Guardião da utopia etílica

Alfredinho, dono do Bip Bip, o lendário botequim de Copacabana, morre aos 75 anos, após uma vida em defesa da boemia e da boa música

Por Aydano André Motta | ODS 11ODS 8ODS 9 • Publicada em 2 de março de 2019 - 19:01 • Atualizada em 3 de março de 2019 - 20:15

Alfredinho no Bip Bip: socialista inegociável inventou o bar icônico de resistência do samba e do choro. Foto de Paulo Marcos de Mendonça Lima
Alfredinho no Bip Bip: socialista inegociável inventou o bar icônico de resistência do samba e do choro. Foto de Paulo Marcos de Mendonça Lima

O Bip Bip não existe. Só pode estar exilado no reino dos sonhos o lugar onde convívio, alegria e parceria ganham — de goleada — do lucro; tem de ser mentira o botequim sem garçons onde a chave fica com os clientes que, ainda por cima, ajudam de graça na manutenção; é delírio a casa onde artistas de primeira se apresentam sem cachê — e mesmo assim pagam a cerveja.

O endereço é outra ficção. Um par de quarteirões que parece cidade do interior, daquelas bem pequenas, de vizinhos que se cumprimentam pelo nome e visitantes recebidos com gentileza, num cotidiano pacato — o inverso do bairro em volta, o mais frenético da cidade.

Pois é tudo verdade — especialmente a parte mais fantástica dessa história, o Alfredinho, inventor do mítico bar da Rua Almirante Gonçalves, o cantinho sossegado de Copacabana. Inexistem regulamento, manual de instrução, bula, tutorial. O Bip (apelido usado pela família dos habitués) funciona num pacto não escrito, mas firmado e praticado com fervor religioso por todos os seguidores.

Vai uma cerveja? Pois não — é só pegar na geladeira e, na volta, avisar ao Alfredinho, que anota no seu caderno. O bar não tem garçons, apenas o dono, que supervisiona tudo em meio à conversa com os amigos (não chame de cliente, ele se ofende). Faltou dinheiro para a conta? Sem problema. Pode passar outro dia para acertar, porque o projeto do Bip e de seu dono é assim, a conjugação de confiança, fraternidade e gentileza.

E funciona. Numa noite amena da primavera de 2018, ele acabara de abrir quando chegou um rapaz: “Oi, seu Alfredo. Estive aqui ontem, mas faltou pagar um pedaço da conta. Táqui, ó. Muito obrigado”, agradeceu, estendendo R$ 62. Duas semanas depois, um casal de alemães chegou sem dinheiro — os dois haviam sido assaltados no calçadão naquela manhã. “Outro dia vocês pagam”, convidou Alfredo. “Mas nós vamos embora amanhã”. O dono não se apertou: “Podem beber sem problema”. No dia seguinte, quando ele ergueu a porta do bar, havia um envelope no chão com o dinheiro e um bilhete dos visitantes, gratos para sempre.

Cenas assim multiplicam-se à exaustão no Bip, filhas de uma lógica única. Os músicos tocam de graça — chorinho às segundas e terças; bossa nova às quartas; samba aos domingos, quintas e sextas — e os frequentadores mais assíduos cuidam do lugar. Isso mesmo: encarregam-se da limpeza, supervisionam o estoque, abastecem as geladeiras. Quando Alfredo viaja, assumem as funções dele — sem deixar de pagar pelas cervejas que tomam.

Alfredo Jacinto Melo, o popular Alfredinho, no comando do tradicional "Bip-Bip", em Copacabana. Foto Peter Bauza/DPA
Alfredo Jacinto Melo, o popular Alfredinho, no comando do tradicional “Bip-Bip”, em Copacabana. Foto Peter Bauza/DPA

Naqueles poucos metros quadrados de Copacabana, está em construção permanente o que uma palavra fora de moda define: utopia. O Bip Bip é a confraria de pessoas que decidiram ser felizes juntas, no luxo da rotina despojada, de sorrisos e amizades, brindes e afetos, boa conversa e música de qualidade. Atitude, aliás, contagiosa — quem chega, rapidamente se integra ao espírito da casa. E volta.

O mundo real por vezes envia exceções — bissextas, felizmente —, que se aproveitam da hospitalidade e saem sem pagar. Alfredinho até percebe, mas fica por isso mesmo. “Morro de vergonha. Até olho para o outro lado”, comenta. “Seria um constrangimento ir atrás, para cobrar. Deixo pra lá”, confessa, baixando a voz como se contasse um pecado seu.

O Bip se explica na postura de seu dono, a vida inteira. Assumidamente de esquerda (de vez em quando, rola até um discurso no bar), Alfredo Jacinto Melo professa a mais legítima — e virtualmente desaparecida — carioquice, por convicção existencial. Nascido em Santa Cruz, na ponta da Zona Oeste, começou a trabalhar aos 12 anos, numa corretora de fundos públicos, atividade extinta do mercado financeiro. Aos 22, trabalhando com câmbio, comandava 23 funcionários e tinha vida confortável, morando em Cosmos, no subúrbio carioca.

