ODS 1
Resgate Inclusivo: pessoas com deficiência também lutam por justiça climática


Iniciativa propõe pensar planos de adaptação e resposta à eventos climáticos extremos com acessibilidade


“Ninguém fica para trás”. Este é um dos lemas do “Projeto Resgate Inclusivo (PRI)”, movimento que luta por justiça climática para pessoas com deficiência (PcDs). A iniciativa inédita no país foi idealizada pela socióloga Marta Almeida Gil após perceber a falta de informações e notícias sobre PcDs nas enchentes no Rio Grande do Sul, em 2024. “Ninguém sabia como resgatar pessoas com deficiência”, resume ela, sobre a falta de acessibilidade e de protocolos inclusivos para situações de emergência.
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A falta de orientações específicas para PcDs em desastres foi sentida de perto por Mariana Rosa. Ela trabalha na Associação para Atendimento e Auxílio de Deficientes Mentais Porto Belo (Adempobel) que acolhe pessoas com deficiência em Canoas, na região metropolitana de Porto Alegre (RS). Na época, a instituição mantinha cerca de 15 casas para 150 pessoas e apenas uma não foi afetada pela enchente. “Muitos barcos paravam para tentar ajudar, mas diziam que não sabiam resgatar cadeirantes ou quem tem alguma mobilidade reduzida. Então, eles ficaram esperando muito mais horas”, recorda Mariana.
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Veja o que já enviamosUma das metas do Projeto Resgate Inclusivo é construir protocolos e oferecer capacitações para profissionais da Defesa Civil, Corpo de Bombeiros, secretarias de saúde, entre outras entidades civis e órgãos públicos. A iniciativa trabalha com três frentes principais: prevenção, preparação e pós-resgate, com objetivo de melhorar a resposta em situações extremas e as condições de acessibilidade antes de um desastre, incluindo, a comunicação e os alertas sobre riscos climáticos.
O PRI foi lançado oficialmente em setembro pela Amankay Instituto de Estudos e Pesquisas, ONG dedicada à produção de informações sobre deficiência e inclusão social. A iniciativa conta com apoio da ONU Habitat, programa das Nações Unidas voltado à promoção ao planejamento urbano, considerando aspectos socioambientais e climáticos.
Sabemos que quando é preto, pobre e com deficiência, isso pesa de forma desigual. Temos que lutar para mudar isso, porque vidas são vidas
Existem poucas pesquisas e dados sobre o impacto das mudanças climáticas em pessoas com deficiência. Porém, o que a realidade e casos recentes indicam é de que esse grupo da população sofre de forma mais intensa as consequências de eventos extremos do clima. Estimativa feita pela Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) aponta que PcDs possuem de duas a quatro vezes mais chances de morrer em desastres e emergências, em comparação com pessoas sem deficiência.
Outro estudo, publicado recentemente na revista científica PLOS Global Public Health, analisou como o aquecimento global afeta o acesso de PcDs à água, ao saneamento e à higiene. A pesquisa indica que há barreiras extras para essas pessoas durante secas e enchentes, por conta de uma interseção entre desigualdade social, pobreza estrutural e falta de infraestrutura acessível. Além disso, as questões que envolvem deficiência e acessibilidade também não costumam aparecer em debates sobre adaptação climática.
Barreiras em abrigos
Além dos desafios nos resgates, o desastre socioambiental no RS evidenciou lógicas excludentes em abrigos, principalmente para imigrantes, mulheres, crianças e pessoas com deficiência. Rosângela Oliveira, 61 anos, teve paralisia infantil aos 2 anos de idade e é usuária de cadeira de rodas. Em maio de 2024, ela morava no bairro Mathias Velho, em Canoas (RS), um dos locais mais atingidos pela enchente na região metropolitana de Porto Alegre. “Foi bem complicado e (nos abrigos) tinha pessoas com de cadeira de rodas até dormindo no chão”, conta, sobre a situação de muitas PcDs que tiveram de sair de suas casas.
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Na época, Rosângela conseguiu sair antes de sua casa ser alagada e ficou em um abrigo da Associação Canoense de Deficientes Físicos (Acadef), onde a estrutura já era adaptada, por exemplo, com banheiros acessíveis. Após o período mais grave, ela ajudou a levar ajuda emergencial para PcDs em outros locais. “Doía ver as pessoas sentadas em um canto, esperando que alguém fosse alcançar alguma coisa para comer, ajudar a trocar uma roupa e tomar um banho”, descreve, sobre a perda de autonomia e dignidade gerada pela soma do desastre com a falta de acessibilidade prévia.
Mariana Rosa descreve experiência semelhante com as pessoas com deficiência atendidas pela Adempobel. “Ficamos alojados em algumas escolas em que fomos convidados a nos retirar, porque as pessoas não conseguiam lidar com autistas e pessoas com outras deficiências mentais”, conta. Por conta disso, a associação chegou a alugar um outro espaço para utilizar como abrigo e os prejuízos financeiros com o desastre ficaram próximos de R$500 mil. Mais tarde, a entidade conseguiu um empréstimo via Pronampe (Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte).
Apesar dos problemas logísticos e da demora em alguns casos, todas as cerca de 150 pessoas atendidas pela Adempobel foram resgatadas com segurança, mas quatro delas tiveram complicações e morreram semanas depois. “A gente conseguiu resgatar todas as pessoas, mas após isso, alguns precisaram de internação, porque ficaram muito tempo em contato com a água contaminada. Perdemos quatro moradores semanas após a enchente”. A situação da Adempobel só foi mitigada graças a uma onda de solidariedade, liderada por uma pessoa com deficiência.


