Mariana: desrespeito à lei da gravidade

Vista do alto da região de Bento Rodrigues, distrito de Mariana: tragédia impune, seis anos depois. Foto de Christophe Simon/AFP

Biólogo diz que desastre era tragédia anunciada; Vale havia admitido, em relatório, aumento dos riscos

Por Ciça Guedes | Economia VerdeODS 11ODS 15ODS 6 • Publicada em 6 de novembro de 2015 - 20:39 • Atualizada em 5 de novembro de 2020 - 13:44

Vista do alto da região de Bento Rodrigues, distrito de Mariana: tragédia impune, seis anos depois. Foto de Christophe Simon/AFP

O desastre que atingiu a região de Mariana (MG) leva a uma reflexão  sobre as normas de ocupação nas áreas próximas a mineração e os danos provocados por essa atividade econômica. Para o biólogo Jean Remy Davée Guimarães, do Instituto de Biofísica Carlos Chagas/UFRJ, bacias de rejeitos de mineração são um grande risco para populações humanas que ocupam as áreas a jusante, como vimos  em Bento Rodrigues e outros distritos atingidos pela lama tóxica. “Se você olhar agora no Google Earth, vai ter a vista aérea de antes do acidente.  É de deixar o cabelo em pé… A área de mineração é gigantesca e as duas bacias de rejeitos  são tão grandes quanto a área de mineração. A localidade de Bento Rodrigues fica na área de drenagem, e muita gente devia estar em casa. Então o número de mortos deve subir,  a julgar pela quantidade de casas destruídas ou soterradas”, opina o cientista, que é editor de ciências ambientais do Instituto Ciência Hoje (ICH).

Hoje as compensações ambientais são ridículas. É preciso discutir as normas e planos de ocupação e desenvolvimento em áreas a jusante de grandes projetos de mineração. A lei da gravidade é a única que não pode ser desrespeitada

Guimarães destaca que essas barragens são vulneráveis e que isso é de conhecimento das mineradoras. “Geralmente, essas barragens não são de  uma contenção de concreto, como nas hidrelétricas. São  de terra, mais simples e baratas e mais propensas a infiltração e problemas estruturais e, quando estouram, detonam tudo. Isso acontece em escala global. É uma questão de custo, e segurança custa caro. Se um executivo decidir fazer uma barragem muito segura, não vai ter problema por 50 anos, mas não vai ser reconduzido ao cargo. É preciso gerar lucros para os acionistas. Se esse acidente puder servir para alguma coisa, que sirva para melhorar as normas de segurança para bacias de rejeitos. Hoje as compensações ambientais são ridículas. É preciso discutir as normas e planos de ocupação e desenvolvimento em áreas a jusante de grandes projetos de mineração. A lei da gravidade é a única que não pode ser desrespeitada” 

