ODS 1
Adoção tardia: quando um é pouco, dois é bom e quatro é perfeito

Cabeleireiro adota quatro irmãos - entre 4 e 11 anos - e mostra que não são apenas crianças pequenas que precisam de uma família

Quando era criança, o cabeleireiro Alexandre Caetano Rank tinha um sonho nada comum para um garoto de sua idade: adotar uma criança quando fosse adulto. Sim, era uma criança querendo adotar uma criança. E esse paulista de Campinas, morando há dezoito anos em Salvador, conseguiu realizar seu sonho de infância, e bem mais do que esperava. Alexandre adotou quatro meninos, de quatro a onze anos, todos irmãos. A chamada adoção tardia, quando a criança tem mais de quatro anos, deixou espantada muita gente ao redor de Alexandre, ainda mais por se tratar de quatro meninos, todos de uma só vez.
“Adotar não é um ato de ajuda, não é um ato de caridade, não é um ato de compaixão: é um ato de amor”, e com essa visão sobre adoção, Alexandre explica o gesto corajoso e a atitude ousada de adotar quatro meninos ao mesmo tempo. “Adoção é família, adoção é cumplicidade. Então, para mim é uma família comum, como qualquer outra, porque laços sanguíneos não querem dizer nada. Eu conheço várias famílias que são biológicas, mas não têm amor, afeto, cumplicidade, amizade, companheirismo”.
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A psicóloga de adolescentes Soraya Pereira confirma que há ainda muitos preconceitos em relação à adoção. “As pessoas veem adoção como uma caridade, ajudar alguém, ou mesmo pagar uma promessa. E adoção não é isso, adoção é realmente uma filiação, só que é uma filiação que vem pelo caminho da adoção”, explica Soraya, integrante do Grupo Aconchego, um programa exitoso no Distrito Federal que trabalha com vários aspectos da adoção, inclusive na preparação de quem se candidata a adotar. . Uma criança mais velha, com personalidade formada, não dá mais trabalho. Ela tem é mais dores, a cicatriz dela é mais profunda, ela tem mais gatilhos, tem mais chaves para virar. Às vezes, no dia a dia, acontece alguma coisa que vira chaves de algumas dores, o que exige afeto, carinho e dedicação
Sem demostrar mágoa dos pais, Alexandre conta que não teve muito carinho e respeito deles porque é homossexual. “Então eu queria muito ter um filho pela via da adoção e ter esse amor, esse vínculo verdadeiro com ele, mesmo sem ter o sangue”, explica. Antes de escolher a adoção tardia, Alexandre achava que só teria vínculo e afinidade com crianças muito pequenas. “Era um pensamento muito estreito e fechado”, ele confessa. “Eu achava que uma criança pequena iria se vincular muito mais do que uma criança grande, pelo fato de a criança grande já ter discernimento e entendimento. Mas isso é mito”, Alexandre resume. Na vara da infância, a assistente social abriu sua cabeça, alertando-o de que ele ficaria anos na fila de adoção de zero a três anos, pois a procura por crianças pequenas é muito grande. “Ela me perguntou se eu queria ser pai ou se eu queria ficar na fila. E me fez ver que a adoção tardia é um ato de muito amor”, recorda Alexandre.
Quando se tornou pai de quatro meninos adotivos, o mais novo tinha quatro anos e o mais velho, doze. “Hoje eu tenho uma afinidade imensa com o mais velho. Criamos um laço muito forte de família”, conta Alexandre, deixando claro que criança mais velha quando é adotada cria perfeitamente vínculos com a nova família. “Uma criança mais velha, com personalidade formada, não dá mais trabalho. Ela tem é mais dores, a cicatriz dela é mais profunda, ela tem mais gatilhos, tem mais chaves para virar. Às vezes, no dia a dia, acontece alguma coisa que vira chaves de algumas dores, o que exige afeto, carinho e dedicação”, explica Alexandre, já com base na própria experiência.
“Algumas pessoas acham que um bebê é mais fácil porque se pode ‘moldar’ e a criança maior ou o adolescente já está com a personalidade formada. Mas isso não é verdade. Ambos estão em desenvolvimento. Ambos têm uma história anterior à adoção e deve ser respeitada”, esclarece a também psicóloga de adolescentes, Maria das Penha Oliveira, companheira da colega Soraya no Projeto Aconchego. Penha adverte que “Nenhuma criança chega “zerada” para os novos pais. Claro que a criança maior e o adolescente, como sujeitos em processo de autonomia, já fazem uso da linguagem verbal ou corporal para comunicar as suas experiências. E continuar a se desenvolver bem vai depender muito da maturidade emocional dos pais para traduzir essas experiências”, complementa.