Mobilização e rede de apoio
Escritora e finalista do Prêmio Jabuti 2025 com a obra “Clube de Leitura Ossos de Pássaro”, Thais Pessanha mora no Rio de Janeiro e foi responsável por mobilizar uma rede de solidariedade para auxiliar pessoas com deficiência afetadas pelas chuvas no sul. Nascida com osteogênese imperfeita (OI), também conhecida como “doença dos ossos de vidro”, Thais teve contato com a situação da Adempobel em vídeo publicado por Mariana nas redes sociais.
Na época, a escritora conseguiu arrecadar doações para comprar colchões de uma fábrica em Goiás para enviar ao Rio Grande do Sul, além de auxiliar com outras doações. “Consegui contato com o exército e passei a lista de tudo que a Mariana estava precisando e o exército falou que ia chegar lá e entregar, mesmo que fosse de barco ou helicóptero”, relembra.
Depois disso, Thais conheceu o Projeto Resgate Inclusivo e passou a integrar a equipe de apoiadores da iniciativa. Segundo ela, esse movimento é essencial, principalmente, para chamar atenção para os impactos que perduram após uma tragédia e que são agravados por desigualdades sociais. “Sabemos que quando é preto, pobre e com deficiência, isso pesa de forma desigual. Temos que lutar para mudar isso, porque vidas são vidas”.
Atualmente, o PRI está em uma fase inicial, com foco em comunicação e divulgação, também como forma de angariar apoio e financiamento. “O que a gente quer é que esse projeto ganhe bastante visibilidade para que ele consiga os apoios necessários para ser implantado, porque não adianta só bater palma que é um projeto lindo”, destaca Thais.
Como parte do trabalho de construção do Resgate Inclusivo, Marta Almeida Gil tem buscado referências e exemplos ao redor do mundo. “Recebi material do estado da Flórida, nos Estados Unidos, onde quase todo ano tem furacão. Eles têm políticas públicas para o tema e abrigos com acessibilidade para pessoas com deficiência”, cita a socióloga. Outro exemplo coletado por ela veio do Uruguai, na forma de um glossário em língua de sinais com termos ligados às mudanças climáticas e desastres, para orientar pessoas surdas nessas situações.
Reconstrução e acessibilidade
A adoção de políticas públicas mais inclusivas também passa por documentos e alertas com linguagem simples. Além disso, a acessibilidade precisa ser considerada na adaptação e reconstrução das cidades. Em relação à experiência no Rio Grande do Sul, Rosângela Oliveira critica a forma como esse processo têm ocorrido na região metropolitana de Porto Alegre, desde as calçadas e ruas, até a redução da acessibilidade no transporte público.
Segundo Rosângela, isso se deve ao capacitismo e a ideia de que PcDs saem de casa apenas para ir em consultas médicas. “Eu tenho direito de ir e vir em qualquer local. No Gasômetro, fizeram umas reformas e instalaram barzinhos, mas não vi em nenhum momento falarem que teria banheiro adaptado”, exemplifica Rosângela, ao falar sobre o projeto de transformar a antiga usina termoelétrica da capital gaúcha em um centro cultural e gastronômico.
Mariana Rosa também cita a busca independente da associação para criar protocolos para possíveis novos desastres. “Sabemos que essas situações vão se repetir e essas pessoas estão muito mais propensas a não serem resgatadas e não conseguirem sair dessa situação”, enfatiza.
No Plano Rio Grande, criado pelo governo do RS para a reconstrução do Estado, a acessibilidade aparece em alguns dos projetos, como a construção de uma Rede de Ginásios Multiuso para Apoio Humanitário e a reforma da rodoviária de Porto Alegre. Ainda assim, não existem dados específicos sobre os impactos das enchentes nas pessoas com deficiência ou informações sobre sua participação efetiva na elaboração das políticas de reconstrução do Estado.
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Micael Olegário
Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Escreve sobre temas ligados a questões socioambientais, educação e acessibilidade.









































