De rapper a ongueiro

Libertários do Capão Redondo

Por Florência Costa | Mapa das ONGsODS 10 • Publicada em 17 de outubro de 2016 - 08:00 • Atualizada em 3 de setembro de 2017 - 01:20

ONG Libertarios do Capao Redondo/ Foto de Divulgacao
O ex-rapper Rafael Gomes, do grupo Revolucionários, é o presidente da ONG Libertários do Capão Redondo. Foto de Divulgacao

Quem mora nas áreas mais privilegiadas de São Paulo costuma torcer o nariz quando ouve falar no Capão Redondo. Este bairro na Zona Sul (a mais pobre da cidade) ficou marcado com a imagem de chacinas e violência. Um fim do mundo esquecido pelos bem nascidos.

Rafael Gomes, ex-rapper do grupo Revolucionários, e presidente da ONG Libertários do Capão Redondo, reclama do preconceito contra sua região e diz que muita coisa mudou por ali. “Já não somos aquele lugar longe de tudo, onde as pessoas se matavam à luz do dia.  Isso acontecia mesmo até alguns anos atrás. Lembro de um conhecido que matou o vizinho só porque ele colocou o lixo perto da casa dele. Todo mundo tinha um 38 aqui”, lembra. “No nosso grupo a gente cantava a violência. Fizemos uma música sobre um sujeito que dormia com uma arma sob o travesseiro. Ele acabou morrendo. A gente cantava: ‘Uma arma como companheira, uma arma como sua nega’”, diz.

“Hoje, aqui no Capão temos metrô, temos um comércio intenso, atividades econômicas que possibilitam às pessoas viver decentemente no bairro sem precisar sair. Isso aqui é praticamente uma cidade de 280 mil habitantes. Temos artistas e escritores que falam das nossas vidas, temos uma cultura própria. Se um dia eu for escritor, só vou lembrar das histórias positivas do Capão”, afirma.

Há 16 anos Rafael fundou a Libertários depois de ter sido convencido por amigos a tentar fazer algo para enfrentar os graves problemas sociais de sua região. “O nosso grupo de Rap apenas denunciava os problemas. A gente se chamava de Revolucionários porque sonhávamos em transformar a realidade. E a transformação vem pela educação, pela conscientização”, explicou.“Um dia, me sugeriram fazer alguma coisa para mudar e me deram a ideia de criar uma ONG. Eu nem sabia o que era isso. Pensava que era algo de comer”, ri.

Rafael chega com seu Fiat Paglio vinho na casa onde funciona a Libertários do Capão. Ele abre um sorriso e aponta para o grafite que enfeita o portão: a imagem de uma africana: “Foi um artista amigo nosso daqui da área que fez. Ele se inspirou na África”.

Formação profissional

Hoje a organização já atendeu mais de mil famílias oferecendo cursos de vocação e formação profissional (pedreiros, cabelereiros, corte e costura e padaria artesanal), de música (violão, bateria e canto), faz obras de reparação de casas dos mais necessitados, além de dar ajuda psicológica aos que estão no desespero da falta de perspectiva. Uma das atividades mais importantes é o Curso Conhecimento e Oportunidade, para preparar jovens (de 15 a 22 anos) para mercado de trabalho.

“Eles aprendem a escrever emails, a fazer entrevista, a preparar uma redação corretamente”, conta a publicitária Gabriela Araújo, voluntária da ONG, onde desempenha a função de diretora de comunicação: “A gente vai nas escolas oferecer este curso aos jovens em uma idade muito importante, quando eles devem decidir o que fazer da vida. Isso tem ajudado a tirar vários do caminho das drogas. Tivemos mais de 90 alunos desde o começo do ano”.

Ela conta que a ONG tem também atividades que funcionam como serviço comunitário para meninos e meninas menores de idade que cometeram infrações e foram para casas de correção. “Muitos deles chegam aqui com medo. Apanharam muito lá apenas porque olharam para o lado. Uns são tranquilos, outros muito revoltados. Uns não querem olhar para a nossa cara, tem a postura muito retraída”, conta Gabriela. No final do curso, o jovem com bom desempenho ganha um certificado como prova do serviço comunitário. Muitos idosos também procuram ajuda da ONG, diz Gabriela. “A gente reconstruiu o quartinho que parecia um cativeiro de uma idosa que morava sozinha num casebre em uma situação deplorável. A terceira idade na periferia está muito abandonada e em depressão”, conta. A ONG já fez a reforma de casas de 120 famílias entre 2013 e 2015.

Mulheres de todas as idades os procuram para fazer todos os cursos, inclusive de pedreiros. “Tivemos muitas alunas de aprendiz de pedreiro. Elas mesmo querem reformar as suas casas e não depender de homens para isso”, diz Gabriela. Rafael explica que a Libertários não tem preconceitos e está aberta para ajudar todos, independente da orientação sexual: “Já tivemos alunos travestis nos nossos cursos e eles sempre foram muitos respeitados”.

Tem gente que chega aqui quebrado. Com a auto-estima no pé, sem trabalho. O cara que não estuda, não tem trabalho e quem não trabalha fica mal. Vários pensam em se matar

No início, sua ONG oferecia apenas uma biblioteca. “Foi um sucesso, arrecadamos muitos livros. Até o Arnaldo Antunes veio nos visitar”, recorda Rafael. Isso era quando a Libertários ficava em outro imóvel em um local mais privilegiado, mais perto do centro comercial da região. Eles tiveram que sair de lá e venderam os livros para pagar dívidas. “Neste imóvel aqui pagamos R$ 1 mil por mês de aluguel”, conta. Rafael, que trabalha de noite como segurança em uma escola municipal. Ele explica que a ONG recebe ajuda de programas sociais dos governos estadual e federal (Fundo de Solidariedade e Ponto de Cultura respectivamente), que bancam os salários dos professores. “Mas não sei até quando. Precisamos buscar fontes de apoio além dos programas governamentais”, diz.

“Tem gente que chega aqui quebrado. Com a auto-estima no pé, sem trabalho.  O cara que não estuda, não tem trabalho e quem não trabalha fica mal. Vários pensam em se matar”, conta ele.

 “A educação é que liberta e dá condição pra gente voar”, diz, apontando para o logo da ONG, criada por uma equipe de publicitários voluntários. São duas mãos algemadas. Elas rompem a corrente em um movimento de libertação.

 

Florência Costa

Jornalista freelance especializada em cobertura internacional e política. Foi correspondente na Rússia do Jornal do Brasil e do serviço brasileiro da BBC. Em 2006 mudou-se para a Índia e foi correspondente do jornal O Globo. É autora do livro "Os indianos" (Editora Contexto) e colaboradora, no Brasil, do website The Wire, com sede na Índia (https://thewire.in/).

Newsletter do #Colabora

Um jeito diferente de ver e analisar as notícias da semana, além dos conteúdos dos colunistas e reportagens especiais. A gente vai até você. De graça, no seu e-mail.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *