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O samba, as rodas e o espírito da Casa da Mãe Joana

Tradicionais encontros de celebração se multiplicam pela cidade: mapa mostra 150 rodas de sambas no Rio de Janeiro

ODS 11 • Publicada em 29 de julho de 2025 - 09:01 • Atualizada em 30 de julho de 2025 - 10:05

Eu fui um garoto que, como tantos, amava os Beatles (acima de tudo, os Rolling Stones e outras vertentes do rock and roll com pegada semelhante. O samba foi entrando na minha vida devagar, devagarinho. Já estava na infância, nos discos de Jair Rodrigues dos meus pais. Mas comecei a ouvir mais quando virei jornalista, fui levado pelos mais antigos a quadras de escolas de samba e comecei a cobrir desfiles do carnaval. E era figura fácil nos blocos da Zona Sul quando entrei pela primeira vez na Casa da Mãe Joana, um bar de samba em São Cristóvão, lá pela primeira metade dos anos 1990. Fui atrás de uma moça (nem me lembro qual) e estacionei ao lado da roda de samba, comandada naquela noite, como em outras tantas, por mestre Monarco.

Só os sambas e o vozeirão de Monarco seriam motivo para o programa daquela sexta-feira ser repetido em outras. Mas a roda ainda desfilava um repertório de joias do samba, com músicos de primeiro e participações que tornavam cada noite especial: naquele sobrado de São Cristóvão, vi e ouvi Luiz Carlos da Vila, Guilherme de Brito, Zé Keti, Nei Lopes, Noca da Portela, Roberto Ribeiro. E talvez tenha ouvido outros bambas que, na época, nem conhecia. Alguns eram convidados; outros apareciam sem avisar, surpreendendo Monarco ou quem estava conduzindo o samba. E a roda da Casa da Mãe Joana era cercada de outras coisas boas: cerveja gelada, frequência variadíssima, preços honestos.

Roda de samba na Rua do Ouvidor, no Centro: com mais de 150 rodas, Rio tem samba todos os dias nos mais diferentes espaços (Foto: Oscar Valporto - 14/01/2024)
Roda de samba na Rua do Ouvidor, no Centro: com mais de 150 rodas, Rio tem samba todos os dias nos mais diferentes espaços (Foto: Oscar Valporto – 14/01/2024)

Na Casa da Mãe Joana, o samba me pegou que nem feitiço – “e quando ele pega eu enguiço / só saio quando acabar”, como diz o samba de Toninho Geraes e Paulinho Rezende – e virei freguês do lugar: durante meses, em muitas sextas, chegava tarde e só saía quando acabava. E rodei por outras rodas que, naqueles tempos, não brotavam tanto quanto hoje: no histórico Bip Bip, em Copacabana, no Arcos da Velha, na Lapa, e até no Candongueiro, na distante Pendotiba, em Niterói – uma viagem perigosa para quem dirigia (e bebia).

Também já tinha sido levado ao Cacique de Ramos, onde o pessoal se vangloria até hoje de ter reinventado a roda (de samba), com a criação do tantã por Sereno, do repique de mão, por Ubirany, e do banjo com braço de cavaquinho, introduzido por Almir Guineto, além de uma nova levada de samba no pandeiro, inventada por Bira, Presidente do bloco até sua morte, em junho passado. Mas as rodas nasceram junto com o samba: encontros de sambistas tocando e cantando como já aconteciam na casa da baiana Tia Ciata, registrada pela história como principal berço do samba carioca, lá nos anos iniciais do século 20.

Mas a roda de samba do Cacique ficou famosa porque foram se reunindo em torno da tamarineira da quadra do bloco sambistas como Arlindo Cruz, Jorge Aragão, Sombrinha, Luiz Carlos da Vila, João Nogueira e Zeca Pagodinho. A cantora Beth Carvalho conheceu a turma no fim dos anos 1970, entrou na roda, gravou um disco (De Pé no Chão) com sambas dos frequentadores. Com o sucesso do disco de Beth, foi lançado, em 1980, o primeiro LP do Grupo Fundo de Quintal, formado pelos sambistas da roda do Cacique de Ramos – entre eles, Bira Presidente, Guineto, Aragão e Sombrinha.

