Chuvas no Sul: surdos enfrentam desastre e falta de informações acessíveis*

Uma das lives do governador Eduardo Leite com tradução em Libras: surdos reclamam da falta de acessibilidade nas informações dos órgãos públicos sobre chuvas no Sul para os surdos (Foto: Reprodução)

Notícias e alertas climáticos sem acessibilidade aumentam a vulnerabilidade de pessoas com deficiência; intérpretes se unem para traduzir informações em Libras

Por Micael Olegário | ODS 13 • Publicada em 8 de maio de 2024 - 10:26 • Atualizada em 10 de maio de 2024 - 09:56

Uma das lives do governador Eduardo Leite com tradução em Libras: surdos reclamam da falta de acessibilidade nas informações dos órgãos públicos sobre chuvas no Sul para os surdos (Foto: Reprodução)

*Esta reportagem sobre as chuvas no Rio Grande do Sul está disponível em Libras neste link e no final do texto

Vivenciar um desastre, mesmo com acesso a informações e alertas, é algo difícil e desesperador. Agora, imagine estar diante de tempestades intensas e enchentes sem o básico de notícias, sem saber para onde ir ou quais as melhores formas de se proteger. “Como fazemos para chamar a polícia, a defesa civil? Não têm canais de contato para que tenhamos segurança”, afirma Francine Pedrotti, presidente da Sociedade dos Surdos de Caxias do Sul (SSCS). Assim como a maioria das pessoas no Rio Grande do Sul, Francine se sentiu assustada e foi impactada pelo desastre ambiental que já deixou mais de 80 mortos e afetou mais de 1 milhão de pessoas no estado.

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A falta de acessibilidade nos comunicados da Defesa Civil, do governo estadual, dos jornais e dos diversos canais de informação, impõe uma barreira comunicativa que compromete a compreensão das informações por pessoas com deficiência. A ausência de interpretação e tradução na Língua Brasileira de Sinais (Libras), por exemplo, faz com Francine tenha dificuldade em receber alertas e notícias importantes sobre a crise climática que o estado atravessa, o que contribui para a vulnerabilidade dos cerca de 617 mil surdos que vivem no Rio Grande do Sul (segundo dados do Censo de 2010, último com dados disponíveis sobre essa população).

“O uso de legenda escrita nos pronunciamentos do governador Eduardo Leite é muito diferente de ter uma intérprete fazendo a tradução na nossa língua”, aponta a presidente da SSCS. Francine explica: mesmo que uma boa parte dos surdos entenda o português, essa não é sua língua principal, o que dificulta a compreensão, principalmente de textos longos. Isso ocorre porque, enquanto o português é uma língua oral/auditiva, a Libras é visual e expressiva, ou seja, toda a construção de frases e sentidos se altera.

Alguns surdos disseram que estavam dormindo e não foram acordados, eles perceberam quando estavam molhados e levantaram assustados. Por que eles não tinham a informação antecipada?

Francine Pedrotti
Presidente da Sociedade dos Surdos de Caxias do Sul (SSCS)

Também morador de Caxias do Sul, Andrei Borges é um dos criadores do canal Visurdo, onde produz conteúdos sobre a comunidade surda ao lado da irmã Tainá Borges. Ele conta que só começou a perceber a gravidade do desastre a partir de imagens na TV na quarta-feira, 1° de maio. Ambos, Andrei e Francine não tiveram contato com qualquer previsão meteorológica acessível que indicasse a chegada das fortes chuvas que atingiram o RS. 

“Nós somos cidadãos, pagamos impostos como qualquer um. Sabemos que Caxias tem uma central de intérpretes, mas o prefeito não chama para divulgar junto”, reclama o produtor de conteúdo sobre os comunicados da prefeitura municipal sobre o desastre. Segundo Andrei, não adianta que o poder público possua intérpretes, como é o caso da cidade da serra gaúcha, se não os chama para dar comunicados e alertas em um momento de calamidade pública. 

Apesar de não ter sido afetada diretamente pela tragédia, Francine menciona a preocupação com outros membros da comunidade surda, tanto de Caxias do Sul, como de outras cidades. “Alguns surdos disseram que estavam dormindo e não foram acordados, eles perceberam quando estavam molhados e levantaram assustados. Por que eles não tinham a informação antecipada?”, questiona.

