Após perder filho trans para depressão, Ivoni luta pelos direitos da população LGBTQIA+

Ivoni com a bandeira trans e o documento de retificação de registro civil de Demétrio: dedicação ao acolhimento da população LGNTQIA+ após a morte do filho (Foto: DPRJ)

Quilombola abraça e acolhe a comunidade no Coletivo Demétrio Campos, criado para enfrentar a transfobia e a homofobia e ajudar na qualificação das pessoas

Por Ana Carolina Ferreira | ODS 10 • Publicada em 28 de junho de 2024 - 09:44 • Atualizada em 28 de junho de 2024 - 17:22

Ivoni com a bandeira trans e o documento de retificação de registro civil de Demétrio: dedicação ao acolhimento da população LGNTQIA+ após a morte do filho (Foto: DPRJ)

Demétrio Campos era um jovem de 23 anos, homem trans quilombola que atuava como dançarino e modelo. Sua vida foi marcada pela luta contra o racismo e a transfobia, temas que levantava em suas redes sociais ao contar sobre suas vivências enquanto homem transgênero preto e periférico. Em vídeo, ele se questionava sobre as expectativas impostas pela sociedade quanto à identidade masculina: “Muitos me questionam se sou um homem de verdade. Chego a conclusões de que homem de verdade não chora, é manipulador, mente, não demonstra sentimentos, quer sempre estar no topo, tem que ter independência cedo. Eu não quero ser esse homem de verdade”. 

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O vídeo foi gravado no dia 2 de maio de 2020. Após 15 dias, quando o mundo celebrava o Dia Internacional Contra a LGBTfobia, Demétrio tirou sua própria vida. Ou, segundo sua mãe, “foi suicidado, pela sociedade, pelo desprezo e outros fatores que as pessoas LGBT sabem. Ele escolheu essa data porque queria que as pessoas vissem o mundo de maneira diferente. Eu não sei como estou tirando forças para estar aqui falando com vocês, mas eu tenho certeza que é por uma causa nobre”. Esta fala é de um trecho de outro vídeo gravado pela mãe e publicado em rede social de Demétrio, no dia 20 de maio do mesmo ano, quando ele completaria 24 anos. 

Eu faço isso porque amo e porque prometi ao meu filho que continuaria sua militância

Ivoni Campos
Analista de sistema e coordenadora do Coletivo Demétrio Campos

À esta publicação, sucederam-se várias outras que pretendem manter a memória de Demétrio viva. Quem realiza as postagens no perfil em homenagem póstuma é sua mãe, Ivoni Campos, 46 anos, analista de sistemas, atualmente desempregada, e fiscal voluntária no Quilombo Maria Romana. Ela perdeu seu filho para a depressão e, desde então. se tornou palestrante e ativista contra o preconceito e a discriminação, aliada às causas LGBTQIA+. “Quando meu filho faleceu, prometi que sempre levaria seu nome e nunca o deixaria morrer”, conta a quilombola.

Nesse quatro anos, algumas conquistas refletem sua luta: Demétrio foi o primeiro homem trans do Brasil a ter retificação de registro civil após a morte; seu nome é referenciado num ambulatório de atenção à saúde da população travesti e transexual em Cabo Frio; além de batizar cursinho popular pré-universitário em São Paulo voltado para a população trans, travesti e não-binária; e o coletivo de acolhimento para comunidade LGBTQIA+, criado e coordenado por Ivoni. 

Demétrio Campos no carnaval do Rio: depressão e suicídio após vida marcada pela luta contra o racismo e a transfobia (Foto: Coletivo Demétrio Campos / Instagram)
Demétrio Campos no carnaval do Rio: depressão e suicídio após vida marcada pela luta contra o racismo e a transfobia (Foto: Coletivo Demétrio Campos / Instagram)

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Ivoni, após a trágica perda do filho, encontrou forças para transformar sua dor em ação – assim nasceu o Coletivo Demétrio Campos, em fevereiro deste ano. Ela explica que a ideia surgiu da necessidade de fornecer um espaço seguro para a comunidade LGBTQIA+ de Tamoios, 2º Distrito de Cabo Frio, onde Demétrio nasceu. Segundo Ivoni, o local é marcado pelo conservadorismo e pela falta de visibilidade para essa população. “A maioria dos moradores daqui são pessoas de direita, um lugar muito transfóbico e homofóbico”.

Outro agravante para o desenvolvimento da população no local é a escassez de oportunidades de trabalho e estudo, afirma Ivoni. Nesse sentido, o maior desafio do coletivo é ter renda para subsidiar cestas básicas para doação e recursos para possibilitar a capacitação dos integrantes, um grupo de 30 pessoas. “Falo sempre para eles que a minha intenção é proporcionar as condições possíveis para que eles possam andar com as suas próprias pernas, chegar ao ponto de conseguirem se manter sozinhos”, explica a coordenadora do projeto.

O coletivo se organiza principalmente online, mas realiza encontros presenciais, distribui cestas básicas para pessoas em necessidade, e encaminha membros para casas de acolhimento quando necessário. Além disso, promovem eventos culturais, oficinas de crochê, e outras atividades para gerar renda. “Fazemos sabão para vender, e estamos sempre procurando novas maneiras de evoluir, apesar das dificuldades”, diz a quilombola.

