O direito à saúde na UTI

Pesquisa em laboratório

Ativistas lutam por nova Lei das Patentes e pela democratização do acesso a remédios

Por Luciana Calaza | ArtigoODS 3 • Publicada em 25 de fevereiro de 2016 - 08:06 • Atualizada em 25 de fevereiro de 2016 - 11:37

Pesquisa em laboratório
Pesquisa em laboratório
Ativistas contestam preço praticado por alguns laboratórios para tratar Hepatite C

A Hepatite C afeta de 130 a 150 milhões de pessoas no mundo e cerca de 1,5 milhão no Brasil. Felizmente, uma nova geração de medicamentos está disponível e pode curar a doença. Infelizmente, os preços desses tratamentos são proibitivos. No fim de 2014, o Ministério da Saúde conseguiu negociar a compra de um desses medicamentos, o sofosbuvir, fabricado pelo laboratório americano Gilead Sciences, com desconto.

Ainda assim, o investimento governamental, de R$ 1 bilhão em dois anos, é suficiente para tratar apenas 60 mil pacientes – 4% da estimativa de brasileiros afetados pelo vírus. Diante da polêmica, o acesso ao tratamento para hepatite C passou a ser o novo alvo da luta do GTPI/Rebrip – Grupo de Trabalho de Propriedade Intelectual da Rede Brasileira pela Integração dos Povos. O coletivo, formado por organizações da sociedade civil, movimentos sociais e especialistas, trabalha no sentido de mitigar o impacto das patentes farmacêuticas no acesso da população a medicamentos.

Em diversos países da Europa, assim como nos Estados Unidos, o preço do sofosbuvir tem sido contestado por pacientes, médicos, parlamentares, economistas e cientistas. Eles defendem que os valores praticados extrapolam os custos de pesquisa e de produção. Com base principalmente nas vendas do Sovaldi (nome comercial do sofosbuvir), o Gilead multiplicou por dois seu faturamento em 2014, alcançando US$ 24,9 bilhões, e por quatro seu lucro líquido, a US$ 12,1 bilhões.

Além do preço, a patente solicitada para este medicamento está sendo contestada por diversos países, inclusive o Brasil, porque ele seria baseado em técnicas e compostos anteriormente conhecidos. Esta patente foi rejeitada em países como Índia, China e Egito.

Atualmente, o Brasil trata um paciente por um valor que corresponde ao tratamento de sete pacientes na Índia.

Não há informações oficiais sobre o preço que o sofosbuvir foi vendido ao Brasil, mas há rumores de que seria algo em torno de US$ 7 mil (cerca de R$ 28 mil) por cada tratamento de 12 semanas. A estimativa de preço de produção dos genéricos está entre US$ 135 e US$ 400 (R$ 540 e R$ 1.600) pelo mesmo tratamento, já estando incluído nesse preço o lucro da empresa, segundo a ONG americana I-MAK – Initiative for Medicines, Ac.

O GTPI/Rebrip carrega em sua bagagem a articulação de campanhas que resultaram no acesso ao tratamento da Aids no Brasil. Atualmente, mais de 300 mil brasileiros recebem da rede pública os medicamentos para a infecção por HIV. Mas isso não aconteceria sem a denúncia dos preços exorbitantes dos antirretrovirais de marca, sem o enfrentamento do poder de monopólio das multinacionais farmacêuticas, sem a quebra de patentes e, finalmente, sem a produção nacional de medicamentos genéricos.

A questão óbvia é: mas as patentes não são um estímulo às pesquisas científicas e aos consequentes avanços capazes de revolucionar tratamentos?

Em maio de 2013, o prêmio Nobel de Economia Joseph Stiglitz fez o seguinte comentário: “Há um reconhecimento crescente no mundo de que o sistema de patentes, como atualmente concebido, não só impõe custos sociais incalculáveis, como também tem falhado em maximizar a inovação”.

