Instrumentos sinfônicos a serviço da democratização da música clássica

Orquestra Sinfônica Jovem do Rio de Janeiro, projeto social da ONG Ação pela Música, sobe ao palco do Theatro Municipal no concerto Gala de Ópera. Todos os jovens músicos são moradores de comunidades

Por Liana Melo | ODS 10ODS 16
Publicada em 1 de setembro de 2025 - 09:17  -  Atualizada em 1 de setembro de 2025 - 13:11
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Alunos do curso da ASM no Complexo do Alemão: instrumentos sinfônicos a serviço da democratização da música clássica (Foto: Divulgação)

A caminho de casa, Renan de Paula da Conceição foi parado numa blitz em Benfica, bairro da zona Norte do Rio de Janeiro. Alvo preferencial das abordagens policiais na cidade, o jovem preto, de 27 anos, carregava uma viola. Não bastou explicar que o instrumento musical não escondia drogas – como supunham os policiais, que também questionaram sobre a existência de arma camuflada. O rapaz precisou provar que dominava as dez cordas dispostas em cinco pares da viola, quando passou a tocar uma melodia ecoando assim, no meio da rua, o som metálico e robusto do instrumento. Como violista e percussionista, Renan já tocou com o renomado pianista chinês Lang Lang, com o violonista e compositor brasileiro Yamandu Costa, expoente do violão de sete cordas, com Anitta e Malia. Sem falar nas inúmeras viagens para o exterior para tocar na sede da ONU, em Nova Iorque e em Genebra, na Embaixada do Brasil em Berlim e o Concertgebouw em Amsterdã.

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Muitos dos filhos da elite brasileira não conhecem música clássica e nem tocam o que esses meninos estão tocando. Hoje, eles são a elite cultural

Fiorella Solares
co-fundadora e diretora da ASMB

Aluno de regência do maestro Claudio Cruz, um dos mais atuantes músicos brasileiros da atualidade, Renan não subirá ao palco do Theatro Municipal para reger a Orquestra Sinfônica Jovem do Rio de Janeiro (SJRJ) no concerto Gala de Ópera, no próximo dia 22 de setembro. A regência será do maestro José Soares, regente assistente da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais. Renan não estará à frente da orquestra, mas estará nos bastidores do evento, ajudando a organizar os 55 jovens músicos – todos moradores de comunidades como ele, que vive, com a família, no Morro dos Macacos, em Vila Isabel.

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Além de regente, Renan é professor em vários dos 14 núcleos de aprendizado musical da ONG Ação Social pela Música do Brasil (ASMB) – projeto social que engloba a OSJRJ, residente na PUC-Rio, a Camerata Jovem do Rio de Janeiro e diferentes núcleos de aprendizagem musical, onde são ministradas as aulas de instrumentos de corda (violino, viola, violoncelo, contrabaixo) e de sopro (clarinete, saxofone, trombone, trompete, bombardino), além de prática orquestral, prática de conjunto e teoria musical.

O projeto nasceu em 1994, foi inspirado no modelo venezuelano “El Sistema” e, desde então, é fiel ao legado de José Antônio Abreu, fundador da metodologia — em 2012, ele esteve no Rio e conheceu de perto o núcleo de educação musical no Morro Dona Marta, em Botafogo.

O maestro Renan de Paula rege a Orquestra Sinfônica Juvenil da ASM, na Igreja da Candelária: do Morro dos Macacos para palcos de música clássica no Brasil e na Europa (Foto: Divulgação)
O maestro Renan de Paula rege a Orquestra Sinfônica Juvenil da ASM, na Igreja da Candelária: do Morro dos Macacos para palcos de música clássica no Brasil e na Europa (Foto: Divulgação)

Racismo estrutural

A cena de racismo da qual Renan foi vítima faz parte do dia a dia da maioria dos alunos desse projeto, que usa o ensino coletivo de instrumentos sinfônicos para democratizar o acesso à música clássica. “Quem é afrodescendente está destinado a tocar tambor ou percussão?”, questiona Fiorella Solares, co-fundadora e diretora da ASMB, respondendo que o projeto está justamente quebrando esse paradigma: “Muitos dos filhos da elite brasileira não conhecem música clássica e nem tocam o que esses meninos estão tocando. Hoje, eles são a elite cultural”.

