Na era da regeneração

Cerca de 90% dos recursos extraídos da natureza viram resíduos durante o processo de fabricação e 80% dos produtos, em média, são descartados em menos de seis meses

Por Ciça Guedes | Economia VerdeLixoODS 14 • Publicada em 4 de janeiro de 2016 - 08:21 • Atualizada em 2 de setembro de 2017 - 16:01

A ideia de reciclar com a intenção apenas de descartar adequadamente após o uso soa tão antiquado quanto anotar o número do fax no cartão de visitas
Em um mundo com 7 bilhões de seres humanos, crise hídrica e aquecimento global, separar plástico, vidro e papel não basta. É preciso repensar a produção dos bens desde o início
Em um mundo com 7 bilhões de seres humanos, crise hídrica e aquecimento global, separar plástico, vidro e papel não basta. É preciso repensar a produção dos bens desde o início

Se você faz parte daquele grupo de pessoas que desconfia, intuitivamente, que mesmo fazendo a coisa certa – como reduzir seu tempo no chuveiro, economizar energia e lidar de forma adequada com os resíduos que o seu consumo produz – a conta não fecha, você vai gostar de conhecer as ideias da economia circular. E, como já deu para perceber, reciclar com a abordagem de apenas descartar adequadamente após o uso soa tão antiquado quanto anotar o número do fax no cartão de visitas…

Em um mundo com 7 bilhões de seres humanos, crise hídrica e aquecimento global, separar plástico, vidro e papel não basta. É preciso repensar a produção dos bens desde o início, de forma a poupar recursos naturais e reduzir a geração de resíduos. Na lógica que rege a economia, representada pelo modelo linear extração-fabricação-uso-descarte, as duas pontas da equação crescem exponencialmente, com impactos sobre o meio ambiente que podem levar o planeta ao colapso.

[g1_quote author_name=”Flavio de Miranda Ribeiro” author_description=”Assessor-técnico da Cetesb” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]

As estimativas de consumo de recursos naturais para 2020 são de 10,6 toneladas por habitante/ano, o que representa um crescimento de 16,5% sobre o valor de 1980 – 9,1 toneladas por habitante ao ano. Se considerarmos o crescimento populacional no período, a previsão de consumo dos recursos será de 82 bilhões de toneladas ao ano, comparado aos 40 bilhões de toneladas/ano de 1980

Gostando do conteúdo? Nossas notícias também podem chegar no seu e-mail.

Veja o que já enviamos
[/g1_quote]

“As estimativas de consumo de recursos naturais para 2020 são de 10,6 toneladas por habitante/ano, o que representa um crescimento de 16,5% sobre o valor de 1980 – 9,1 toneladas por habitante ao ano. Se considerarmos o crescimento populacional no período, a previsão de consumo dos recursos será de 82 bilhões de toneladas ao ano, comparado aos 40 bilhões de toneladas/ano de 1980. Ou seja, mais do que o dobro, sendo que para alguns materiais esse valor é ainda mais significativo, como no caso dos metais, de 175%, ou dos minerais não-metálicos, de 125%”, explica o engenheiro Flávio de Miranda Ribeiro, assessor-técnico da Cetesb que publicou, em 2014, juntamente com o também engenheiro e professor da FEA-USP Isak Kruglianskas, o artigo A Economia Circular no contexto europeu: Conceito e potenciais de contribuição na modernização das políticas de resíduos sólidos, sintetizando os principais conceitos da economia circular.

Se as perspectivas de consumo dos recursos naturais, com a manutenção do modelo linear, parecem assustadoras, as estimativas de geração de resíduos sólidos completam o cenário: dados da ONU revelam que somente o lixo eletrônico representa cerca de 50 milhões de toneladas ao ano em todo o mundo. De acordo com estimativas da Royal Society of Arts citadas por Ribeiro e Kruglianskas, 90% dos materiais extraídos do meio natural se tonam resíduos durante o próprio processo de fabricação, e cerca de 80% do conteúdo material dos próprios bens é descartado em menos de seis meses. Há que se considerar ainda a geração de resíduos pós-consumo e outro dado preocupante: o desperdício da energia utilizada ao longo de todo o processo. E boa parte dela vai para o lixo junto com os produtos descartados ao fim de sua vida útil. E não é recuperada.

As escovas de dentes são o lixo mais comum encontrado nos mares do mundo todo
As escovas de dentes são o lixo mais comum encontrado nos mares do mundo todo

Mas de onde veio a ideia da economia circular (EC) e o que a torna tão diferente – e revolucionária – diante do processo linear a que estamos acostumados? A EC está relacionada a conceitos que surgiram por volta da década de 1970, como o gerenciamento do ciclo de vida e a ecologia industrial, entre outros. Porém, diferentemente desses conceitos, que se concentram numa “produção mais limpa”, a EC tem como foco o projeto (design) dos produtos.

