ODS 1
Cultura sem barreiras: onde estão os artistas com deficiência do Brasil?
Mapeamento Acessa Mais busca identificar trabalhadores da cultura com deficiência e profissionais de acessibilidade
“Vocês, bípedes, me cansam!”. A frase é uma das marcas do artista Eduardo Oliveira – conhecido como Edu O. – que também atua como pesquisador e professor de dança na Universidade Federal da Bahia (UFBA). A provocação da expressão é proposital e está ligada a uma tentativa de “aleijar o mundo”. O objetivo é combater o capacitismo e a lógica normativa da arte feita a partir da exclusão da diversidade de pessoas com deficiência (PcD). “O que a gente propõe é entender como o corpo com deficiências e todas as deficiências contribuem para outros modos de pensar a arte”, explica Edu.
Leia mais: Artistas com deficiência fazem da acessibilidade parte da produção cultural
Apesar de existirem políticas públicas de incentivo à acessibilidade cultural no Brasil, por exemplo, com diretrizes na Lei Aldir Blanc e na Lei Paulo Gustavo, essas ações são voltadas para o consumo, ou seja, para a produção de conteúdos acessíveis pelo público. Por outro lado, a dimensão da produção ainda mantém barreiras (abismos) para pessoas com deficiência, chamados por Edu de “artistas def”.
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Veja o que já enviamosCom o objetivo de elaborar ações para romper essas barreiras de exclusão na produção, o Ministério da Cultura (MinC) e a UFBA lançaram na sexta-feira (13/09) um formulário para cadastro no mapeamento Acessa Mais. A ação procura identificar e conhecer artistas e agentes culturais com deficiência, além de profissionais com e sem deficiência da acessibilidade cultural em todo o território nacional.
O mapeamento conta com três diferentes formulários, elaborados por uma equipe formada por profissionais de múltiplas deficiências, para compreender quem são e onde atuam “artistas def” e trabalhadores da acessibilidade. O cadastro foi pensado de forma a incluir pessoas de diferentes expressões artísticas como: artesanato, artes visuais, audiovisual, circo, cultura popular, dança, literatura, música, performance e teatro.
Edu O. destaca que além dos dados ligados diretamente ao trabalho destes artistas e agentes culturais, a intenção é compreender os diferentes contextos de vida dessas pessoas. Para isso, no momento do cadastro são feitas perguntas sobre renda, saúde, educação e características identitárias.
“Nós (artistas def) estamos em corpos cis e trans, corpos negros, indígenas, brancos, amarelos. Nós estamos em corpos homossexuais, lésbicos, heterossexuais, bissexuais, assexuais, enfim, a deficiência atravessa todos os marcadores”, descreve o professor de dança da UFBA.
Além do lançamento oficial do formulário de cadastro, realizado no Teatro Experimental da Escola de Dança da UFBA, em Salvador, outras ações estão programadas em diferentes cidades brasileiras. Como parte dessas atividades, no último sábado (14/09) ocorreu em Salvador a “Mostra Cine Poética Def, com curadoria da multiartista def Estela Lapponi e exibição de quatro filmes que trazem a acessibilidade como um recurso integrado na criação audiovisual.
O que significa acessibilidade na produção cultural?
A Lei Brasileira de Inclusão (LBI) assegura o direito à cultura, esporte, turismo e lazer para pessoas com deficiência. Nesse sentido, a acessibilidade funciona como uma série de recursos para fazer com que, por exemplo, pessoas cegas e surdas possam ter acesso a obras artísticas e culturais. Iniciativas como o aplicativo Vem CA e a Biblioteca Virtual Mais Diferenças são exemplos de ações ligadas à acessibilidade para o consumo.
O desafio que o Mapeamento Acessa Mais se propõe a encarar está relacionado com a outra ponta, ou seja, retirar as barreiras que dificultam a produção e protagonismo de pessoas com deficiência na arte e cultura. “A acessibilidade é para quem flui da arte, o público, como também para artistas e trabalhadores da arte”, pontua Edu O..
Imagine como uma pessoa usuária de cadeira de rodas pode subir em um palco que possui somente escadas como forma de acesso? Quantas gravadoras de música possuem estúdios acessíveis? O desafio gerado por estas e outras deficiências nos espaços foram sentidos na prática por Amanda Lyra, cantora, consultora, pesquisadora e representante da região sul no mapeamento Acessa Mais.
Em 2021, Amanda recebeu recursos da Lei Aldir Blanc para a produção do audiovisual da música “Sem Reclamar”, protagonizado totalmente por PcDs. “Quando eu cheguei lá no estúdio, tinha uma rampa na entrada. O banheiro, cozinha e os toaletes, toda a área trocar de roupa era escada abaixo”, relata a cantora que é usuária de cadeira de rodas por conta de um diagnóstico de atrofia muscular.