Vale admitiu em relatório aumento do risco

As barragens de rejeito são estruturas comuns em áreas de mineração. São usadas para armazenar o material que não é aproveitado durante o beneficiamento do (neste caso) minério de ferro. Funciona assim: o minério é retirado do solo e levado à usina de beneficiamento por meio de caminhões ou de esteiras. Nessas unidades, o minério é separado daquilo que se chama tecnicamente de contaminante, como areia e sílica. Depois que o minério de ferro é separado dos contaminantes,  é processado para que se aumente a concentração de ferro no produto que será vendido para as siderúrgicas (quase todas no exterior). O que não é aproveitado é depositado nessas barragens.
Dito assim, parece simples e inofensivo, mas há outras questões envolvidas. Quanto mais se lavra uma mina, mais contaminado fica o minério e, portanto, as barragens ficam cada vez mais altas. De forma geral, é o caso das minas do Quadrilátero Ferrífero. A Vale, mineradora que divide o controle acionário da Samarco com a anglo-australiana BHP Billiton, fala desse risco no relatório chamado Form 20, que a empresa é obrigada a depositar anualmente na Bolsa de Valores de Nova York, para que possa negociar suas ações lá: “Enfrentamos um aumento nos custos de extração ou exigências de investimentos à medida que as reservas são reduzidas. As reservas são reduzidas gradativamente no curso normal de uma determinada operação de mineração a céu aberto ou subterrânea. À medida que a mineração progride, as distâncias do britador primário e dos depósitos de rejeitos se tonam maiores, as cavas se tornam mais íngremes, as minas mudam da condição de céu aberto para subterrâneas e as operações subterrâneas se tornam mais profundas. Além disso, em alguns tipos de reservas, o grau de mineralização reduz e a solidez aumenta em maiores profundidades. Como resultado, ao longo do tempo, geralmente vivenciamos um aumento nos custos de extração por unidade a respeito de cada mina, ou é possível que precisemos fazer investimentos adicionais, inclusive uma adaptação ou construção das usinas de processamento e expansão ou construção de barragens de rejeitos.” Veja mais aqui.
O processo de ampliação da barragem para receber mais rejeitos chama-se alteamento: cavam-se os taludes, que é o nome técnico para a inclinação lateral do aterro da barragem, e aprofunda-se a estrutura, tudo feito com cálculos de engenharia em função da quantidade adicional a ser depositada ali. Pense numa pirâmide de cabeça para baixo: essa mais ou menos a forma de trapézio das barragens. 
Um especialista em licenciamento ambiental, que conhece as instalações da Samarco, diz que um acidente desse tipo pode ser causado por um erro nesse processo, mas que essa hipótese é pouco provável em razão da qualidade técnica dos trabalhos de alteamento de barragens na região. “Porém, caso tenha sido detectado algum problema na barragem pelo sistema de monitoramento e os trabalhadores, que continuam desaparecidos, tenham sido enviados para lá, uma hipótese é que eles podem ter cometido algum erro de operação e aberto um canal que pode provocar um efeito chamado piping, ou seja, abre-se um caminho preferencial para o conteúdo da barragem, uma erosão inicial, e aí ocorre o rompimento”, diz o especialista, que prefere não se identificar. 
Paulo Haddad, ex-ministro da Fazenda no governo de Itamar Franco, professor titular da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG e consultor da área de mineração há décadas, disse que acha “pouco provável” que o tremor de terra registrado na região, abaixo de 3 graus na escala Richter, tenha sido a razão do acidente. “Esses tremores são frequentes em Minas, e os cálculos de engenharia têm que prevê-los”, disse ele. O professor de geofísica da USP Marcelo Assunção, em entrevista à Globo News, disse o mesmo: tremores dessa magnitude não podem ser responsabilizados pelo acidente.
A lei 12.334, de 20 de setembro de 2010, estabelece a Política Nacional de Segurança de Barragens. A regulamentação da lei aconteceu por meio das portarias DNPM 416/2012 e 526/2013. O capítulo III da lei 12.334 diz que “a segurança de uma barragem deve ser considerada nas suas fases de planejamento, projeto, construção, primeiro enchimento e primeiro vertimento, operação, desativação e de usos futuros” e que “a população deve ser informada e estimulada a participar, direta ou indiretamente, das ações preventivas e emergenciais (…) e o empreendedor é o responsável legal pela segurança da barragem, cabendo-lhe o desenvolvimento de ações para garanti-la”. Ou seja, se ficar provado que houve alguma violação dessa lei, o diretor presidente da empresa pode ser responsabilizado.
A Samarco explora duas minas em Mariana: Alegria e Germano. A barragem de Fundão, que tem 70 metros de altura, se rompeu arrastando a de Santarém, logo abaixo. Ambas destinam-se a conter os rejeitos da mina de Germano. O minério extraído dessas minas vai, por meio de três minerodutos, que têm mais de 400 quilômetros de extensão, para o município de Ubu, no Espírito Santo, onde a empresa tem quatro usinas de pelotização (que transformam o minério de ferro em pelotas, um brigadeiro de ferro concentrado destinado à fabricação de aço em siderúrgicas) e um porto. O relatório Form 20 da Vale diz que a exaustão da mina de Germano deve ocorrer em 2037 e a de Alegria, em 2053. 

Para Guimarães, é triste e simbólico o acidente  na região por serem áreas que foram colonizadas por conta do ciclo do ouro. “A mineração é uma das atividades menos sustentáveis existentes. . Você extrai  o que eras geológicas levaram para criar. Depois que não há mais o que extrair, ou você recicla o que foi tirado ou muda de tecnologia ou de planeta”, critica o biólogo. “Historicamente, a mineração gera uma cultura de precariedade  e insegurança. Não deixa riquezas depois que se esgotam os recursos, só os passivos ambientais. Essas cidades nasceram do ciclo do ouro, e agora sofrem com a mineração de um metal muito menos nobre”, concluiu. 

#Colaborou: Valquíria Daher

 

Ciça Guedes

Jornalista e economista, trabalhou em O Dia, Folha de S.Paulo, Globo News, O Globo, e no departamento de comunicação de empresas como Banco do Brasil e Vale. Em 2014, lançou o livro "O Caso dos Nove Chineses" (editora Objetiva), escrito em parceria com Murilo Fiuza de Melo.

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5 comentários “Mariana: desrespeito à lei da gravidade

  1. Marcus BP disse:

    Absurdo construir estas poças acima de um povoado, de não haver sistemas de alarme – segundo a empresa a população não pediu – e em um local cuja vazão se dá na bacia de um rio que pecorre uma imensa região. Desmandos!

  2. Pingback: Tristeza cor de terra - Bem Blogado

  3. maria do carmo lucas disse:

    Eu lamento muito a perda dos meus conterrâneo.Mariana eu aconchego desde criança quero abraça a todos os familia que perderam seus filhos pai mae e parentes. Que Deus o abençoe vai dar o consolo.

  4. Moisés Resende disse:

    Como toda empresa internacional, só visam o lucro. O povo, a natureza, e o ambiente que se lasquem. Levam todo dinheiro, e não lavam nem os pratos.

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