A partir da deficiência na cobertura da crise climática e da necessidade de entender o que estava acontecendo, Francine recorreu ao grupo de intérpretes da C&D, empresa que presta serviços de tradução e interpretação de Libras para empresas de Caxias do Sul. Foi então que uma equipe de voluntárias começou a selecionar algumas das principais informações e produzir vídeos com janela de Língua de Sinais.

Foto colorida da pista da BR-116, no município de Caxias do Sul, destruída pela enchente. A imagem mostra a pista destruída por deslizamento de terra, com lama e poças de água no lado esquerdo da imagem. Ao fundo, árvores e serra
Pista da BR-116, no município de Caxias do Sul, destruída pela enchente: surdos da região reclamam da falta de informações acessíveis (Foto: Andréa Copini / Prefeitura de Caxias do Sul)

Mobilização para traduzir informações emergenciais

Uma das colaboradoras da C&D e professora da Escola Especial Helen Keller, instituição administração pelo município e estado que conta com profissionais bilíngue e atua na educação para surdos na serra gaúcha, Andrelise Gonçalves Sperb viu a mensagem de Francine e decidiu começar a se mobilizar e chamar outras intérpretes para ajudar. “Enquanto ouvinte, precisamos pensar nessa minoria que são os surdos e eles precisam ter acessibilidade”, ressalta Andrelise.

Também intérprete e professora, Jailza dos Santos Martins foi uma das primeiras a iniciar o processo de tradução das principais notícias e alertas. Ainda assim, ela menciona a dificuldade de ter que fazer uma seleção em um momento tão crucial. “Como eu seleciono o que eu passo e não passo? Eu deveria passar tudo”, lamenta. Inicialmente, as profissionais priorizaram informações sobre Caxias do Sul e região, depois, a ação também se estendeu para outras cidades fortemente atingidas, como é o caso da capital Porto Alegre, onde vivem cerca de 80 mil pessoas surdas.

Estamos enfrentando uma crise climática, uma tragédia no Rio Grande do Sul com milhares de pessoas fora de casa, e não temos conteúdo jornalístico com audiodescrição e janela de Libras

Caroline Andrades
Jornalista e mestre em Comunicação e Indústria Criativa pela Unipampa

Os vídeos traduzidos são publicados na página do Instagram da C&D e divulgados em grupos de WhatsApp da comunidade surda. “A gente sente a falta de comunicação junto com eles e entendemos a necessidade de pessoas que têm condições de fazer esse trabalho”, conta Grasiele Pavan, outra das profissionais envolvidas na iniciativa. A entrevista com Andrei e Francine foi mediada por elas e Aline Cardoso da Silva, mãe do Andrei e da Tainá e intérprete de Libras. 

Aline aponta o fato de que muitos familiares de pessoas surdas não são fluentes em Libras, o que dificulta inclusive a comunicação cotidiana, o que dirá em momentos de desastres, quando existem termos técnicos que precisam ser adaptados para a Língua de Sinais. “Quase todos os momentos da minha vida eu sou intérprete e sou mãe, quase nunca posso fazer só o meu papel como mãe em nenhum lugar”, revela ela, que atua também em uma faculdade local.

O problema da falta de acessibilidade em notícias, porém, não surgiu com as chuvas e enchentes. Segundo a presidente da Sociedade dos Surdos de Caxias do Sul, a luta por inclusão é antiga e atravessa muitos outros dilemas e espaços. “Onde está o intérprete para a maioria dos surdos quando vão acessar os serviços de saúde? Tem a tradução para português, mas é muito diferente”, destaca Francine, que também critica o uso de avatares para tradução, justamente pela falta de contexto e expressões faciais, algo essencial na dinâmica da Língua de Sinais.

Captura de tela colorida de Andrei sinalizando. Ele é um homem branco com cabelo curto e barba preta. Ele usa uma camiseta vermelha e sinaliza com as mãos na frente do corpo, enquanto olha para o lado. Ao fundo, janela e parede de sua casa.
Andrei reclama da falta de acessibilidade em diferentes locais: como hospitais e órgãos públicos – Foto: Reprodução

Existem leis, mas falta fiscalização e vontade

“As pessoas precisavam pensar em como alguém com deficiência sensorial – visual, auditiva, motora e mental – faz para ter acesso a essas informações e se salvar em um momento de catástrofe?”, enfatiza Marco Bonito, professor da Universidade Federal do Pampa (Unipampa) – que há cerca de 13 anos pesquisa sobre acessibilidade comunicativa e a importância de eliminar barreiras, como a falta de Libras e audiodescrição (descrição de imagens e cenas de um vídeo em áudio).

“Estamos enfrentando uma crise climática, uma tragédia no Rio Grande do Sul com milhares de pessoas fora de casa, e não temos conteúdo jornalístico com audiodescrição e janela de Libras”, aponta Caroline Andrades, jornalista e mestre em Comunicação e Indústria Criativa pela Unipampa. Desde 2017, ela pesquisa sobre formas de tornar conteúdos sobre clima acessíveis. Além das pessoas surdas, outras minorias sociais e pessoas com deficiência também sofrem de forma mais intensa os efeitos das enchentes no Rio Grande do Sul, da crise climática e da ausência de acessibilidade em sua cobertura.

Em relação a isso, Marco comenta que momentos de crise evidenciam problemas sociais e, no caso das mudanças climáticas, revelam a desigualdade social. “A gente percebe que essas pessoas (com deficiência) são quem primeiro vão entrar em vulnerabilidade e ter mais dificuldade de sobreviver em meio a essas catástrofes. Então, o jornalismo precisa ser acessível, é algo que não é mais negociável, tem que ser acessível, porque o papel do jornalismo é promover cidadania”, complementa o pesquisador.

Desde 2015 a Lei Brasileira de Inclusão (LBI) estabelece o acesso à comunicação e informação como direitos básicos das pessoas com deficiência. Além disso, desde 2002 existem orientações sobre como tornar conteúdos televisivos, por exemplo. Na prática, são poucos os conteúdos que seguem essas normas. “A legislação existe e não é colocada em prática porque não há fiscalização, e a fiscalização tem que ser feita pelos poderes públicos”, afirma Marco Bonito. Na visão dele, a principal resposta que a sociedade gaúcha pode dar após o desastre atual é passar a escolher políticos que defendem questões ambientais e sociais, como a acessibilidade.

Clima acessível

“É muito triste olhar um alerta meteorológico da defesa civil, estadual e federal, sem nenhuma acessibilidade. É muito triste ver um vídeo do Inmet (Instituto Nacional de Meteorologia) sem nenhuma acessibilidade”, aponta Caroline Andrades. Em sua pesquisa de mestrado, ela produziu vídeos informativos sobre assuntos relacionados a clima com acessibilidade, como conteúdos sobre ciclones extratropicais e os fenômenos El Niño e La Niña. “A narrativa dos boletins da previsão do tempo são extremamente visuais: alerta para essa mancha em amarelo do mapa – quais são as cidades? Na maioria das vezes não há uma descrição dos mapas, o que além de ajudar pessoas cegas, também poderia ter um papel didático”, complementa a pesquisadora. A seguir, um dos vídeos feitos por Caroline sobre os fenômenos La Niña e El Niño com audiodescrição e Libras..

Além dos telejornais e comunicados oficiais, outro problema observado por Caroline é a falta de descrição alternativa em publicações nas redes sociais. “Nem nos alertas da Defesa Civil do RS nas redes sociais há texto alternativo. Isso é muito grave, pois exclui as pessoas cegas de um alerta”, explica. Segundo a jornalista, existem formas relativamente simples de tornar conteúdos e narrativas acessíveis, como a inserção de descrições e legendas, para além da janela de Libras e audiodescrição.

“É necessário contextualizar como o aquecimento do planeta afeta as pessoas, como isso impacta no bolso, na saúde, nos alimentos e, principalmente, não esquecer que as pessoas com deficiência sensorial também têm o direito de consumir esses conteúdos”, afirma Caroline. Na opinião de Francine Predotti, o trabalho das intérpretes voluntárias representa um exemplo de esperança para alcançar justamente uma mudança na consciência dos governos e da sociedade.

Esta reportagem e as entrevistas foram produzidas com a ajuda das intérpretes Jailza dos Santos Martins, Aline Cardoso da Silva, Andrelise Gonçalves Sperb, Grasiele Pavan e Aline da Silva.

Micael Olegário

Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Escreve sobre temas ligados a questões ambientais e sociais, educação e acessibilidade.

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