O repertório do concerto Gala de Ópera é a melhor tradução da definição dada por Solares sobre os alunos da ASMB. Os jovens músicos de comunidades carentes do Rio vão acompanhar quatro solistas em árias de óperas de Georges Bizes (Carmen – abertura), Gaetano Donizetti (Don Pasquale – Quel guardo il cavaliere), Giuseppe Verdi (Rigoletto- Ella mi fu rapita) e Carlos Gomes (Ópera Il Guarany – abertura), para citar algumas das 15 peças que serão apresentadas no Municipal. Todos lêem partitura, estudam repertório clássico nacional e internacional e, na maioria das vezes, tocam mais de um instrumento. Alguns dos membros da OSJRJ ingressam na faculdade de Música e costumam passar com louvor no Teste de Habilidade Específica (THE) para a UFRJ e UNIRIO. Muitos seguem carreira na música. Os instrumentos do projeto são fruto de doação.

Antes de entrar no projeto, aos 13 anos, Renan – criado no Morro dos Macacos, comunidade favelada em Vila Isabel, na Zona Norte do Rio – achava que tocar música clássica era “coisa de gente rica”. A igreja que a família frequentava, e onde seu avô Sinésio de Paulo regia o coral, funcionou como uma espécie de iniciação informal no mundo da música. Quando entrou para o projeto, sonhava aprender contrabaixo elétrico, mas teve que se contentar com contrabaixo acústico. Foi amor à primeira vista: “Comecei a me envolver com a música clássica”. Apaixonado por pagode, quer fazer faculdade de música, ambiciona estudar fora e tem um sonho: “Montar uma orquestra com moradores de rua.”

Ao contrário de Renan, que entrou para o projeto com 13 anos, Isabel Rodrigues dos Santos começou a estudar violino com 16 anos – idade considerada avançada para dominar um instrumento que é considerado um dos mais desafiadores entre as cordas clássicas. “Tenho conhecido lugares, festivais, salas e profissionais que eu só conhecia pela televisão, pela internet ou por ouvir falar”, conta.

Reparar desigualdades é o pressuposto do projeto que oferece aprendizado de música clássica dentro da própria comunidade, sem que o aluno precise gastar dinheiro com transporte e a família com os custos de uma escola de música particular — o que seria impossível para a totalidade dos alunos atendidos pela ONG. “Outro ponto, é que o Brasil possui um grande desnível no acesso à educação de qualidade, então as aulas proporcionam mais concentração ao aluno, alimentação dentro do núcleo e um momento de lazer. A partir disso, ele terá mais bagagem, e poderá ir melhor na escola pública. Uma coisa ajuda a outra”, comenta Solares. “E, para finalizar, existe a questão da meritocracia, que só poderia acontecer se todos partissem do mesmo ponto. Através do projeto, podemos levar um aprendizado formal e dar uma chance real para aquele jovem tornar-se um músico profissional.”

Apresentação dos alunos da ASM em uma comunidade do Rio de Janeiro. (Foto: Divulgação)
Apresentação dos alunos da ASM em uma comunidade do Rio de Janeiro. (Foto: Divulgação)

Moradora de Rio das Pedras, Isabel, hoje com 21 anos, tem um sonho: “Meu desejo maior é reconhecer a música como minha profissão, sem planos B, C ou D”, apesar de ser aluna de Serviço Social na UFRJ, onde cursa o sétimo período. Às vésperas da pandemia, entrou para o projeto querendo estudar flauta, mas foi apresentada ao violino, porque o núcleo perto da sua casa não oferecia aulas de instrumento de sopro. Nunca mais saiu e se tornou uma aluna aplicada. O mesmo que aconteceu com Ryam Almeida, de 15 anos, que assim como Renan, mora no Morro dos Macacos. Ele entrou para o projeto e começou a aprender violino, mas gosta mesmo é de clarinete.

Renan, Isabel e Ryan tem algo em comum. Os três moram em comunidade, convivem com o poder paralelo em seus territórios, são alvo de racismo, mas se perguntados sobre compositores que mais gostam preferem divergem: Antonín Dvořák, Aram Khachaturian e Osvaldo Lacerda, respectivamente. 

 

Liana Melo

Formada em Jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ. Especializada em Economia e Meio Ambiente, trabalhou nos jornais “Folha de S.Paulo”, “O Globo”, “Jornal do Brasil”, “O Dia” e na revista “IstoÉ”. Ganhou o 5º Prêmio Imprensa Embratel com a série de reportagens “Máfia dos fiscais”, publicada pela “IstoÉ”. Tem MBA em Responsabilidade Social e Terceiro Setor pela Faculdade de Economia da UFRJ. Foi editora do “Blog Verde”, sobre notícias ambientais no jornal “O Globo”, e da revista “Amanhã”, no mesmo jornal – uma publicação semanal sobre sustentabilidade. Atualmente é repórter e editora do Projeto #Colabora.

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