“Não se trata de desenhar um produto simplesmente, mas projetá-lo de forma a utilizar os recursos naturais com o menor impacto e visando ao reaproveitamento dos materiais no processo de produção o maior tempo possível”, diz o arquiteto Alexandre Gobbo Fernandes, diretor de projetos da EPEA Brasil, empresa que se dedica a assessorar organizações que queiram “maximizar a pegada positiva”. No final de outubro, Fernandes fez palestra num workshop no Instituto Europeu de Design (IED), no Rio. O evento marcou o lançamento da campanha Mar sem Lixo, Mar da Gente, plataforma global de soluções sobre o lixo nos oceanos apoiada pela Swissnex. O seminário propôs uma questão prática: como aplicar os conceitos da economia circular às escovas de dentes, o lixo mais comum nos mares do mundo? É certo que devemos descartá-las periodicamente, então não seria melhor se pudessem ser reaproveitadas, vale dizer, produzidas de forma que os materiais nelas usados voltassem ao processo de produção o maior número de vezes possível? No conceito da economia circular, resíduo é um erro de projeto. A indústria pode ser restaurativa e não predatória, pregam os adeptos da EC.

A EC também propõe a revisão dos padrões de consumo: consumir menos e buscar produtos de melhor qualidade, mais duráveis e que possam ser consertados, reformados. “A EC está mais avançada na Europa. Esse avanço, além da questão ecológica, reflete a preocupação das empresas e dos governos do continente com o acesso às matérias-primas e com a questão do desemprego em seus países”, diz o engenheiro Flávio Ribeiro.

Um novo paradigma de reciclagem: Houston, nós temos a solução

Em 2013, após uma década de observação das ideias de Cradel to Cradle postas em prática, Michael Braungart e William McDonough lançaram um novo livro, The Upcycle: Beyond Sustainability–Designing for Abundance. A expressão upcycle, que significa recuperar e dar um novo uso a alguma peça velha sem que ela vá para a reciclagem, ampliou seu alcance. A proposta dos autores não é nada modesta: que os seres humanos reescrevam seu papel na história do mundo natural. A boa notícia é que a visão de McDonough e Braungart, além de simples, é extremamente otimista, e otimismo, nos dias que correm, em meio a atentados e desastres ambientais, vamos combinar, é artigo de alto luxo.

O livro oferece uma série de cenários para a integração do homem ao meio natural de forma que, em vez de predadores da natureza, tornam-se co-criadores do que classificam da mais simples invenção: a abundância. Com o projeto adequado (design), dizem, a indústria pode fazer muito mais do que “zero dano”: pode melhorar tudo aquilo com que entra em contato. Dá para imaginar?

Em sua página, McDonough (http://www.mcdonough.com) comenta o livro e destaca alguns pontos. Um deles: esqueça a palavra resíduo. O arquiteto americano usa o exemplo da minhoca que, após se alimentar, por meio de seu próprio organismo, produz nutrientes riquíssimos para o solo. O ser humano, com sua inteligência, também pode criar nutrientes mais ricos.

Para isso, deve-se pensar que cada componente de um projeto está sendo emprestado e, um dia, será devolvido à natureza. E é responsabilidade de quem o utiliza devolvê-lo para a biosfera ou para a “tecnoesfera”, em condições tão boas quanto as que encontrou quando o pegou. McDonough diz que, mesmo estando há décadas nessa pregação, ainda se espanta quando uma empresa diz que um produto tecnológico tem “ciclo do produto” ou “ciclo de vida”. “Esses produtos não morrem e desaparecem. Esse é o problema e, ao mesmo tempo, a oportunidade: você está vivo, a sua torradeira, não. (…) A mudança é possível, benéfica e lucrativa”.

Mas ele adverte: fazer “menos mal” não é o mesmo que “fazer mais bem”. Não se trata de minimizar a pegada de uma pessoa ou sociedade, mas de pensar numa pegada benéfica. A chave do processo, já discutido no Cradle to Cradle, é que em tudo existe um dos dois ciclos de nutrientes – biológico ou tecnológico, e um projeto deve considerar a perspectiva da reprodução infinita desses ciclos. “Projetos com uma visão curta desse processo resultam numa tirania que atravessa gerações: o projeto correto, o bom design, é um direito humano! Não há função mais séria – e deliciosa – na vida e nos negócios do que criar a alegria. Houston, nós temos a solução”, diz o arquiteto.

 

Ciça Guedes

Jornalista e economista, trabalhou em O Dia, Folha de S.Paulo, Globo News, O Globo, e no departamento de comunicação de empresas como Banco do Brasil e Vale. Em 2014, lançou o livro "O Caso dos Nove Chineses" (editora Objetiva), escrito em parceria com Murilo Fiuza de Melo.

Newsletter do #Colabora

A ansiedade climática e a busca por informação te fizeram chegar até aqui? Receba nossa newsletter e siga por dentro de tudo sobre sustentabilidade e direitos humanos. É de graça.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *