Mães trabalhadoras lutam pelo direito de cuidar dos filhos e por justiça social

Mobilização busca garantir abono para acompanhamento de crianças em consultas médicas e nas escolas

Por Micael Olegário | ODS 10
Publicada em 21 de julho de 2025 - 10:02  -  Atualizada em 21 de julho de 2025 - 10:13
Tempo de leitura: 8 min

Mães trabalhadoras enfrentam desafios para permanecer no mercado de trabalho diante da sobrecarga de tarefas de cuidado (Foto:Canva/Ilustrativa)

Quantas vezes uma criança precisa ir a consultas médicas por ano? Apenas um dia, se for considerado o critério da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) para conceder abono para mães trabalhadoras e pais trabalhadores. Nas demais vezes em que isso ocorre, é preciso acionar uma rede de apoio ou enfrentar o risco de ter o salário descontado e perder o emprego. Quem geralmente acompanha essa criança nesses locais? Assim como acontece com a maioria das tarefas de cuidado na sociedade, essa função recai sobre as mulheres.

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Dados do último Censo Demográfico do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), indicam que 60% das mães estão fora do mercado de trabalho no Brasil. 83%,7 das mulheres entrevistadas no levantamento revelaram já terem sido questionadas mais de uma vez sobre filhos por recrutadores, o que escancara a discriminação nas contratações. Além disso, 94,8% das mães trabalhadoras afirmaram nunca terem sido promovidas durante o período da gravidez ou durante a licença-maternidade.

A desigualdade de gênero explica porquê foi o movimento Mulheres em Luta (MEL) que criou uma mobilização para garantir o abono para trabalhadoras e trabalhadores que necessitem acompanhar filhos, tutelados ou pessoas sob sua responsabilidade em situações de saúde ou escolares. O documento “Enxame: articulação das mulheres políticas para transformar o Brasil”, elaborado pelo movimento, menciona a Política Nacional de Cuidados e enfatiza que o trabalho de cuidado é essencial para a sustentação da vida, por isso são necessárias ações e práticas para proteger a infância e as famílias.

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Não há previsão legal para abonar faltas em casos de internações, tratamentos prolongados ou mesmo para participação em reuniões escolares — momentos fundamentais para o desenvolvimento das novas gerações”, aponta trecho do documento sobre as normas previstas na CLT com relação a abono para acompanhamento de filhos por mães trabalhadoras ou pais trabalhadores. O texto foi divulgado em maio e protocolado em diversas câmaras e assembleias legislativas pelo Brasil.

A mobilização apresenta três propostas base: obrigar as empresas que possuem contrato com a administração pública a ter políticas de abonos de faltas em situações de saúde e escolares; criar um selo específico para empresas que adotem essas práticas; e conceder pontos adicionais para essas organizações em licitações públicas. 

Idealizadora do MEL, Manuela D’Ávila explica que a proposta de mobilização surgiu durante diálogo com representantes do Movimento VAT (Vida Além do Trabalho) – que defende o fim da escala 6×1. “Sabemos que as responsabilidades com cuidado são centrais para que as mulheres saiam do mercado formal. Politizar e debater isso em todas as esferas é importante para que a gente perceba a desigualdade no mundo do trabalho”, destaca Manuela.

Mães trabalhadoras e múltiplas jornadas

Elena*, 45 anos, trabalha na área de radiologia e tem dois filhos, uma menina de 14 anos e um menino de 11 que é uma criança autista. A rotina dela é dividida em três turnos de trabalho: pela manhã em um laboratório de radiologia, pela tarde cuidando das demandas dos filhos e como professora de curso técnico à noite. “Tem sempre que estar correndo para conseguir dar conta de tudo, na parte da saúde e educação que os filhos precisam”, pontua Elena.

Temos uma sociedade estruturada nesse modelo patriarcal em que a tarefa de cuidado é da mãe, em primeiro lugar. Mesmo que isso venha diminuindo ao longo do tempo, ainda é uma tarefa praticamente exclusiva da mulher em muitas famílias

Aline Fagundes
Professora da Unipampa

Pela dinâmica da sua profissão, com uma carga horária limitada em 24 horas semanais, Elena afirma que não sente tanto os impactos da falta de abono, mas observa como essa realidade afeta outras mulheres, principalmente mães atípicas. “Muitas acabam desistindo e saindo do seu trabalho, fazendo alguma coisa de home office ou sendo sustentada por outra pessoa”, descreve a técnica de radiologia. 

No caso de mães trabalhadoras atípicas, a via judicial acaba sendo a alternativa para conseguir uma redução na jornada de trabalho. Esse foi o caso de Rosa*, 49 anos, mãe de uma criança autista de 8 anos e enfermeira concursada, mas que trabalha em regime de CLT. No entanto, a decisão demorou 2 anos. “Meu marido levava nas terapias, mas eram só duas. Agora ele faz cinco terapias e eu levo”, conta Rosa, sobre o acompanhamento do filho. A cada seis meses ela precisa comprovar a presença nas terapias para manter a redução. 

