ODS 1
Estudo identifica 150 iniciativas culturais na Rocinha
Mapeamento foi produzido por moradores da comunidade e busca gerar visibilidade para as organizações locais
Criado há quase 30 anos, o Pré-vestibular Comunitário da Rocinha (PVCR) é um dos projetos educacionais mais antigos da favela da Zona Sul do Rio de Janeiro. Sua missão é apoiar o ingresso de moradores de favelas no ensino superior. Todo o trabalho, da administração às aulas, é realizado por voluntários e mantido apenas por meio de doações. O PVCR é uma das 150 iniciativas identificadas no Mapa Cultural da Rocinha, um levantamento feito pelo Jornal Fala Roça. A categoria Educação, na qual o Pré-vestibular foi cadastrado, é a mais popular do mapeamento, com pouco mais de 40 projetos.
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A localização de todas as 150 iniciativas foi marcada em um mapa digital, disponível na internet, que traz o endereço, nome e uma breve descrição. Para sistematizar os registros, foram criadas 25 categorias. Com isso, é possível realizar buscas por filtros específicos e identificar em qual parte da Rocinha há oferta de dança, esporte, música ou teatro, por exemplo. O mapeamento levou quase um ano para ser concluído e todas as etapas foram realizadas por moradores de favela.
Lançado no começo deste ano, o Mapa Cultural da Rocinha está em sua segunda edição. A primeira, realizada entre 2015 e 2016, foi conduzida por uma única pessoa, o jornalista Michel Silva, cofundador do Fala Roça. “Todo mundo se pergunta como ele fez isso. Por duas semanas ele percorreu a favela sozinho, mapeando de porta em porta”, explica Osvaldo Lopes, jornalista do Fala Roça. Nascido e criado na Rocinha, ele passou a integrar a equipe do jornal no começo de 2021 e fez parte do grupo dedicado à construção do Mapa Cultural.
Na primeira edição, cerca de 100 projetos foram identificados. O levantamento ocorreu no período pré-olímpico, quando o Rio se preparava para receber os jogos e muitos turistas oriundos de outros estados e, principalmente, do exterior. Uma das estratégias políticas para incentivar o turismo, na época, foi solicitar ao Google a remoção do termo “Favela” de seus mapas. Assim, algumas comunidades passaram a ser identificadas como “Morros”, enquanto outras foram completamente apagadas, dando lugar a espaços vazios. “Quando você remove esses termos, você invisibiliza esses territórios”, ressalta Osvaldo. Além do impacto simbólico, isso também gera prejuízos práticos no cotidiano dos moradores, seja no acesso a serviços por aplicativos, seja na visibilidade de seus negócios.
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Veja o que já enviamosAinda hoje, predomina a imprecisão e a falta de informações sobre ruas, pontos de referência, instituições e estabelecimentos comerciais localizados em favelas. A possibilidade de colocar a Rocinha no mapa, mostrando em cores e contornos o que a favela é capaz de produzir, motiva a construção do Mapa Cultural. “Quando a gente se coloca no mapa, a gente se coloca em evidência. Sinalizamos que estamos aqui e que também sabemos produzir conhecimento”, avalia Fernando Gomes, responsável pelo geoprocessamento dos dados coletados.
Ex-aluno do Pré-vestibular Comunitário da Rocinha, Fernando está terminando a graduação em geografia e, hoje, é professor voluntário no projeto social em que estudou. Na visão dele, o levantamento é importante por colocar as favelas, especialmente a Rocinha, no cenário cultural da cidade. Espacializar, identificar e quantificar essas iniciativas “mostra a potência das favelas e das pessoas faveladas na produção de cultura”.
Os dados podem também ajudar a trazer serviços e investimentos. Segundo Osvaldo, o Fala Roça recebe, com frequência, perguntas sobre a existência de atividades e projetos no local. “Algumas perguntas são de moradores da própria Rocinha, mas, às vezes, quem procura são pessoas interessadas em fazer parcerias, em contribuir com esses projetos de alguma forma”, conta. Ter os dados sobre os projetos culturais da Rocinha disponibilizados virtualmente gera visibilidade e facilita a busca por investimentos e por assistência aos produtores culturais do território.
O levantamento ganha ainda mais importância diante do tamanho da Rocinha, considerada a maior favela do país. Os dados do último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que cerca de 70 mil pessoas viviam no território quando a pesquisa foi realizada, em 2010. Sem os números do novo Censo, as estimativas locais indicam que hoje há cerca de 150 mil moradores – número projetado a partir das associações de moradores e das unidades de saúde. Mesmo para quem nasceu e cresceu na Rocinha, é quase impossível conhecer toda a favela.
Integrante do trio que realizou a coleta das informações em campo, Adrielly Ramos diz ter visitado lugares da comunidade, pela primeira vez, por conta do mapeamento. “Eu queria muito participar para conhecer mais sobre a Rocinha e saber mais sobre as atividades que acontecem aqui”, explica. Moradora da parte mais alta, ela conta ter se surpreendido ao perceber a quantidade e variedade de atividades oferecidas. Muitas, realizadas gratuitamente. Segundo Adrielly, a oferta de cursos de idiomas, de forma gratuita, foi uma das coisas que mais chamou sua atenção.
A categoria Educação não estava prevista. Ela foi incluída depois das primeiras visitas, a pedido dos representantes das iniciativas mapeadas. Isso porque a pandemia impactou, de muitas formas, o funcionamento dos projetos sociais. No momento mais intenso da doença, quando as escolas foram fechadas, a necessidade de apoiar a escolarização de crianças e adolescentes se mostrou urgente. Por isso, organizações de várias áreas passaram a trabalhar com reforço escolar.
Essa capacidade de responder, rapidamente, às necessidades do território é o que mais chamou a atenção de Leony Vidal, que atuou junto com Adrielly na fase de campo do levantamento. “A gente via projeto que trabalhava com futebol, mas começou a dar aula de reforço porque as crianças não puderam mais ir à escola. Vimos projeto de capoeira que começou a dar cesta básica, porque as famílias dos alunos perderam a renda. Esse grande poder de articulação, de fazer acontecer é gigante. Isso é o que eu levo depois do mapeamento”, resume.
Leony é produtor cultural e atleta de esporte radical. Desde criança, ele participa de projetos culturais na Rocinha e, hoje, tem no trabalho a combinação das duas paixões. Ele atua em projetos sociais que incentivam e ensinam a prática de esportes como skate, bicicleta e patins, dentro da favela. Atual coordenador da ONG SBR, que existe há 24 anos, Leony também é o idealizador do Movimento Patina Rocinha, que visa arrecadar materiais de patinação para crianças e jovens da comunidade. Ambas as iniciativas, centradas na prática de esportes radicais, foram registradas no Mapa Cultural. A categoria de Esporte é a terceira mais popular no levantamento, atrás apenas de Educação (43) e Centros Comunitários (27). Foram identificadas 23 iniciativas esportivas na Rocinha.
A presença de tantos projetos esportivos chama atenção por conta da geografia do território. A Rocinha é uma favela vertical, com um número muito pequeno de espaços públicos viáveis para a prática esportiva. Apesar disso, a cena de esportes existe e é forte na comunidade, com oferta de várias modalidades, inclusive com times femininos de futebol. As poucas praças e quadras que existem costumam ser compartilhadas por vários projetos e projetos de áreas distintas. Já os atletas de bike, skate e patins compartilham uma mini rampa localizada na Curva do S. Construída na década de 1980, é a única da comunidade. “Esse espaço possibilitou a prática de esporte radical na Rocinha, eu mesmo comecei a andar de patins ali”, lembra Leony.
Assim como os dados, a experiência vivenciada no período de coleta das informações em campo produz informações relevantes. Daí surgiu o apontamento que a maior parte dos projetos sociais mapeados são geridos por mulheres, ainda que estas não figurem como as representantes formais. Quando os pesquisadores pediam para falar com o representante da iniciativa, muitas vezes eram direcionados a conversar com homens. Ainda nas primeiras questões do formulário, eles indicavam a esposa, a mãe, a psicóloga, a professora… Uma mulher para responder. “Quando a gente perguntava sobre funcionamento, que ano foi fundado, quantas crianças atende, eles falavam, ‘isso aí, pergunta para a minha mulher’. No dia a dia, na prática, são elas quem tomam conta”, explica Osvaldo.
As informações disponibilizadas no mapa são apenas uma parte dos dados que foram levantados. O formulário aplicado trazia outras questões, como responsável legal, tempo de funcionamento e financiamento. Na visão de Fernando, que trabalhou no processamento dos dados, ainda há muitos caminhos de análise a partir das informações levantadas. Ele indica que fatores como tempo, equipe e recurso são decisivos para conseguir realizar e ampliar esse tipo de estudo. “O nosso formulário não podia ser extenso, porque eram apenas três pessoas em campo e tínhamos pouco tempo. A gente sabia que teríamos algumas respostas, não todas as que gostaríamos. Mas com o que foi levantado, é possível extrair várias coisas”, avalia.
A existência de uma edição anterior do mapa abre, ainda, caminhos para estudos comparativos. Entre 2016 e 2022, vários projetos sociais fecharam. Ainda não houve tempo para entender a fundo quais foram os motivos, mas é comum ouvirem de pessoas conhecidas, que tiveram seus projetos mapeados na primeira edição do mapa, que os impactos econômicos da pandemia foram decisivos. “A pessoa trabalhava e aos finais de semana tocava seu projeto. Tirava o dinheiro do próprio bolso para pagar um lanche, arcar com os custos e continuar existindo. No momento em que é mandado embora, acabou o projeto. Também é muito comum pessoas que mantinham o trabalho só com doações e como elas reduziram muito, ficou inviável continuar”, explica Osvaldo.
Publicado em janeiro deste ano, o Mapa Cultural da Rocinha é, na visão da equipe ouvida nesta reportagem, um projeto em permanente construção. Além dos possíveis caminhos de análise a partir das informações levantadas, ainda é possível cadastrar novas iniciativas. Para isso, basta preencher um formulário disponível no site e, após avaliação da equipe, o projeto será incluído no mapeamento.
