Memória da escravidão em xeque

Instituto dos Pretos Novos, parte do Cais do Valongo, que virou Patrimônio Mundial, sofre com falta de verbas

Por Eduardo Carvalho | ODS 11 • Publicada em 28 de março de 2017 - 09:00 • Atualizada em 11 de julho de 2017 - 13:58

Muitos dos escravos morreram nos navios, antes de chegar ao Brasil. Foto de Alex Ferro
Debaixo de uma área de 4 mil metros quadrados,, estima-se a existência de ossadas de ao menos 15 mil escravos. Foto Alex Ferro
Estima-se a existência de ossadas de ao menos 15 mil escravos enterradas em uma área de 4 mil metros quadrados. Foto de Alex Ferro

A chegada dos últimos dias de março tem deixado a carioca Merced Guimarães, 60 anos, inquieta e preocupada. Sentada à frente de seu computador, “que insiste em dar defeito quando mais precisa”, e com o celular sempre à mão, a presidente do Instituto dos Pretos Novos (IPN), organização cultural da região portuária do Rio de Janeiro, sabe que o pior está por vir.

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Ali não era um cemitério, no sentido cristão ou civil do termo. Era um aterro sanitário, onde se jogavam corpos de homens, mulheres, crianças, animais, restos de louça quebrada e lixo. O Instituto dos Pretos Novos é o testemunho desta maneira perversa de tratar seres humanos

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Sem dinheiro para sustentar o funcionamento da instituição devido à interrupção de repasses provenientes da Prefeitura do Rio, ela pode tomar a dura decisão de fechar as portas da instituição, que abriga um pequeno museu que divulga a cultura afro-brasileira e é a porta de entrada de um dos maiores cemitérios de escravos já encontrados no planeta.

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Estima-se a existência de ossadas de ao menos 15 mil escravos enterradas em uma área de 4 mil metros quadrados, cercada por dezenas de casarões do início do século passado e pequenos botequins. São restos mortais daqueles que chegaram mortos ao Brasil, trazidos em navios, ou que morreram aqui entre os séculos XVIII e XIX, enquanto eram obrigados a trabalhar.

O cemitério faz parte da área, na zona portuária do Rio, que acaba de ser reconhecida pela Unesco como Patrimônio Mundial. A candidatura, apresentada à Agência das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura, foi construída apresentando o cemitério como porção do complexo do Cais do Valongo, erguido para receber e comercializar escravos. Ele inclui, ainda, a Pedra do Sal, berço do samba e de religiões afro. Uma tríade encravada num território que é considerado o maior embarcadouro escravagista do mundo.

Ossadas de escravos: muitos deles morreram nos navios, antes de chegar ao Brasil. Foto de Alex Ferro

Segundo a prefeitura, por meio da Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto (Cdurp), o convênio que prevê um repasse trimestral ao IPN deve acabar devido a um reposicionamento dos contratos municipais, após análise do orçamento disponível para 2017 e 2018 (leia mais abaixo).

“Talvez a gente consiga sobreviver o mês de abril com o dinheiro que o pessoal tem depositado na nossa conta. É legal, mas não é justo. Nós, cidadãos, pagamos muitos impostos e muitas taxas. Não acho justo recebermos ajuda para coisas básicas, como manutenção da infraestrutura”, afirma Merced.

Vidas interligadas

 A história de Merced e do marido, Petruccio Guimarães, está intrinsecamente ligada à do Cemitério dos Pretos Novos. Séculos separam o casal daqueles que estão enterrados ali, sob camadas de terra, concreto e asfalto. Mas uma reforma na residência dos Guimarães, em 1996, ligou suas vidas à memória da diáspora africana.

Foi durante o movimento de pás dos pedreiros que os primeiros ossos humanos foram encontrados. Pensou-se que naquela área tinha havido uma chacina, quando, na verdade, se tratava de algo muito pior. “Era a materialidade do horror. Ali não era um cemitério, no sentido cristão ou civil do termo. Era um aterro sanitário, onde se jogavam corpos de homens, mulheres, crianças, animais, restos de louça quebrada e lixo. O Instituto dos Pretos Novos é o testemunho desta maneira perversa de tratar seres humanos”, explica o antropólogo Milton Guran, principal responsável pela candidatura do Cais do Valongo a Patrimônio da Humanidade da Unesco.

Logo após o achado, foi iniciado um vagaroso processo de preservação, divulgação e investigação, que cresceu graças a doações e ao apoio de pesquisadores voluntários.

Em uma nova fase da escavação, que começou em dezembro de 2016, estão sendo encontrados  inclusive crânios inteiros. Reinaldo Tavares, arqueólogo responsável pelo trabalho, explica que se trata de uma pesquisa que procura identificar contextos de práticas de manejo da área do cemitério, além de estimar os impactos sofridos na área. “O trabalho é lento e penoso”, afirma.

Fragmento de osso encontrado em uma nova fase da escavação, que começou em dezembro de 2016. Foto de Alex Ferro

Orçamento restrito

Por ano, segundo Merced Guimarães, seriam necessários R$ 109 mil para garantir o funcionamento do Instituto dos Pretos Novos e suas atividades. Entre 2013 e 2016, além de repasses da Cdurp, o IPN sobreviveu graças aos prêmios e convênios voltados à realização de oficinas e passeios pela região. Mas agora os Guimarães mal têm dinheiro para a conta de energia elétrica. “Como tínhamos o convênio com a Cdurp, estávamos tranquilos. Não sabemos como serão os próximos meses. Vamos viver um dia após o outro”, diz Merced.

As atividades do IPN resistem graças ao trabalho de voluntários. Desde que o cemitério dos pretos novos foi encontrado, há 21 anos, 72 mil visitantes passaram pelo local. Foram realizadas ali 900 oficinas culturais, com cerca de 9 mil participantes. “Tem muita gente trabalhando com eles: arqueólogos, artistas plásticos, curadores, historiadores… O IPN se tornou um local de produção de conhecimento, de preservação e multiplicação da memória. E isso sem quase nenhum apoio”,  afirma Milton Guran.

Por nota, a Cdurp explica que os repasses serão interrompidos devido ao reposicionamento de seus contratos, após análise do orçamento disponível para 2017 e 2018, e afirma que isto ocorre em decorrência da crise financeira enfrentada pelo país. A empresa da prefeitura do Rio apresentou números que mostram que, entre janeiro de 2013 e janeiro de 2017, foram repassados R$ 205 mil ao IPN, além do pagamento de R$ 150 mil, feito em 2013, referente ao Edital Porto Maravilha Cultural.

A Cdurp informou também que tem acompanhado diversas reuniões promovidas pelo movimento #IPNResiste,  no intuito de colaborar com sugestões que levem à sustentabilidade da instituição.

Pelas redes sociais, Merced Guimarães tenta chamar atenção para sua luta. “O Instituto dos Pretos Novos tem por direito verba de custeio. É dever do Estado o reconhecimento do crime da escravidão. Manter o local aberto é parte da reparação para os que escaparam da escravidão morrendo. O IPN não é uma iniciativa comum. É um lugar singular”.

Eduardo Carvalho

Jornalista com pós-graduação em Jornalismo Científico pela Unicamp. Trabalhou nos jornais ValeParaibano e O Vale, além da TV Vanguarda, afiliada da Rede Globo, em São José dos Campos (SP). Foi repórter de ciência do portal G1, em São Paulo.

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