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Verão, o nosso inv(f)erno

Estação associada ao lazer e à praia produz suplício para a população do Rio, que sofre com o descaso e a incompetência de autoridades e empresários

ODS 11ODS 13 • Publicada em 21 de fevereiro de 2025 - 06:10 • Atualizada em 21 de fevereiro de 2025 - 20:14

Na madrugada desta sexta-feira (21), a temperatura bateu -13°C (mas sensação térmica de -15°C) em Moscou. Em Berlim, atingiu -1°C, com geada e muitas superfícies cobertas de gelo, potencializando o risco de acidentes. Do outro lado do Atlântico, Nova York sofreu com nevascas e mínima de -6°C, nova jornada sofrida numa temporada de frio extraordinariamente rigoroso.

Leu essa? Calor fatal, no país que mata

São metrópoles, ao mesmo tempo opostas e iguais a uma outra, onde a população também paga pecados que não cometeu pela brutalidade da estação: o Rio de Janeiro. No caso carioca, pelo verão de parâmetros apocalípticos que assola a cidade nas últimas semanas, com temperaturas acima dos 40°C, turbinadas por sensação térmica até 20 graus superior.

As duas estações, inversas no calendário e nas características, se assemelham pelo que causam aos viventes. Como o inverno, verão maltrata, adoece e mata. Mas diferentemente da temporada de frio, não carrega o mesmo status, em especial nestes trópicos ferventes. Frio e neve são associados a precauções e cuidados, proteções e socorros; sol e calor se conectam a lazer, férias, alegria, beleza, pele bronzeada, sensualidade.

Trem que descarrilou em Magé: trilhos a mais de 71°C. Foto reprodução

Nesta quinta-feira (20), a temperatura oficial na terra carioca marcou a máxima de 40,1°C (segundo a rede Alerta Rio), com a umidade relativa do ar em mirrados 32%, acentuando o desconforto. O mesmo sistema aferiu 44°C na última segunda-feira. Fevereiro se aproxima da sua derradeira semana com quase nenhuma chuva, típica da estação em outros tempos, na região metropolitana fluminense.

(Para surpresa de zero pessoas minimamente informadas, os eventos extremos, de frio e calor, são consequência da catástrofe climática na qual os humanos meteram o planeta. O desequilíbrio só piora o cenário, e o contra-ataque está demorando perigosamente demais. A espécie dominante da Terra está, como se dizia antigamente, brincando com a sorte.)

Somente nos primeiros 15 dias do mês, a Secretaria de saúde carioca registrou mais 2,4 mil atendimentos médicos relacionados ao calor, especialmente de queimaduras por exposição ao sol e desidratação em gradações variadas. Na rede estadual, o Samu aferiu crescimento de 45% nos chamados (metade deles de idosos) na capital entre os dias 10 e 16.

Por iniciativa da secretária de Meio Ambiente, Tainá de Paula, a prefeitura do Rio criou sistema de alerta para os níveis de calor. Às 12h35 da segunda-feira (17), a cidade atingiu o nível 4 da escala, que vai até 5. O status detona uma série de procedimentos, como indicação de pontos de resfriamentos, oferta de hidratação ou distribuição de água, e cancelamento ou reagendamento de eventos de médio e grande porte ou megaeventos em áreas externas.

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Mas é pouco. O sol impiedoso ilumina também a irresponsabilidade dos agentes públicos e de empresários gananciosos, que desprezam criminosamente os perigos da estação. Os exemplos se multiplicam à exaustão, atestando o descaso e a imprevidência dos prestadores de serviços e os responsáveis pelo bem estar da população. A frieza da falta de empatia sobrevive sem dificuldade em meio à canícula.

As barbaridades atingem, brasileiramente, os mais vulneráveis, em novos episódios de racismo ambiental. Essa semana, a Águas do Rio, concessionária em boa parte do estado, deixou 37 (T-R-I-N-T-A E S-E-T-E) bairros da capital – todos no subúrbio – a seco, em nome de um reparo na rede. O fornecimento levou 72 escaldantes horas para se normalizar. Várias comunidades populares ficam cotidianamente sem energia, pela incompetência de outra concessionária, a Light. Para os pobres, nem ventilador, porque falta onde ligar.

As favelas, claro, sofrem ainda mais, com habitações sem espaço e alta densidade populacional. O jeito é ficar fora de casa, em busca de temperatura menos alta ao ar livre. Seus habitantes, aliás, são também as maiores vítimas de barbeiragem que virou tradição carioca, como o ágio nos preços para turistas ou os taxistas piratas da rodoviária: a falta de refrigeração nos ônibus. