ODS 1
Nos 10 anos de LBI, a luta das pessoas com deficiência por respeito e acessibilidade

Falta de acessibilidade urbana afeta cotidiano de pessoas com deficiência. Desafios afetam também a comunicação e o jornalismo

Santa Maria (RS) – “Duas vezes cheguei em casa com a minha bengala igual a um L, porque as pessoas pisaram em cima e a entortaram”, relata Vera Lúcia Ortiz, 49 anos. A vice-presidente da Associação de Cegos e Deficientes Visuais (ACDV) de Santa Maria participava de uma oficina de artesanato quando cheguei à sede da entidade. Após a conversa sobre os 10 anos da Lei Brasileira de Inclusão (LBI) e os desafios enfrentados por pessoas com deficiência, volto ao centro da cidade e a falta de acessibilidade se materializa em diversos buracos e barreiras nas calçadas.
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Cega há 25 anos, Vera faz parte da ACDV desde a sua fundação, em 2002. Segundo ela, a entidade atua principalmente como um espaço de acolhimento e socialização. Além das oficinas de artesanato, a associação oferece capacitações de culinária e de informática, além de aulas de braile. Vera me conta que, atualmente, evita andar de transporte público e no centro da cidade, justamente pela falta de acessibilidade urbana.
“Os candidatos deviam colocar nas suas campanhas que não querem votos de PcDs e nem dos familiares deles”, desabafa Neli Fraga Ferraz, 75 anos, professora aposentada. Por ter miopia, ela usa um cordão de girassol que identifica deficiências ocultas. Para Neli, se houvesse um ranking de cidades menos acessíveis, Santa Maria estaria – pelo menos – entre as três primeiras.
Uma das principais reclamações tanto de Neli quanto de Vera é com relação a ausência de piso tátil em muitos locais e a falta de respeito em outros. “Tem alguns prédios novos que a pessoa com deficiência vai bater com o rosto na parede”, descreve Neli, sobre as construções que invadem as calçadas já estreitas.
Para a professora aposentada, a LBI não trouxe grandes avanços nos últimos dez anos. “Se houvesse uma mudança efetiva, começava lá na lei da acessibilidade que é de 2000”, pontua Neli, sobre a Lei nº 10.098/2000 que estabelecia normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade no Brasil.
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A realidade observada pelas participantes da ACDV não é exclusiva de Santa Maria. Dados do Censo 2022 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) revelam que dois em cada três brasileiros vivem em ruas sem rampas para usuários de cadeiras de rodas, o que representa 119,9 milhões de pessoas (68,8% da população). Além disso, 84% afirmam encontrar obstáculos nas calçadas onde moram.

A LBI para a comunidade surda
Professora de Libras (Língua Brasileira de Sinais) na Unipampa, Keli Krause aponta que a LBI forma uma das bases do tripé da luta comunidade surda por cidadania e inclusão no Brasil, junto com a Lei da Libras de 2002 e o Decreto 5.626/2005 que a regulamentou. “A LBI reforçou os direitos linguísticos, à educação bilíngue em Libras e português, à presença de intérpretes de Libras, bem como o acesso à informação, à cultura, à justiça e aos serviços de forma igualitária”, acrescenta a docente surda. Keli lista alguns avanços e desafios enfrentados nos últimos dez anos, como:
- Aumento da presença de intérpretes de Libras em escolas, universidades, eventos públicos e repartições públicas. Ainda assim, o número desses profissionais é insuficiente, especialmente, em empresas e no ensino básico, além de serem mal distribuídos entre cidades e instituições;
- Reconhecimento e valorização da Libras como primeira língua da comunidade surda, com incentivo à educação bilíngue, além de maior visibilidade da cultura e identidade surda, com mais participação em espaços acadêmicos, culturais e políticos;
- Criação de centros de educação bilíngue para surdos, como previsto pela Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Apesar disso, a oferta de escolas bilíngues ainda é limitada e sofre resistência por parte de alguns sistemas educacionais;
- Formação de professores surdos e intérpretes, ampliando a presença de profissionais qualificados, por exemplo, em eventos culturais e nos meios de comunicação.
Para Keli Krause, o marco de dez anos da Lei Brasileira de Inclusão deve ser um momento de reflexão crítica, principalmente com relação à sua aplicação desigual. Sobre isso, a professora da Unipampa menciona a ausência de políticas públicas específicas voltadas tanto para surdos sinalizantes quanto para surdos usuários de outras línguas, como as línguas de sinais indígenas, além de barreiras atitudinais e do preconceito linguístico. “A luta continua sendo por uma inclusão verdadeira, que respeite a língua, a cultura e a diferença”, ressalta ela.
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Comunicação e jornalismo
Após ficar tetraplégico em 2011, Rafael Carpi começou a pesquisar sobre direitos das pessoas com deficiência e lançou o site Jornalista Inclusivo em 2020. Pensado com foco na acessibilidade, o portal conta com diversas ferramentas assistivas, como aumentar o tamanho de letra, escala de cinza, máscara de leitura, contorno de foco, entre outras. Porém, essa não é a realidade da maioria dos sites na internet.
Pesquisa feita pela BigData Corp, principal empresa de coleta de dados da América Latina, em parceria com o Movimento Web para Todos (WPT), avaliou 26,3 milhões de sites ativos no Brasil em 2023. Apenas 2,9% foram aprovados em todos os testes de acessibilidade. Na LBI, o capítulo II trata do “acesso à informação e comunicação” e estabelece que “é obrigatória a acessibilidade nos sítios da internet mantidos por empresas com sede ou representação comercial no país ou por órgãos de governo”.
“Praticamente não temos quase nenhuma emissora de rádio e televisão ou sites cumprindo o que a legislação pede”, aponta Marco Bonito. O professor menciona o exemplo do telejornalismo brasileiro, em que apenas canais públicos, como a TV Cultura e a EBC (Empresa Brasileira de Comunicações) cumprem requisitos básicos, como inserção de janela de Libras (Língua Brasileira de Sinais), audiodescrição e legenda para surdos e ensurdecidos (LSE).
Em suas pesquisas acadêmicas, Marco defende a acessibilidade comunicativa, conceito que se refere a produção de conteúdos com acessibilidade, desde a pré-produção e com a participação de consultores com deficiência. O mesmo vale para o desenvolvimento de sites e aplicativos, por exemplo, para acesso a serviços básicos e benefícios sociais. “A população de pessoas idosas vai ser maior daqui para frente e essas pessoas vão ter mais deficiências, então os aplicativos e os sites do governo vão precisar ter acessibilidade plena”, alerta o docente.
Para Rafael Carpi, a acessibilidade é, sobretudo, uma questão de respeito com as pessoas com deficiência, principalmente, no jornalismo que pretende informar e comunicar. “Quando se trata de marketing, para dizer ‘a minha empresa é inclusiva’, é uma coisa. Agora quando chega no jornalismo…, você quase não encontra sites de notícias que são realmente acessíveis para pessoas cegas ou para pessoas surdas”, critica o jornalista.
No #Colabora, estamos em diálogo com os responsáveis pelo desenvolvimento do nosso site para implementar recursos de acessibilidade, além de buscar parcerias com intérpretes de Libras para a tradução de reportagens.
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Micael Olegário
Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Escreve sobre temas ligados a questões socioambientais, educação e acessibilidade.