Escavação genética de um passado presente

Busca pela ancestralidade africana ganha força com o auxílio da tecnologia

Por Caroline Bonfim | ODS 1 • Publicada em 20 de agosto de 2018 - 08:27 • Atualizada em 7 de abril de 2020 - 11:15

Sítio Arqueológico do Caís do Valongo. Foto Iphan

Sítio Arqueológico do Caís do Valongo. Foto Iphan

Busca pela ancestralidade africana ganha força com o auxílio da tecnologia

Por Caroline Bonfim | ODS 1 • Publicada em 20 de agosto de 2018 - 08:27 • Atualizada em 7 de abril de 2020 - 11:15

“Ancestralidade: legado de antepassados; atavismo, hereditariedade”. Muito mais que uma definição em um dicionário, a palavra ganha força no século 21 com o apoio da ciência. Ao longo desses 130 anos a partir da abolição da escravidão, têm sido inúmeras as tentativas da população negra de recuperar a memória de suas origens perdidas quando os africanos chegavam ao Brasil escravizados, separados de suas famílias, deixando toda sua história para trás. Mas há quem consiga, hoje, recuperar parte dessa ancestralidade que lhe foi negada por meio dos exames de DNA, que revelam a quais grupos étnicos a pessoa pertence e, portanto, de onde vieram seus antepassados.

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O jornalista Felipe Gomes, de 33 anos, fez seu exame de DNA pela empresa My Heritage e descobriu que 53.5% da sua composição genética é de origem africana, sendo 39.2% da Nigéria. Para ele, o exame é confiável e ajuda muito quem quer reencontrar suas origens.

O jornalista Felipe Gomes, fez seu exame de DNA pela empresa My Heritage e descobriu que 53.5% da sua composição genética é de origem africana. Foto Arquivo Pessoal
O jornalista Felipe Gomes fez seu exame de DNA pela empresa My Heritage e descobriu que 53.5% da sua composição genética é de origem africana. (Foto: arquivo pessoal)

“Eu estava em um momento de fazer uma outra descoberta do que é ser negro. Foi um momento pessoal meu de buscar essas referências e saber da minha história, da história do meu povo. Eu tive uma pista grande de onde vieram meus ancestrais. Sei que vieram do povo Iorubá. Tem uma porcentagem que é do Quênia e tenho um pouco dos africanos do Norte”, conta Felipe.

O mapa da composição genética de Felipe Gomes no site My Heritage (Reprodução)

Ele chama a atenção para a dificuldade de reconstruir a árvore genealógica e saber de fato quem foram seus antepassados, já que o exame de DNA ajuda a saber  apenas o lugar de origem dos ramos da família, mas não indica exatamente quem eram as pessoas.

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“Pela linha familiar, eu só consigo chegar até meus bisavós. Quando eu comecei a investigar minha ancestralidade, eu esbarrei em um problema. Pelo lado do meu avô paterno, a gente não tem memória física (fotos, documentos), por exemplo. O resultado desse teste é muito amplo. Ele dá uma ancestralidade étnica, mas não aponta diretamente tudo. Eu acho que as pessoas acabam buscando essa reconexão com o que é do povo, e não necessariamente da sua família”, afirma Felipe.

O analista de TI Thiago Campos, de 34 anos, escolheu a empresa African Ancestry  e pagou quase US$ 800 para fazer o exame dos radicais feminino e masculino, somente pela parte materna. Apesar do alto custo, ele mesmo teve de lidar com a burocracia de enviar o material por FedEX, que exigiu um documento comprovando que o material biológico não estava contaminado.

“Se  empresas privadas brasileiras fizessem o exame, isso ajudaria a diminuir o alto custo e a burocracia alfandegária. E existe público para isso, já que é um teste fundamental, e o Brasil é o lugar onde mais tem negros fora da África”, argumenta.

Thiago Campos e sua mãe. (Foto arquivo pessoal)

Thiago acredita que estudar história e compreender a trajetória de sua família o ajudará a descobrir o seu lugar no mundo e a enfrentar o racismo ainda presente no Brasil. Há, no entanto, um fato que “assombra” Thiago: sua tataravó foi estuprada pelo senhor das terras em que ela trabalhava, dessa violência nasceu seu bisavô.

“O que me ocorreu e me assombrou muito foi que o radical masculino da minha parte materna da família pode ser de um homem branco que estuprou uma mulher da minha família. Isso era muito comum na época. Mas tem uma questão muito machista também: na minha família sabemos que esse senhor era um fazendeiro italiano e que seu nome era Sant’anna. Mas da minha tataravó, que foi quem criou meu bisavó, somente sei que seu nome era Maria. Isso porque ela era um ser marginalizado dentro da sociedade por ser negra e por ser uma mulher estuprada. Fazer esse caminho de reconstrução é pensar nisso tudo e não tem como fazer isso sem sentir dor”, afirma Thiago.

