Sem aula, Gabriel, de 5 anos, fica aos cuidados da prima, de 13

Thauanne, 13 anos, com a mãe, Nice, e o pequeno Gabriel, seu primo, no colo: dividida entre deveres escolares e domésticos (Foto: Thaís Rodrigues/Lição de Casa)

Durante pandemia, funcionária de lotérica de Ceilândia (DF) tem que deixar filho pequeno na casa de parentes enquanto vai trabalhar

Por Lição de Casa | ODS 1ODS 4 • Publicada em 17 de outubro de 2020 - 09:56 • Atualizada em 20 de outubro de 2020 - 15:42

Thauanne, 13 anos, com a mãe, Nice, e o pequeno Gabriel, seu primo, no colo: dividida entre deveres escolares e domésticos (Foto: Thaís Rodrigues/Lição de Casa)

Thaís Rodrigues*

Em vez de ir para a escola, Gabriel Souza, de 5 anos, acorda às 6h para seguir com a mãe até a casa da tia-avó em Ceilândia, periferia de Brasília. Sempre a mesma trilha sonora, um misto de sono e choro: “não, eu não quero ir”, diz o menino à mãe.

Depois de a pandemia fechar as unidades escolares, Eliene Pereira de Souza, de 34 anos, precisou fazer uma escolha racional: ou deixava Gabriel aos cuidados do filho mais velho, de 14 anos, ou levava a criança para passar o dia na residência da tia. A possibilidade de trabalhar de casa e conciliar os cuidados com o filho que subitamente ficou sem escola não foi, para ela, uma opção.

Eu estou conseguindo aprender, mas não tem lado bom em estar longe da sala de aula. Estou com muita saudade da escola

Eliene está entre os milhares de brasileiros que não puderam parar de trabalhar por conta da Covid-19, e cumpre expediente todos os dias em uma casa lotérica a cerca de 26 km de onde mora. A tia, Maria Eunice das Neves, conhecida como Nice, de 55 anos, é mineira, diarista e, segundo conta, “pariu 6 meninos”. Três dos filhos moram com ela no mesmo lote residencial, onde há três barracos construídos. É ali que Gabriel fica, aos cuidados de todos que estiverem disponíveis para olhá-lo.

Quando fui à casa de Nice, em uma terça-feira à tarde, era a filha dela, de 13 anos, Thauanne Neves, que estava cuidando do pequeno. Ele dormia em uma cama de casal enquanto a adolescente zapeava pelas redes sociais com o celular. Conversamos um pouco, e rapidamente ela levantou para acordá-lo, pois já era a hora do banho.

“Eu gosto de ficar com ele, porque a gente brinca juntos. Só é ruim quando ele teima em alguma coisa”, afirma a garota, que está no Ensino Fundamental. Cerca de 30% das adolescentes e jovens mulheres brasileiras, de 14 a 24 anos, ajudam a cuidar de crianças ou idosos em casa ou na residência de parentes, conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad Contínua), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE).

Ao todo, 5,9 milhões de meninas nessa faixa etária ficavam responsáveis por esses cuidados no país em 2017 – uma fase em que estão desenvolvendo o aprendizado ou planejando a entrada no mercado de trabalho. O excesso de tarefas domésticas influencia no ciclo de pobreza que atinge, principalmente, as mulheres.

Deveres domésticos e escolares

Thauanne assiste um aulão “tira-dúvidas” online pela manhã e, a partir das 11h, olha Gabriel, até o fim do dia. À noite, é o momento que ela tem para estudar e fazer os deveres. “Eu estou conseguindo aprender, mas não tem lado bom em estar longe da sala de aula. Estou com muita saudade da escola”.

Em relação a Gabriel, ela lembra de outra parte “chata”: “dar comida e banho nele”. Além disso, às vezes o garoto atrapalha a menina na hora de fazer a lição de casa; “mas eu ligo a TV e ele fica quieto”, completa. A mãe, Maria Eunice, faz a comida, deixa pronta e vai trabalhar. “A gente fica com ele por amor, e vai ser por tempo indeterminado, porque a mãe dele não tem condições, nem financeiras e nem de parar de trabalhar para ficar com o menino”, relata Nice.

A mãe do menino, Eliene, diz que não tem intenção de mandar nenhum dos filhos para a escola antes que as coisas melhorem, em um cenário de poucos casos da doença ou vacina. “Eu me preocupo bastante, porque vi pessoas sendo afastadas por conta da doença, vejo também pessoas que perderam parentes”.

Eliene ressalta que só confia em deixar Gabriel fora de casa porque é com a tia; se fosse com outra pessoa, ia ser difícil. “É a opção que eu tenho, mulher. Como eu iria trabalhar se não fosse assim?”.

O ensino remoto para a Educação Infantil começou em 13 de julho, com muitas dificuldades, tensões das escolas e professoras, trabalho redobrado e muita improvisação. Para a professora Edna Barroso, de Ceilândia, houve uma ruptura no trabalho que estava sendo feito presencialmente, e a escola não teve tempo de fazer uma reunião com a comunidade. “O teletrabalho e o tele-estudo transportaram a escola para um ambiente que é íntimo, familiar, mas a casa e os familiares não estão preparados, assim como as professoras também não”, diz.

A Secretaria de Educação do DF alegou, em nota, que o ensino mediado por tecnologia é algo muito recente. “Todos estão aprendendo. É um desafio, que provoca os educadores a pensarem em novas possibilidades de atuação pedagógica”, afirmou à secretaria em nota à reportagem do Lição de Casa.

*Lição de Casa

Lição de Casa

Projeto de investigação jornalística (colaborativo e nacional) para acompanhar os impactos da covid-19 na educação brasileira. São 15 jornalistas em dez estados brasileiros. O site http://licaodecasa.org/ foi lançado em dia 15 de setembro de 2020, após seis meses de pandemia.

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