Para atestar que a generosidade vem de longe, Alfredinho construiu mais de 100 casas para amigos e conhecidos, no seu bairro e em Paciência. “Bancava o material e fazia a comida”, relembra. “O pessoal trabalhava e eu cuidava do almoço; angu, feijoada, churrasco… Puxei meu pai nesse hábito de dividir as coisas”, constata, referindo-se a Eustórgio Melo, bicheiro, que teve sete filhos com a dona de casa Maria José.

O dinheiro que ganhou trabalhando com câmbio deu para comprar um apartamento na Souza Lima, em Copacabana, perfeito para a vocação boêmia que sempre teve. Numa madrugada de 1984, Roni Cócegas (comediante de sucesso nos anos 1980) comentou que um bar ali perto, chamado Bip Bip desde a fundação, em 1968, estava à venda. Alfredinho foi lá — e comprou. Um mês depois, adquiriu também a loja onde fica o bar, no térreo de um prédio antigo, típico do bairro.

“Meu plano era fazer um lugar de música”, recorda, lembrando-se dos dias em que ficava por lá, com a amiga Cristina Buarque a acompanhá-lo. Os dois começaram, então, a convidar amigos, como o aclamado violonista Paulão Sete Cordas. A parceira de aventura se encarregou de levar bambas lendários, como Elton Medeiros, Wilson Moreira, Walter Alfaiate. Começaram aí as canjas musicais que ficariam famosas mundo afora. “Tem noite que aqui parece reunião da ONU. Não tem um brasileiro!”, diverte-se.

Aqui, vivo bem, pago todas as contas e ainda socorro uns amigos que eventualmente precisam. Sou viciado em generosidade, graças a Deus

O sistema “pega e anota” viabilizou o bar, que não tem funcionários. A magia do lugar que não existe resolve o resto. Alfredinho fica sozinho por lá, até alta madrugada e — toc, toc, toc — nunca foi assaltado. “Quando vou ao banheiro, deixo o dinheiro aqui em cima e ninguém mexe”, relata, orgulhoso de seu empreendimento. “Na verdade, queria um lugar para tomar minha cerveja e ouvir minha música. Aqui, vivo bem, pago todas as contas e ainda socorro uns amigos que eventualmente precisam”, explica, definindo-se como “viciado em generosidade, graças a Deus”.

Socialista inegociável, Alfredinho liderou, em 2016, grupo animado que passou um mês em Cuba, em viagem que ficou famosa nas redes sociais. Foi a quarta vez na ilha, e uma quinta aconteceria em janeiro de 2019, para os festejos dos 60 anos da revolução liderada por Fidel Castro e Che Guevara. Os ícones da esquerda, aliás, estão em quadros na parede do Bip, ao lado de cartazes pregando “Lula livre”, fotos do ex-presidente uruguaio Jose Mujica, de Marielle Franco (a vereadora e líder comunitária assassinada no Rio em 2018) e de uma constelação da música brasileira, que passou pelo bar: Chico Buarque, Tom Jobim, João Bosco, Moacyr Luz, Aldir Blanc, Clara Nunes, Roberto Ribeiro, João Nogueira, Milton Nascimento…

Famosos e anônimos, cariocas e turistas vêm e vão, e encontram Alfredinho sentado do lado direito da entrada, diante da mesa onde estão o caderno que registra o movimento, uma pilha de CDs e o telefone — fixo; ele não tem celular. O bar abre por volta de 20h e segue aberto até o fim da madrugada, mesmo sem clientes. “Fico aqui lendo, ouvindo música, aproveitando o sossego”, descreve. “Hoje, poucos lugares funcionam até tarde. Uma tristeza ver tudo fechado. O prefeito devia obrigar os bares a ficarem abertos até quatro da manhã. É a vocação histórica da cidade”, reivindica.

Alfredinho resiste em sua rotina entre o Bip e o apartamento da Souza Lima. Já recebeu propostas para abrir franquias de seu bar em São Paulo, Belo Horizonte, Niterói, Juiz de Fora. Todas recusadas. “E para explicar que não quero ficar rico?”, desabafa, num sorriso. “Quero me divertir. E ser anfitrião é muito bonito”, encerra, resumindo sua utopia real — e inestimável.

Publicado originalmente no livro “Guardiões da Alma Carioca” (Editora Parideira Cultural)

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Alfredo Jacinto Melo morreu em casa, na tarde do sábado de Carnaval – como Pixinguinha, na folia de 1973 – por complicações da tireoide.

Aydano André Motta

Niteroiense, Aydano é jornalista desde 1986. Especializou-se na cobertura de Cidade, em veículos como “Jornal do Brasil”, “O Dia”, “O Globo”, “Veja” e “Istoé”. Comentarista do canal SporTV. Conquistou o Prêmio Esso de Melhor Contribuição à Imprensa em 2012. Pesquisador de carnaval, é autor de “Maravilhosa e soberana – Histórias da Beija-Flor” e “Onze mulheres incríveis do carnaval carioca”, da coleção Cadernos de Samba (Verso Brasil). Escreveu o roteiro do documentário “Mulatas! Um tufão nos quadris”. E-mail: aydanoandre@gmail.com. Escrevam!

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