O avô de Thiago e seus netos (Foto arquivo pessoal)

Professor de História da África do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio, Alexandre dos Santos também fez o exame de DNA pela African Ancestry e descobriu que a mãe de sua tataravó veio escravizada de Camarões. Pelo fato de ele ser branco de olhos verdes, Santos acredita que, em algum momento, esse radical genético branco entrou em sua linhagem porque a mãe de sua tataravó foi estuprada por um senhor de terras.

“Eu não sou negro, mas tenho certeza de que sou fruto de uma mistura, e o exame serve para descobrir de onde vim. Essa miscigenação que temos é por conta dos estupros que as escravas sofreram. Somos todos frutos de vários estupros do colonizador português. Com o exame, descobri que tenho uma contribuição negra que me orgulha, mas eu não sou negro. Sou branco de olhos verdes e isso me faz entender como sou um ser complexo composto por vários DNAs. Isso me faz achar que o racismo é segregar você mesmo porque temos esse sangue. É um elemento que ajuda a desmistificar e contribui para que as pessoas parem de ver o negro como alguém menor, ruim”, acredita Alexandre.

A estudante Irina Gbaguidi, de 20 anos, tem dupla nacionalidade, da França e do Benim, como sua mãe. Seu pai é do Benim. Quando chegou ao terceiro ano do curso de Ciências Sociais, ela resolveu estudar a diáspora africana e viu no Brasil o melhor lugar para explorar o tema. Somente quando chegou aqui, ela descobriu que não o país não tem um museu da escravidão.

“Não saber quem são seus ancestrais é como ser um livro em que faltam capítulos. É incrível não ter um museu da escravidão no Brasil e existir até em países europeus. É surpreendente vocês não terem conhecimento de sua ancestralidade”, afirma Irina.

Sobre o exame

 Existem diversas empresas estrangeiras que fazem o teste de DNA e algumas incentivam a reconstrução da árvore genealógica. Normalmente, a empresa contratada envia um kit para colher uma amostra de DNA do interior  da bochecha, que é enviado de volta para a análise. De acordo com o site da empresa em que Felipe fez seu teste – a My Heritage -, o laboratório traduz as informações do DNA em dados digitais brutos. O segundo passo é feito pelo algoritmo criado por eles que calcula a composição genética e compara com a base de dados da empresa para descobrir a origem. O resultado sai em  cerca de um mês.

De acordo com Karen Hägele, representante de marketing da My Heritage no Brasil, quanto mais pessoas fizerem o teste, mais material para comparar haverá e, consequentemente, mais respostas.

“Usuários que tenham feito o teste com outras empresas podem fazer o upload gratuito dos seus resultados no nosso site e assim ter acesso à nossa composição genética e correspondências de DNA. Mas, a princípio, cada empresa decide por si quais as variações na sequência de DNA referentes à origem étnica serão analisados e quais são as regiões étnicas oferecidas”, explica Karen.

Em 2016 foi lançado o documentário “Brasil: DNA África”, que põe em discussão a questão da ancestralidade e a falta de conexão que temos com nossos ascendentes africanos. Com roteiro de Mônica Amorim Monteiro, o filme acompanha brasileiros fazendo o exame de DNA e depois os leva para conhecer os grupos étnicos de que descendem na África. A coordenadora de produção do documentário, Patrícia Monteiro, escolheu a empresa African Ancestry para o exame dos participantes e disse que a inspiração para o projeto foi o livro “Atlas Of Transatlantic Slave Trade”, escrito por David Eltis e David Richardson, que ganhou de presente do embaixador Alberto Costa e Silva, diplomata que publicou diversos livros sobre África.

“Todo processo do documentário durou três anos, entre pesquisa e as gravações, mas os testes de DNA ficaram prontos em três meses. Fizemos o exame com 200 pessoas e, para escolher os personagens, pensamos em logística, tempo disponível que elas teriam para gravar, se sabiam falar para as câmeras, entre outros”, conta Patrícia.

Árvore do esquecimento

A ciência, de fato, ajuda a reconstruir parte dessa identidade perdida. Mas isso é só o início de uma busca difícil.  Para o professor Alexandre Santos, fazer o caminho de volta é quase impossível por causa do forte processo de esquecimento. Esse processo, segundo ele, começava antes de os escravos embarcarem nos navios negreiros, quando eles eram obrigados a dar voltas em torno da “árvore do esquecimento” e falar “eu deixo aqui meu passado. Eu deixo aqui minha ancestralidade”. Os escravos eram também “batizados” com nomes católicos e perdiam seu nome original. Os nomes, na maioria dos grupos étnicos na África, são constituídos por uma série de elementos muito característicos: uma parte é escolhida pelos pais, outra em uma cerimônia pública, uma terceira é oriunda do nome da entidade religiosa da qual os pais são devotos e uma parte pode vir das  características da gestação.

“O nome ligava a pessoa a seu passado, sua família e suas origens. O corte com a ancestralidade começava por aí. É  mais fácil achar a ancestralidade da Europa, mas não da África, por causa desse processo de esquecimento” afirma o professor.

