O chef da Quebrada

Projeto Gastronomia Periférica ensina como fazer pratos criativos e deliciosos com restos e sobras

Por Florência Costa | ODS 1 • Publicada em 15 de setembro de 2017 - 09:25 • Atualizada em 16 de setembro de 2017 - 13:44

O Chef Edson Leite dando uma aula de reaproveitamento das sobras. Foto Florência Costa
O Chef Edson Leite dando uma aula de reaproveitamento das sobras. Foto Florência Costa

Na cozinha de Edson Leite, lugar de casca de melancia não é no lixo, é na panela. Craque no aproveitamento de alimentos, o chef ensina suas técnicas culinárias em workshops que batizou de Gastronomia Periférica, uma referência à periferia de São Paulo, onde cresceu, mora e trabalha – a “Quebrada”, como ele diz.

“O projeto Gastronomia Periférica choca as pessoas porque mostra como é possível fazer pratos bacanas, criativos, deliciosos com o pouco que se tem em casa. O pessoal joga muita coisa fora lá na Quebrada e depois diz que não tem o que comer”, explica Edson, que ensina gastronomia para adolescentes na Fundação Julita, entidade sediada no Jardim São Luís. No fim do curso, quando pergunta aos garotos o que querem fazer da vida, a maioria diz culinária: “A gastronomia é o novo futebol da Quebrada, tá ligado?”.

Edson também criou um aplicativo, com o mesmo nome, que mapeia dicas de restaurantes e botecos com boas comidas na periferia paulistana – de vendedores ambulantes de coxinha a temakerias. “O pessoal não precisa ir comer só em fast food de shopping. Tem muita coisa bacana na Quebrada. Não precisamos mais atravessar a ponte [a Zona Sul de São Paulo, a mais pobre da cidade, é separada das áreas ricas por várias pontes]”, diz.

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O prato principal: arroz a carreteiro. Foto Florência Costa
O prato principal: arroz a carreteiro. Foto Florência Costa

O conceito Gastronomia Periférica pegou. Edson passou a gravar programas veiculados no Youtube (veja abaixo). Ele aprendeu a arte da culinária sofisticada longe do Brasil. Aos 21 anos, deixou o país e foi para Portugal, onde lavou muitos pratos antes de aprender a cozinhar em grandes restaurantes, como o Olivier de Lisboa. “Não sabia cozinhar nada quando cheguei lá”, lembra. A primeira missão foi preparar um polvo. “Liguei para um amigo cozinheiro. Coloquei um fone no ouvido e ele me deu instruções passo a passo”, ri.

Edson viveu sete anos na Europa. “Lá eu vi que as pessoas aproveitam todos os ingredientes ao máximo. A gente aprendia a importância de cada prato”, conta o chef. Edson voltou ao Brasil em 2012 para fazer “algo pela molecada”.

“Vi muitos parceiros morrer, tive uma juventude interrompida por tiros. A gente criou o Gastronomia Periférica para transformar a vida das pessoas, ajudá-las a deixar de comer mal”, explica.

Salada de melancia. Foto de Florência Costa
Salada de melancia. Foto de Florência Costa

Em uma das noites frias do agosto paulistano, Edson prepara-se para mais um workshop. Mas desta vez é fora da “perifa”. Na sede da ONG Casa das Mulheres, que cedeu um espaço a ele, na Barra Funda, o chef avisa ao grupo que veio assistir sua aula: “Vamos jogar o menos possível no lixo”.

Ele mostra uma caixa com cubinhos de melancia. “Vocês acham que isso aqui será a sobremesa?”, perguntou. E ele mesmo respondeu: “Não, será a salada, temperada com aceto balsâmico, azeite e azeitona”. Enquanto isso, seu ajudante despejava em uma panela as cascas da fruta cortadas também em cubos, acrescentando açúcar, canela e cravo. “A gente começa a fazer a sobremesa porque é o prato que demora mais, uns 40 minutos no fogo para cozinhar a casca da melancia”, avisou.

Edson partiu em seguida para o prato principal: arroz de carreteiro. Colocou água até pouco abaixo da metade de uma panela grande. Ele corta o pimentão e mostra o miolo: “Vocês acham que isso vai pro lixo? Não, vai pra panela”. O miolo foi acrescentado à fervura da água para aromatizá-la, assim como talos da salsinha, gengibre e orégano: Ele pica abobrinha, cenoura, alho, pimentão e cebola roxa: “A cenoura pode cozinhar com casca”. Coloca o arroz na panela e joga algumas pitadas de sal do Himalaia. “Para 10 pessoas, um quilo de arroz”, ensina.

A sobremesa feita de cascas. Foto Florência Costa
A sobremesa feita de cascas. Foto Florência Costa

As pessoas repetem. Edson sorri. “Vocês sabiam que os nossos sentidos alteram o paladar?.  A música e as cores influenciam muito”, diz. Enquanto mexe a colher de pau na panela, ele lembra que recentemente foi a uma exposição no MAM (Museu de Arte Moderna) sobre alimentos: “Cidade da Língua”. São uma série de instalações que tratam do passado, do presente e do futuro da comida. Edson, que cozinhou diante de um colorido mural de grafites, disse que aposta tudo no futuro de sua Gastronomia Periférica.

No final, uma cliente especial aparece na porta. Tímida, uma moça franzina bate na porta e pergunta se alguém tem alguma latinha de refrigerante ou cerveja usada. Edson olha para Marta, a catadora de latas que ganha  R$ 0,50 por 1 quilo recolhido e que vive debaixo de um viaduto da Barra Funda. “O que você gosta de comer?”, pergunta ele. Marta arregala os olhos, e se defende: “desculpa, eu só queria umas latinhas”. Após muita insistência, ela entra.  E responde: “Ah, não sei, eu gosto de arroz e feijão”. O chef faz o convite: “Eu vou te oferecer uns pratos bem diferentes”. Ela prova a salada de melancia, o arroz de carreteiro e o doce. E, com sorriso de orelha a orelha, diz que nunca poderia imaginar que melancia fosse tão bom, inclusive a casca. Ponto para a Gastronomia Periférica.

Florência Costa

Jornalista freelance especializada em cobertura internacional e política. Foi correspondente na Rússia do Jornal do Brasil e do serviço brasileiro da BBC. Em 2006 mudou-se para a Índia e foi correspondente do jornal O Globo. É autora do livro "Os indianos" (Editora Contexto) e colaboradora, no Brasil, do website The Wire, com sede na Índia (https://thewire.in/).

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