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Moacyr Luz e o Samba do Trabalhador: rodas são sucesso em locais fechados ou nas ruas e praças (Foto: Clube Renascença / Divulgação - 02/02/2025)
Moacyr Luz e o Samba do Trabalhador: rodas são sucesso em locais fechados ou nas ruas e praças (Foto: Clube Renascença / Divulgação – 02/02/2025)

Nos embalos da volta da democracia, as rodas foram saindo das quadras de escolas de samba e blocos para ganhar outros espaços e acabar desaguando nas ruas. Quando fui morar na Bahia, em 2008, o Samba do Trabalhador – de Moacyr Luz, no Clube Renascença – já começava a ser referência de roda; o Samba do Ouvidor ocupava a mais carioca das ruas. Oito anos depois, quando voltei, as rodas de samba pareciam estar em todas as ruas, em todas as praças – com aquele espírito de receber pessoas de todas as partes, de todas as idades, de todas as crenças, de todas as classes. Demorei até me atualizar. As rodas enfrentaram com resiliência as restrições da administração Crivella até sermos todos interrompidos pela pandemia.

Abro um parêntesis para dizer que, em qualquer roda, sempre me lembro dos tempos da Casa da Mãe Joana e que um dia qualquer do passado fui pesquisar e descobrir que a origem da expressão, hoje sinônimo de lugar de bagunça, desordem, confusão. A Joana em questão foi uma rainha de Nápoles que lá no século 14, em 1346, fugiu para Avignon, hoje na França, que passou a governar. Lá, entre as coisas, regulamentou o funcionamento dos bordéis – sua lei estabelecida que eles devia ter na porta a indicação: “aqui todos podiam entrar”. As trabalhadoras dos estabelecimentos consideravam a rainha uma mãe; de acordo com os registros históricos, as regras tornaram os lugares não apenas mais democráticos como mais seguros: nada havia de desordem ou bagunça.

Mas os bordéis passaram a ser conhecidas (para o bem ou para o mal) como os palácios da Mãe Joana; em Portugal, paço da Mãe Joana passou a ser um dos sinônimos de prostíbulo e já com a pecha moralista de ser um lugar de confusão – muito provavelmente porque, ao contrário da Avignon sob administração da rainha, esses lugares passaram a ficar a margem da lei e mesmo ilegais. Viraram casa da Mãe Joana, já com esse viés pejorativo, quando a expressão desembarcou no Brasil com os colonizadores.

Roda na Praça Antero de Quental, no Leblon: samba para todos, em todas as partes do Rio (Foto: Oscar Valporto - 17/05/2025)
Roda na Praça Antero de Quental, no Leblon: samba para todos, em todas as partes do Rio (Foto: Oscar Valporto – 17/05/2025)

Volto ao Rio de Janeiro do século 21, depois da pandemia, para testemunhar que as rodas de samba voltaram a ocupar todos os espaços, com vigor renovado. Livre do bispo, a Prefeitura do Rio criou até uma Mapa das Rodas de Samba onde podem ser localizadas pelo menos 150 desses encontros de sambistas profissionais ou amadores. Tem roda todo dia no Rio, de janeiro a janeiro em espaços de todos os tipos. Do Samba do Trabalhador, ainda às segundas, passando pelas rodas do Bip Bip – quase diárias, nem sempre de samba (tem choro e até bossa nova) – até a roda do Cacique aos domingos.

E tem samba nas ruas – do Ouvidor, do Mercado, na Pedra do Sal, na Lobo Júnior, na Francisco Batista. E nas praças: Tiradentes, Harmonia, Russel, Glória, Bandeira, Barão de Drummond, São Salvador. Tem até na minha vizinhança do Leblon: na Sambantero (na Praça Antero de Quental), retomei o hábito de, às sextas-feiras, bater ponto em roda de samba. Aqui, como em outras, pode ter até alguma bagunça mas não tem confusão; e mantém-se o espírito original daquelas casas da Mãe Joana, onde todos podiam entrar, todos podiam chegar.

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