Os quatro meninos foram achados por Alexandre em um site chamado Busca Ativa que trabalha com busca para adoção de crianças negras, grupos de irmãos e crianças com deficiência. Os dois primeiros grupos são exatamente os dos filhos de Alexandre. Na página não havia foto das crianças. “Uma amiga me perguntou se eu era maluco de adotar uma criança de quem eu não estava vendo o rosto. Eu perguntei a ela: você quando ficou grávida viu o rosto do teu filho?”, ele conta, divertido.
Como você pode dar o que você nunca teve? Eu sabia que eu iria enfrentar uma certa resistência no início. Eles nunca tiveram pai nem mãe, então não há como doar uma coisa (amor) que você nunca recebeu
Em princípio, Alexandre só iria adotar João Carlos, o mais novo. Mas o que mudou? “Eu fiquei pensando: Poxa, eu sou filho único, meus pais morreram e eu fiquei só no mundo. Então eu vou adotar dois, porque eles sendo irmãos, quando eu morrer eles não vão ficar sozinhos”. Dessa forma decidiu adotar João Carlos e Aílton, os dois mais novos. Só que em sua casa, e principalmente em seu coração, cabia mais gente. Ele conheceu os outros, Jaílton e João Paulo, e começou a se apegar. “Então dei entrada no processo de guarda conjugada com adoção e hoje nós somos uma família feliz e unida”, garante. Um dos meninos, Jaílton, não acreditava que ele e os irmãos ficariam juntos. “Não, eu não imaginava isso, porque lá no Construindo (abrigo) eu imaginava que eu ia ser adotado sozinho porque ninguém queria quatro pessoas ou queria muitos irmãos, aí eu não achava que eu ia ser adotado”.
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Veja o que já enviamosA psicóloga Soraya Pereira faz um alerta a quem quer adotar irmãos. Segundo ela, a realidade nesse tipo de adoção é bem peculiar. “O grupo de irmãos normalmente se junta, eles já se conhecem, e normalmente (entre eles) um irmão combina mais com um do que com outro, e então você lida com várias situações. No mesmo momento, com várias exigências, várias necessidades no mesmo momento, porque uma criança de seis anos ela tem uma necessidade diferente de uma criança de quatro anos, de dois anos.”
Para o caso particular de Alexandre, a adoção tardia – e de quatro meninos – é um desafio ainda maior: os pais dele morreram e há quatro anos ele ficou viúvo, sozinho no mundo. “Eu não tenho uma família que me dê apoio para criar quatro filhos. Isso nunca me passou pela cabeça (adotar quatro). Mas conforme eu fui conhecendo eles e o amor foi nascendo no meu coração, eu me apaixonei pelos meninos, pelo jeito humilde deles, carente”, conta. O cabeleireiro lembra que um dos meninos, Aílton, era bem arredio, não aceitava beijo, abraço nem carinho. Alexandre compreendeu logo o comportamento do menino. “Como você pode dar o que você nunca teve? Eu sabia que eu iria enfrentar uma certa resistência no início. Eles nunca tiveram pai nem mãe, então não há como doar uma coisa (amor) que você nunca recebeu”.
Uma vez, Aílton brigou com outro menino ainda no abrigo. Alexandre o abraçou e o garoto pediu, chorando, que o largasse. Alexandre insistiu, disse que não o largaria e que iria ser o pai dele, dar amor e carinho. “Naquele momento eu tive a certeza de que eu era o pai daquelas crianças e que eles precisavam de pai tanto quanto eu precisava de filhos”. Respondendo ao pai perguntas encaminhadas pelo Colabora, Aílton confirma que sentiu o mesmo em relação a Alexandre: “Ali eu senti que o senhor era meu pai de verdade”.

Desafios e expectativas
Mas e as dificuldades? Se existem na adoção de uma criança apenas, imagine na de quatro, e ao mesmo tempo. Mas o pai de adoção tardia garante que jamais pensou em desistir. “Eu não pensei em nenhum momento que seria difícil, não pensei que seria uma loucura, que seria caro, que eu teria um gasto muito alto, que eu teria uma responsabilidade muito grande. Eu só pensava que eu teria que dar uma lar e uma família para essas crianças”, assegura. Alexandre conta que a advogada perguntou, espantada, se ele tinha certeza de que queria adotar os quatro. “Eu disse: doutora, se não forem os quatro, eu não quero nenhum. Eles são muito unidos, não brigam e se dão muito bem. Então, a melhor coisa que eu fiz na minha vida foi não separar os quatro”, assegura.
Soraya lembra que é muito dolorido para crianças adotadas se separarem dos irmãos. “Porque é o referencial que aquela criança tem, quando ela foi para uma instituição, quando ela foi acolhida, abrigada ela estava com o irmão. Então quando você separa um irmão que tem uma vinculação, é um luto, é uma perda, é muito doído. O que a gente (quem trabalha com adoção) fala é que se houver uma separação, que pelo menos essas famílias possam se encontrar, possam liberar essa continuidade da relação da afetividade entre irmãos. A gente tem muita vivência disso aqui no Aconchego, aqui em Brasília.”
Amor não é pele, não é idade. É o coração, é a alma. Eu sou pai de quatro meninos negros, que são grandes, e eu sou o cara mais feliz do mundo – eu faria tudo de novo.
A família de Alexandre é uma família feliz, mas, claro, é uma família com despesas elevadas à quarta potência. Antes, ele gastava algo em torno de um salário-mínimo com aluguel, água, luz e alimentação. Agora o aumento de gastos o levou a trabalhar mais do que trabalhava antes da adoção dos meninos. Alexandre é cabeleireiro autônomo e a nova situação o obrigou a trabalhar aos finais de semana. Ele confessa que no início ficou assustado com a elevação dos custos, mas garante que consegue equacionar as contas e que nada falta a nenhum dos quatro garotos. “Nós não fazemos churrasco em casa todo fim de semana, não pedimos pizza todo fim de semana, mas conseguimos nos divertir fazendo, por exemplo, piquenique na praia”.
A quem deseja adotar uma criança, Alexandre lembra a expectativa que esse movimento cria na menina ou no menino, especialmente quando são mais velhos e já entendem a própria situação. Caso eles achem que, finalmente, encontraram uma família, mas a adoção não se concretiza, a decepção é imensa. O filho arredio, o que não queria saber de abraços, agia assim porque cansou de pessoas que apareciam no abrigo dizendo que iriam adotá-lo, mas depois sumiam. “Elas (crianças) queriam simplesmente ter uma casa, ter um pai, uma mãe, se sentirem amadas”, recorda.
“Quando você resolve filiar, quando você resolve pensar em ter um filho, você tem que pensar se esse novo papel de pai cabe na sua vida. Muita gente acha que é sempre aquela família margarina, que tudo vai ser lindo, maravilhoso, e não é. Filho dá trabalho. Filho por adoção, filho consanguíneo, qualquer filho dá trabalho”, adverte Soraya Pereira, condenando veementemente quem promete adoção a uma criança ou adolescente, mas desaparece. “É um irresponsável afetivamente quem faz isso. É uma covardia você seduzir uma criança no sentido afetivo, dizer que vai adotar e não adotar”.
Ganhador do Prêmio Adoção Tardia deste ano, do Senado Federal, criado justamente para incentivar a adoção de crianças mais velhas e adolescentes, Alexandre faz um alerta a quem tem preconceito não apenas com esse tipo de adoção, mas também com a adoção inter-racial. ”Amor não é pele, não é idade. É o coração, é a alma. Eu sou pai de quatro meninos negros, que são grandes, e eu sou o cara mais feliz do mundo – eu faria tudo de novo. Hoje eu tenho uma vida que eu nunca imaginei viver. Não bebo, não fumo, não saio, não tenho companheiro. Minha vida é simplesmente me dedicar inteiramente à minha família, e foi uma vida que eu escolhi viver. Eu não a trocaria por nenhuma outra”. Ele encerra a entrevista pedindo a essas pessoas que pensem em adotar crianças grandes e não apenas bebês. “Elas precisam de uma família tanto quanto um neném precisa”.
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André Giusti
Jornalista com 30 anos de experiência. Já foi repórter, apresentador e chefe de redação no Sistema Globo de Rádio e no Grupo Bandeirantes de Comunicação. É pós-graduado em Gestão da Comunicação das Organizações pelo UniCeub. É carioca e mora em Brasília há 20 anos. Também é escritor e mantém site e blog em www.andregiusti.com.br