Segundo dados do site The Trans-Atlantic Slave Trade Database Voyages, um projeto internacional que coleta os dados das viagens dos navios negreiros, mais de 12,5 milhões de africanos foram embarcados nos navios negreiros com destino às Américas, e cerca de 10,7 milhões conseguiram chegar vivos.

Lugares de memória

Uma forma de se conectar com esse passado é por meio de lugares de memória. Na zona portuária do Rio de Janeiro – principalmente da região da Gamboa – há um vasto e rico caminho de conhecimento dessa herança do passado.  Considerado Patrimônio Mundial pela Unesco em 2017, o Cais do Valongo é um bom exemplo. Foi o principal ponto de desembarque de escravos no Brasil, por onde passaram mais de 1 milhão de negros, e é o marco da escravidão no mundo. Em 1843, o local foi aterrado e renomeado como Cais da Imperatriz, para receber a mulher do imperador D. Pedro II, Tereza Cristina. No ano de 1911, foi novamente aterrado com as reformas urbanas do início do século XX, e só foi descoberto em 2011, com as escavações do Porto Maravilha.

“O Cais do Valongo foi trabalhado como um bem de memória afetiva, nesse caso da diáspora africana, tendo em vista a escravidão no mundo. Por isso, foi inscrito na lista de Patrimônio Mundial e se encontra no mesmo patamar que a cidade de Hiroshima, no Japão, e Auschwitz, na Polônia. A Unesco possui alguns critérios para reconhecer o sítio como patrimônio. O Cais foi inscrito dentro do critério 6, que tem a ver com os aspectos simbólicos ali existentes relacionados à diáspora africana e a escravidão no mundo”,  afirma o diretor do departamento de Coordenação e Fomento Iphan, Marcelo Brito.

Apesar do reconhecimento, o cais sofre com o abandono e pode perder o título, caso não sejam feitos ajustes até junho de 2020.

“No processo de avaliação para o cais ganhar esse título, o Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (ICOMOS) estabeleceu quatro medidas a serem cumpridas em função de reconhecimento, mas elas têm um prazo de execução e nós estamos dentro do prazo. A primeira medida é sobre a  instalação de um centro de interpretação para explicar o que é o sítio, com informações e orientações, assim como o desenvolvimento de um programa educativo. Além disso, temos que facilitar o acesso ao local. O quarto e último ponto está associado aos trabalhos arqueológicos no sítio, no sentido de prosseguir com os estudos naquele ambiente. A possibilidade de perder o título pode existir se até 2020 não cumprimos as exigências”, explica Brito.

Sítio Arqueológico do Caís do Valongo (Foto: Iphan)

A secretária municipal de Cultura do Rio de Janeiro, Nilcemar Nogueira, afirmou que as metas para o Cais do Valongo devem começar a ser implementadas a partir de 2019, com recursos que estão ainda em captação. No entanto, a secretária destaca que o que impede o desenvolvimento dos projetos é a disputa judicial entre a prefeitura e a ONG Ação da Cidadania pelo prédio Armazém Docas D.Pedro II, onde seria instalado o Museu da Escravidão e da Liberdade, que terá um espaço dedicado às informações sobre o Cais do Valongo.

“O plano A é recuperar a posse do prédio e inaugurar o centro de interpretação. O plano B é fazer uma instalação naquela área do Valongo, com a história do lugar. O plano C é instalar no Centro Cultural José Bonifácio, mas quantos visitam o cais e também vão lá?”, questiona Nilcemar.

Nilcemar Nogueira em seu gabinete na Prefeitura do Rio (Foto Caroline Bonfim)

Além do Cais do Valongo, existem outros pontos importantes que marcam a herança africana localizados principalmente na zona portuária da cidade, em um caminho conhecido como “Circuito Histórico e Arqueológico Celebração da Herança Africana”. O Instituto dos Pretos Novos, por exemplo, é considerado o maior cemitério de escravos da América (estima-se que entre 20 e 30 mil pessoas foram enterradas no espaço). Além dele, ficam na mesma região o Centro Cultural José Bonifácio, a Pedra do Sal, o Jardim Suspenso do Valongo e o Largo do Depósito. Em outros pontos da cidade do Rio, existe a possibilidade de ter conexão com valores e crenças africanas como em escolas de samba, na Casa do Jongo, centros religiosos e também em documentos no Arquivo Nacional.

“Para se enxergar como sujeito, é preciso antes saber quem você é. E eu não sou fruto de um processo violento (a escravidão). Preciso entender que a minha história não é um processo de violência. Ela começa muito antes disso. Essa descoberta é achar o meu lugar no mundo” conclui Thiago Campos.

Reportagem produzida no Laboratório de Jornalismo da PUC-Rio para o Projeto #Colabora, com orientação da professora Itala Maduell

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Caroline Bonfim

Estudante de jornalismo da PUC-Rio , Carol está concluindo também uma especialização em Política Internacional. Já trabalhou na Rádio do Portal PUC-Rio Digital, na Olympic Broadcasting Services, na Datz Assessoria de Imprensa e atualmente é estagiária de operações no canal FOX Sports.

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