em outros bairros. Obras e adaptações viárias foram feitas, mas o trânsito virou um rotineiro perrengue meio século depois da inauguração do Rebouças.
Por isso, um amigo fala em túmulo da gastronomia e outro busca um oásis boêmio em cada novo bar. Por isso, há comemoração com a reabertura do Mercadinho São José, agora realmente focado em gastronomia. Em 2023, a Prefeitura do Rio adquiriu o cada vez mais deteriorado imóvel do INSS, abriu um processo de concessão e o consórcio vencedor promoveu a reforma do espaço, reaberto neste domingo (21/09). O cardápio é variado: filiais da cervejaria Brewteco e do restaurante italiano Locanda, tradicional da Região Serra; os bares Cura, com ótima comida de botequim, Borbulhas, de drinks, e Gebar, com pegada árabe; a Confeitaria Absurda, a Rotisseria Bocas, a queijaria Rancho das Vertentes, com outros produtos artesanais, a Sorveteria Hoba, e o Culto Café, além de um hortifruti, uma loja de produtos da culinária mineira, outra de massas frescas, uma terceira de cogumelos e outros temperos.


Com a obra, o imóvel foi completamente coberto e ganhou um terraço, com espaço para as mesas dos estabelecimentos se espalharem. Há espaço para exposições, shows e outras manifestações culturais. Mas a reforma manteve a imagem de São José continua na parede da fachada e a fonte, do tempo do Império, no centro do andar térreo. A inauguração marca uma nova era para Laranjeiras: não para quem associa boemia à madrugada, porque está combinado que o Mercadinho de São José fechará às 22h, mas o bairro ganha opções gastronômicas e, pelo menos, alguns lugares uma botequinagem vespertina. Mas a encruzilhada de Laranjeiras vai continuar assombrando o lugar. Pouco antes da inauguração, moradores do bairro reuniram-se com administradores e representantes da prefeitura com uma antiga preocupação: que o novo Mercadinho São José tornasse mais caótico o trânsito da região, apesar de o novo centro gastronômico ficar bem próximo da estação do metrô do Largo do Machado.
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