Pedro Villardi, coordenador do GTPI/Rebrip, explica a declaração: ao se analisar dados publicados ao longo dos anos após o TRIPS (acordo firmado em 1994 que obrigou os países integrantes da OMC a reconhecerem patentes em todos os campos tecnológicos), é impossível, diz ele, verificar uma relação de aumento do número de novos tratamentos com o aumento do número de patentes. Desde 1996, o número de pedidos de patentes no mundo inteiro só cresceu, enquanto o número de novos tratamentos e medicamentos inovadores caiu. Em 2001, foi publicado um documento chamado Desequilíbrio Fatal (Fatal Imbalance), que foi um dos primeiros a analisar essa questão.

O grande volume de recursos dos laboratórios farmacêuticos vão para pesquisas de câncer, diabetes, doenças cardíacas, ou seja, aquelas que afetam igualmente todos os países do mundo e com as quais é possível lucrar alto nos mercados de EUA, Europa, Japão etc, ou seja, nos países ricos

Mesmo assim, os tratamentos lançados não apresentam grandes avanços em relação àqueles que já estão no mercado. Villardi defende ainda a questão de justiça e respeito ao direito humano à saúde:

– Mesmo que pensemos que as empresas precisam de incentivos para inovar, o que não vem se provando verdadeiro, esse incentivo não pode estar acima da vida das pessoas. Então, no fim das contas, nós temos um sistema que não cumpre seus objetivos e promessas, isto é, aumentar a inovação e disponibilizar mais opções de tratamentos, e que, ainda por cima, exclui milhares de pessoas do acesso às medicações existentes.

O Brasil é hoje o sexto mercado interno em vendas de medicamentos do mundo, com forte perspectiva de ocupar o quarto lugar já em 2017. Só em 2014, a indústria farmacêutica alcançou lucros recordes de US$ 29,4 bilhões. E a expectativa é que, até 2020, amplie o faturamento para cerca de US$ 47,9 bilhões/ano, segundo dados da consultoria GlobalData. A despeito da crise internacional, o mercado brasileiro de medicamentos é pujante, desconhece recessão há quase 15 anos e estima fechar 2015 no azul.

O monopólio gerado por uma patente tem duração de 20 anos, mas, caso uma empresa obtenha novas patentes sobre um mesmo produto, pode, na prática, manter o monopólio por um prazo indefinido.

Atualmente, estão em tramitação na Câmara dos Deputados diversos projetos de lei que propõem alterações na chamada Lei das Patentes (Lei 9.279/96), com redução das brechas para concessão e extensão das patentes, por exemplo. Mas, para os ativistas do GTPI/Rebrip, a reforma da lei deveria ser só o começo.

– É necessário adotar um novo sistema de promoção da inovação em saúde, baseada na primazia dos direitos humanos, que gere os produtos necessários para atender às necessidades da saúde da população e não torne os produtos inacessíveis para milhões de pessoas – conclui Villardi.

Luciana Calaza

Carioca, jornalista com mais de 15 anos de experiência na redação de O Globo, mãe de Felipe e Rafael. Em 2014 começou a pensar de que modo a comunicação pode ajudar a criar um mundo sem barreiras e decidiu colocar sua carreira a serviço da garantia dos direitos humanos, especialmente de crianças e adolescentes com deficiência.

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2 comentários “O direito à saúde na UTI

  1. Emanuel Alencar disse:

    Importante discussão, Lu! Sou testemunha da revolução que representa o sofosbuvir, um remédio de ação direta contra o HCV. As taxas de cura têm superado os 90% e sem qualquer efeito colateral. Os 60 mil tratamentos são insuficientes? São. Mas o Brasil conseguiu negociar o menor preço com a Gilead, e não deixa de ser uma enorme vitória a distribuição dos medicamentos ao menos para os casos mais graves. Penso que agora vai haver uma enorme disputa entre laboratórios, que fará o preço cair bastante. Além da Gilead, a AbbVie e a Merck já desenvolveram pílulas bastante eficientes.

  2. Luciana Calaza disse:

    Isso, Emanuel. 60 mil pessoas são melhor que nada, claro. Mas os ativistas defendem o princípio do acesso universal, o que significa que eu não deveria precisar estar correndo risco de morte para ter direito ao tratamento. A luta é pelo enfrentamento do poder de monopólio das multinacionais, para que todos tenham esse direito.

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