Uma metodologia replicável
O Mapa Cultural da Rocinha levou um ano para ser produzido. O pontapé inicial foi em 2021, quando o estudo foi inscrito e selecionado pelo edital de Fomento à Cultura Carioca (Foca), promovido pela Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro. Com a publicação do resultado em dezembro, o Fala Roça iniciou as atividades no começo de 2022. Era necessário planejar o deslocamento dos pesquisadores, definir quais informações seriam prioritárias e como tudo isso seria sistematizado e disponibilizado.
A metodologia desenvolvida está disponível no site, porque a intenção é incentivar e colaborar para que outras comunidades possam desenvolver estudos semelhantes. Osvaldo conta que desde a publicação dos primeiros resultados, organizações de outros lugares já entraram em contato. A intenção do Fala Roça é compartilhar as experiências adquiridas no processo. Um ponto importante da metodologia é o diálogo com os moradores da Rocinha durante todo o processo, culminando no lançamento do Mapa Cultural na Biblioteca Parque, localizada dentro da comunidade.
Para o trabalho de levantamento das informações em campo, três pessoas foram contratadas. Além de Adrielly e Leony, a equipe era formada também por Jéssica Fernandes, que conhecia bastante o território por conta de uma experiência anterior como agente de saúde. Cada um deles, ficou responsável por uma área, dividindo a favela em setores: a parte mais alta, o meio e a parte baixa. Antes de iniciar o levantamento, o trio de recenseadores e as demais pessoas envolvidas na construção do mapa participaram de três treinamentos: um direcionado ao debate sobre o que é cultura, outro voltado a estratégias de circulação no território e o último focado nas ferramentas e tecnologias que seriam utilizadas.
“A gente precisava pensar tecnologias que as pessoas que estavam em campo conseguiriam usar com facilidade”, explica Fernando. Além de familiaridade, era importante ter, também, qualidade técnica, precisão e ser financeiramente acessível. A solução desenhada foi utilizar os mapas do Google, na versão offline. Desse modo, os recenseadores conseguiriam extrair os indicadores de latitude e longitude – e localizar os projetos no mapa –, mesmo sem acesso à internet. Também usavam formulários digitais, armazenando, simultaneamente, os dados colhidos em campo. Isso não excluía a necessidade de ter formulários em papel, como Fernando explica: “era importante ter a opção, porque em alguns locais ficar com o celular o tempo inteiro na mão poderia ser uma questão delicada”. Depois, todo material era digitalizado e reunido em um único arquivo.
Para chegar até os projetos mapeados, houve muita articulação e circulação pelo território. A primeira edição do Mapa Cultural foi ponto de partida, mas muitos dos projetos mapeados já não existiam, enquanto outras iniciativas são recentes e não constavam no mapa anterior. Por isso, o conhecimento da equipe do Fala Roça e dos recenseadores foi muito importante, porque permitiu uma primeira indicação a partir do que eles próprios conheciam. Adrielly conta que os projetos mapeados também indicavam outros. “Alguns moradores ficavam curiosos com a pesquisa e perguntávamos se eles conheciam alguma iniciativa no entorno também. Alguns indicavam novos projetos”, explica. Assim, entre fevereiro e maio, foram cadastrados 150 projetos.
Cada uma das iniciativas do mapa recebeu materiais visuais com QR Codes. Os códigos levam ao site do Mapa Cultural da Rocinha, onde o visitante poderá localizar e saber mais sobre aquela iniciativa e, também, conhecer outras. A ideia é que um dos materiais possa ficar visível na fachada dos projetos e outro possa ser distribuído em cartões portais. “A Rocinha é uma favela muito turística e, às vezes, o visitante passa na porta e nem sabe o funciona atrás dela”, aponta Osvaldo. Segundo o jornalista, isso se torna ainda mais relevante porque muitas iniciativas não possuem site, nem perfil nas mídias sociais.
“Com o mapeamento a gente quebra essa barreira da visibilidade. A gente buscou muito passar isso para as pessoas. ‘O Fala Roça vai levantar as informações, deixar lá disponível e as pessoas que quiserem ajudar vão poder entrar em contato com você’. A grande barreira desses projetos é grana, então a visibilidade ajuda muito”, destaca Leony Vidal.
Osvaldo, jornalista do Fala Roça, diz enxergar na visibilidade e na produção de dados sobre o cenário cultural as principais contribuições desse tipo de estudo: “O mapa é muito sobre mostrar essas iniciativas, dizer onde elas estão, quantas existem. Vocês querem investir? Tem o Mapa Cultural da Rocinha, acessem e vocês conseguem encontrar e apoiar os projetos. É possível falar com o poder público ou com a iniciativa privada: olha quantos fazedores de cultura vocês podem capacitar”, avalia.
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Jaqueline Suarez é carioca, nascida e criada no Fallet, favela na zona central da cidade. É jornalista e comunicadora popular, com mestrado na área de comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Passou pela redação da Record e foi editora do RioOnWatch. Atualmente trabalha na intersecção entre comunicação e educação, integrando a equipe da Fundação Roberto Marinho.