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A dificuldade em conciliar trabalho com cuidado de filhos também afeta mulheres que trabalham como autônomas. Júlia* trabalhou por 12 anos no mercado financeiro até 2014, quando deixou o emprego para abrir sua própria empresa, um ano depois do nascimento de suas duas filhas gêmeas. Nesse período, ela decidiu se mudar da cidade de São Paulo, justamente, pela necessidade de diminuir o ritmo de trabalho.

“São várias agendas, a minha, da cliente, das meninas, são bastante coisas para organizar. É uma coisa que ninguém acaba vendo”, comenta Júlia. Segundo ela, as demandas da maternidade não são reconhecidas por muitas empresas, principalmente, em um contexto pós-pandemia e de retorno das atividades presenciais. 

Foto colorida de crianças sentada com lápis e papel, ao seu lado aparece uma mulher de joelhos e ao fundo outras pessoas
Mães também assumem maioria das tarefas escolares de acompanhamento das crianças (Foto: Divulgação/Prefeitura de Fortaleza)

E os pais?

Os dados do IBGE indicam que 20% das mães entrevistadas não possuem rede de apoio e 60% contam com apenas uma pessoa com quem dividir tarefas de cuidado dos filhos. Em comum, as mães trabalhadoras ouvidas pelo #Colabora mencionaram que possuem redes de apoio e a colaboração de seus maridos nas atividades de cuidado. A exceção é o caso de Elena, que é divorciada. De acordo com ela, o pai dos filhos contribui apenas financeiramente, mas não divide as tarefas, como levar as crianças à escola e outros locais, como terapia e consultas.

“Temos uma sociedade estruturada nesse modelo patriarcal em que a tarefa de cuidado é da mãe, em primeiro lugar. Mesmo que isso venha diminuindo ao longo do tempo, ainda é uma tarefa praticamente exclusiva da mulher em muitas famílias”, pontua Aline Fagundes, professora de Direito na Universidade Federal do Pampa (Unipampa).

Pesquisa feita pelo Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades (Made), da Universidade de São Paulo (USP), mostra ainda que mulheres negras sofrem ainda mais com as tarefas de cuidado. O estudo, feito com dados de 2022, aponta que 11,2 milhões de mulheres ficaram sem trabalhar, porque tinham que cuidar de crianças, de pessoas com deficiência ou realizar afazeres domésticos. Desse total, 6,8 milhões são negras e 4,3 milhões são brancas.

A reportagem do #Colabora questionou o Movimento Mulheres em Luta (MEL) sobre as estratégias para envolver pais trabalhadores no apoio ao projeto, porém, essa pergunta específica não foi respondida. “Dificilmente a gente percebe que o pai deixa a sua atividade profissional para ficar com o filho”, ressalta a professora da Unipampa.

Alternativa via previdência

Em sua tese, Aline Fagundes pesquisou sobre questões que envolvem previdência e proteção às famílias. Ao abordar o abono para mães trabalhadoras e pais trabalhadores, uma das alternativas apontadas por ela é a criação de um benefício de licença parental, vinculado e financiado pelo sistema de previdência social. A pesquisadora explica que, assim, os dias abonados seriam pagos de forma coletiva pela sociedade e não pelo empregador, uma estratégia para evitar demissões de pais e, principalmente, mães trabalhadoras.

Aline pontua que existem diferentes países que possuem instrumentos semelhantes, exemplos disso são Suécia, Canadá e Finlândia. Segundo a professora da Unipampa, a discussão sobre abono para acompanhar filhos precisa considerar as dificuldades que afetam a permanência das mulheres no trabalho. “Se deixar a discussão só no âmbito trabalhista, vai encarecer a contratação de mulheres para os empregadores, dificultando a escolha por mulheres”, complementa.

Levar a discussão para o âmbito da previdência envolve dividir a responsabilidade com a maior parte da sociedade, inclusive, considerando a diminuição no número de nascimentos e, consequentemente, de futuras pessoas para contribuir com esse sistema previdenciário. Para Aline, isso representa relembrar o papel do Estado como responsável por garantir direitos sociais para a população, porque não restringe a discussão entre empregadores e empregados.

“As pessoas percebem muito a questão trabalhista, porque influencia em trabalhar seis ou cinco dias, mas a gente não para tanto para discutir também essa pauta previdenciária. Mesmo que hoje não atinja tanto como a escala 6×1, porque o direito previdenciário praticamente nos alcança no momento da aposentadoria. Então, é importante dialogar tanto no âmbito trabalhista quanto no previdenciário”, enfatiza Aline Fagundes.

*Os nomes das mães trabalhadoras que concederam entrevista foram alterados para preservar as suas identidades.

Micael Olegário

Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Escreve sobre temas ligados a questões socioambientais, educação e acessibilidade.

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