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A volta do Mercadinho São José e as encruzilhadas de Laranjeiras

Inauguração de novo centro gastronômico em tradicional bairro da Zona Sul provoca temor de trânsito ainda mais caótico

ODS 11ODS 12 • Publicada em 23 de setembro de 2025 - 09:28 • Atualizada em 23 de setembro de 2025 - 10:13

Quando me mudei da casa dos meus pais em Laranjeiras, onde passei a infância e a adolescência, costumava dizer que decidi morar em outro bairro para fugir dos engarrafamentos crônicos e encontrar um lugar onde a minha alma boêmia pudesse encontrar pousos sem precisar vagar pela cidade. Faltavam bons botequins – e bons locais para comer – em Laranjeiras lá no começo dos anos 1980. Ainda hoje, um amigo diz que Laranjeiras é o túmulo da gastronomia; outro conta que procura em bares recém-abertos, sem encontrar, um oásis de boa boemia. Por isso, a maioria dos moradores e frequentadores de Laranjeiras (meus irmãos ainda vivem lá) recebeu com animação a notícia da reabertura do Mercadinho São José, que, durante três décadas, foi um ponto de concentração de bares e outras atividades: lojas de artesanato, ateliês, oficinas de danças e capoeira funcionaram nos boxes, que, no passado mais remoto, eram usados para venda de verduras, legumes e frutas.

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A minha alma boêmia nunca achou lugar confortável no mercadinho, apesar da fachada do imóvel ter um certo charme pela antiguidade: foi erguido, provavelmente, no período colonial ou no começo do Império; pela história do bairro, o espaço foi ocupado por uma senzala para escravos e, posteriormente, pela estrebaria para cavalos da chácara da família Carvalho de Sá, proprietária de boa parte do que hoje é Laranjeiras e o vizinho Catete. Em 1942, o imóvel adquirido pelo governo federal, foi reformado e reabriu, ainda durante a Segunda Guerra Mundial, como Mercado São José, parte de uma rede criada com o objetivo de oferecer alimentos mais baratos em um período de escassez devido ao conflito – as antigas baias dos cavalos foram adaptadas para os pontos de venda dos produtos.

O novo Mercadinho São José: Inauguração de novo centro gastronômico provoca temor de trânsito ainda mais caótico em Laranjeiras (Foto: Marcos de Paula / Prefeitura do Rio)

O mercado funcionou até a década de 1960 e, durante quase 20 anos, o imóvel, incorporado ao patrimônio da Previdência, ficou praticamente abandonado. Só reabriu em 1989, como Mercado São José das Artes, após acordo entre o INSS e a administração municipal. Como o nome adianta, o espaço deveria abrigar um centro cultural: espetáculos teatrais, shows musicais e exposições chegaram a ter o São José como palco, mas a maioria dos boxes – herança dos tempos de mercado – acabou, aos poucos, ocupado por bares e restaurantes. As almas boêmias de Laranjeiras até gostavam – depois de um certo horário, era um raro lugar onde se podia beber uma cerveja gelada e ver gente no bairro. Em 1993, porém, o INSS começou a querer retomar o prédio: teve a oposição dos moradores que, no ano seguinte, conseguiram o tombamento do imóvel pelo município.

A briga judicial, naturalmente, não fez bem ao Mercadinho São José, como já era chamado pela cidade. Reformas necessárias nunca foram feitas: a parte coberta era abafada; a área central, descoberta, alagava com qualquer chuva. Lembro de ter comido um ótimo acarajé num restaurante do lugar abaianado na primeira década deste século; na mesma época, jovens eram atraídos por uma combinação de cerveja e pizza em outro boxe; no começo da década seguinte, em 2012, foi inaugurado ali o Botero, honesto botequim que vagou por outros bairros e ainda resiste em Botafogo. Nenhum desses estabelecimentos estava lá em 2018 quando o INSS finalmente conseguiu despejar os locatários: cinco bares, uma escola de capoeira, um estúdio musical, um ateliê e um espaço cultural multiuso. O imóvel seguia deteriorado, mas os bares ainda tinham movimento: Laranjeiras, pouco mais de 30 anos depois de eu deixar o bairro, seguia com poucas opções boêmias.

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O novo Mercadinho São José no dia da inauguração: moradores celebram centro gastronômico mas temem trânsito e desordem urbana (Foto: Marcos de Paula / Prefeitura do Rio)

A história da região explica a escassez. Depois da fase das chácaras durante o Império, Laranjeiras e o vizinho Cosme Velho foram urbanizados como bairros residenciais, com comércio basicamente local. Até a metade do século passado, era um lugar de pouco movimento, na comparação com outras áreas da Zona Sul como Copacabana ou Botafogo. Isso mudou com a construção dos túneis Santa Bárbara – obra iniciada em 1947 e concluída em 1963 – e, principalmente, do Rebouças, com duas galerias que ligam o Rio Comprido, na Zona Norte, a Lagoa, na Zona Sul, com uma saída pelo Cosme Velho, o que multiplicou, a partir do começo dos anos 1970, o movimento de veículos em Laranjeiras e, aos poucos, foi tornando o trânsito entre permanentemente congestionado e caótico.

Os bairros continuaram residenciais, mas registrou aumento de estabelecimentos de comércio e serviços: os moradores sofriam com os engarrafamentos nas ruas das Laranjeiras e Cosme Velho, vias de mão dupla e estreitas para tamanho movimentos; muitos empreendimentos comerciais, bares e restaurantes incluídos, preferiam, entretanto, se aventurar em outros bairros. Obras e adaptações viárias foram feitas, mas o trânsito virou um rotineiro perrengue meio século depois da inauguração do Rebouças.

Por isso, um amigo fala em túmulo da gastronomia e outro busca um oásis boêmio em cada novo bar. Por isso, há comemoração com a reabertura do Mercadinho São José, agora realmente focado em gastronomia. Em 2023, a Prefeitura do Rio adquiriu o cada vez mais deteriorado imóvel do INSS, abriu um processo de concessão e o consórcio vencedor promoveu a reforma do espaço, reaberto neste domingo (21/09). O cardápio é variado: filiais da cervejaria Brewteco e do  restaurante italiano Locanda, tradicional da Região Serra; os bares Cura, com ótima comida de botequim, Borbulhas, de drinks, e Gebar, com pegada árabe; a Confeitaria Absurda, a Rotisseria Bocas, a queijaria Rancho das Vertentes, com outros produtos artesanais, a Sorveteria Hoba, e o Culto Café, além de um hortifruti, uma loja de produtos da culinária mineira, outra de massas frescas, uma terceira de cogumelos e outros temperos.

O Mercadinho São José após a reforma: fonte centenária preservada e novos espaços gastronômicos (Foto: Marcos de Paula / Prefeitura do Rio)

Com a obra, o imóvel foi completamente coberto e ganhou um terraço, com espaço para as mesas dos estabelecimentos se espalharem. Há espaço para exposições, shows e outras manifestações culturais. Mas a reforma manteve a imagem de São José continua na parede da fachada e a fonte, do tempo do Império, no centro do andar térreo. A inauguração marca uma nova era para Laranjeiras: não para quem associa boemia à madrugada, porque está combinado que o Mercadinho de São José fechará às 22h, mas o bairro ganha opções gastronômicas e, pelo menos, alguns lugares uma botequinagem vespertina. Mas a encruzilhada de Laranjeiras vai continuar assombrando o lugar. Pouco antes da inauguração, moradores do bairro reuniram-se com administradores e representantes da prefeitura com uma antiga preocupação: que o novo Mercadinho São José tornasse mais caótico o trânsito da região, apesar de o novo centro gastronômico ficar bem próximo da estação do metrô do Largo do Machado.

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