Para além da luta pela independência da comunidade, Ivoni também proporciona afeto. Ela teve Demétrio e outros dois filhos, Letícia e Lucas – hoje com 24 e 15 anos, respectivamente – mas, para além do sangue, abraça aqueles que veem nela uma figura de acolhimento, respeito e carinho. Ela conta que, após ganhar visibilidade na militância e em palestras, recebe muitos pedidos de ajuda e conselho da população LGBTQIA+. “Muitos são colocados para fora de casa, obrigados a se prostituir para sobreviver. Ano passado, acolhi um menino de Rio das Ostras que foi expulso pela família, que era Testemunha de Jeová. Ele estava dormindo numa marquise de fast-food. Entrou em contato comigo pedindo ajuda e consegui encaminhar ele para o Serviço Social de Rio das Ostras; hoje mora na cidade do Rio e trabalha”.

Em outras situações graves, Ivoni conseguiu dialogar para que jovens que a ligaram não atentassem contra a própria vida. “Uma menina do Maranhão me ligou muito emotiva, já tinha tentado suicídio uma vez. Fiquei quase três horas com ela na chamada de vídeo conversando. Ela chorava muito, dizia que me ligou para se despedir. Consegui tranquilizá-la conversando; não sabia como lidar, mas a única ferramenta que eu tinha naquele momento era o diálogo. Hoje ela está bem, realizando acompanhamento psicológico”, conta Ivoni sobre situações de jovens LGBTQIA+, que a levam de volta para o período em que seu filho lutava contra a depressão.

Última foto de Ivoni com Demétrio em 2020: quilombola fez promessa de assumir luta do filho (Foto: Arquivo Pessoal)
Última foto de Ivoni com Demétrio em 2020: quilombola fez promessa de assumir luta do filho (Foto: Arquivo Pessoal)

“Vejo a beleza do meu filho em outras pessoas”

Durante seis anos, Ivoni acompanhou a vivência de Demétrio com a saúde mental debilitada. Para ela, cada minuto de diálogo conta. “Consegui salvar meu filho de três tentativas de suicídio, mas, na quarta tentativa, perdi ele por causa de 30 minutos”. O jovem passava por um momento delicado; foi para São Paulo em 2017 para seguir carreira como modelo, mas não conseguia trabalho. Na pandemia da Covid-19, a situação ficou insustentável; então voltou para casa, para o colo de sua mãe, contrariando o ideal de “homem de verdade”, descrito no vídeo publicado antes de sua morte. 

Demétrio não foi o único: o período de pandemia exacerbou a vulnerabilidade da população LGBTQIA+, aponta um estudo produzido pelo coletivo #VoteLGBT. Com mais de 10 mil respostas de todas as regiões do Brasil, o estudo revela que a piora na saúde mental foi apontada por 42,72% dos entrevistados como o principal efeito da pandemia. Mais da metade (54%), declarou necessitar suporte psicológico. 17,62% citaram as dificuldades econômicas como os maiores impactos, por falta de trabalho ou dinheiro.

Demétrio vivia um contexto semelhante e chegou a escrever uma carta relatando seu cotidiano: “São Paulo. Estou tentando ao máximo me manter aqui e bem, pelo menos enquanto a minha mãe estiver viva. Hoje eu só queria deitar no colo de alguém, ganhar um carinho e fingir que está tudo bem. No meio de todos naquela sala de aguardo para casting — processo de seleção para modelos — me sinto um estranho. Estou cansado de reclamar, de ter que me esforçar trinta vezes mais todos os dias para ver se eu consigo conquistar o básico: um teto para morar e comida todos os dias. Meus pais não têm condições de me mandar dinheiro, juntei o que tinha para tentar construir alguma coisa e, como sempre, nada que eu quero dá certo”. O trecho da carta foi publicado por Ivoni na rede social de Demétrio, para que as pessoas entendam a dificuldade da vivência do jovem, “num país onde os direitos não são respeitados e não existe igualdade”. 

Ivoni Campos transformou a tragédia pessoal em uma missão de vida. Ela não só luta pelos direitos da comunidade LGBTQIA+ em Cabo Frio, mas também serve como um exemplo de resistência e amor. “Eu faço isso porque amo e porque prometi ao meu filho que continuaria sua militância”, conta. Ivoni espera que, com mais apoio e recursos, possa continuar a expandir o alcance do Coletivo Demétrio Campos e criar um futuro melhor para todos que enfrentam preconceito e discriminação. “Quando eu vejo um sorriso largo e uma gengiva roxa, sempre lembro do meu filho; é como ver a beleza dele em outra pessoa; essa tem sido a minha cura. Hoje eu compreendo a morte como vida”.

Procure ajuda

O Centro de Valorização da Vida (CVV) é uma organização que oferece apoio emocional e trabalha na prevenção do suicídio, sob total sigilo e anonimato. Se sentir necessidade de conversar com alguém, entre em contato com o CVV e fale com um de seus voluntários. O serviço está disponível 24 horas por dia, gratuitamente, e pode ser acessado através do chat online, e-mail, ou pelo telefone 188. A organização também oferece atendimento em unidades físicas espalhadas pelo Brasil. 

Ana Carolina Ferreira

Estudante de jornalismo na Universidade Federal Fluminense (UFF). Gonçalense, ou papa-goiaba, apaixonada pelas possibilidades de se contar histórias na área da comunicação. Foi estagiária na Assessoria de Comunicação do Ministério Público Federal e da UFF. Amante da sétima arte e crítica amadora do universo geek.

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