“O que a gente está reivindicando nesse momento é esse reconhecimento mesmo da produção da pessoa com deficiência, porque não adianta fazer um festival todo acessível e não ter a gente como protagonistas”, ressalta Edu O.. O professor e pesquisador lembra que a produção de “artistas def” é, muitas vezes, considerada inferior, o que dificulta a continuidade de muitos trabalhos.
De acordo com Amanda Lyra, para além dos próprios espaços físicos como: teatros, camarins, estúdios e palcos não são acessíveis, as falhas na acessibilidade digital também dificultam aspectos técnicos da produção por artistas com deficiência. “Você quer aprender como fazer você e entra na internet. Com certeza vai ter uma vídeoaula, um tutorial, mas a maioria disso não está acessível. Então as pessoas não têm acesso à educação e ferramentas de trabalhos”, exemplifica a cantora, que também é consultora de acessibilidade.
Leia mais: Como a acessibilidade digital colabora na inclusão de pessoas com deficiência?
Reconhecer a presença de artistas def
A falsa percepção de que existem poucas pessoas que necessitam de acessibilidade e trabalhadores da cultura def são alguns dos fatores que colaboram para o descaso com o tema. “Os próprios espaços para funções técnicas, de iluminação, sonorização, não tem acessibilidade. Mas nós, pessoas com deficiência, ocupamos todos esses espaços”, acrescenta Edu O..
Representante da região norte no mapeamento Acessa Mais, Ananda Guimarães é uma mulher amazônida, pesquisadora e artista def das artes cênicas e da palhaçaria. Na perspectiva apontada por ela, o projeto tem o potencial de transformar a compreensão do trabalho cultural por parte das próprias pessoas com deficiência.
Ananda conta que, em seu território, muitos artistas e agentes defs atuam em festivais e diversos segmentos, mas não se reconhecem como trabalhadores da cultura. Para ela, essa é uma oportunidade de estabelecer novas formas de pensar e fazer arte, com abertura para outros corpos e cosmovisões de mundo. Para essa caminhada, Ananda ainda pontua a importância de se estabelecer “alianças” para fazer o projeto crescer.
“Uma coisa muito bonita da luta das pessoas com deficiência é esse lugar que ela é feita por pessoas com e sem deficiência. É uma equipe muito grande de audiodescritores, de intérpretes, de libras, de pessoas que pensam acessibilidade de outras formas”, afirma a artista. Ao citar o filósofo quilombola Nêgo Bispo, ela destaca que se trata do começo de uma revolução, no entanto, sem ter exatamente um ponto de chegada. Nas palavras do líder quilombola, um “começo, meio e começo”.
A origem do mapeamento Acessa Mais
O lançamento do projeto foi realizado em abril deste ano, durante a programação do I Norte de Arte Acessível: Ciclo de Formação em Acessibilidade Cultural na Educação Básica, realizado em Macapá (AP). Ainda na fase inicial, também foram feitas oficinas de formação em acessibilidade e cultura def.
O planejamento do mapeamento Acessa Mais começou em 2023, quando em uma apresentação junto do artista surdo Elinilson Soares, Edu O. sofreu uma queda devido a falta de acessibilidade do espaço. A partir de então começaram as conversas para criar o projeto em parceria com a Secretaria de Formação Cultural, Livro e Leitura (Sefli) do MinC. Após a coleta dos dados, prevista para seguir até 21 de dezembro, o objetivo do Acessa Mais será analisar as informações para elaborar, melhorar e criar políticas públicas voltadas para a cultura def.
Apesar de ser um movimento que começou a ganhar corpo recentemente, Edu O. ressalta que a presença de PcDs na arte e cultura não é algo novo. Para exemplificar, ele menciona exemplos históricos como Aleijadinho (escultor mineiro que ganhou esse nome após perder alguns de seus dedos devido a uma atrofia) e Anita Malfatti (desenhista que nasceu com uma atrofia no braço e na mão direita).
“A própria acessibilidade, quando a gente pensa, já vem sendo fomentada e realizada há bastante tempo. O que muda talvez sejam os modos de pensar essa produção. É uma acessibilidade agora que está inserida como dramaturgia, como elemento, como mote da própria criação, e não apenas algo externo que vai ser colocado para a pessoa com deficiência, mas está sendo criada com a gente”, ressalta o coordenador do mapeamento Acessa Mais.
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Micael Olegário
Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Escreve sobre temas ligados a questões socioambientais, educação e acessibilidade.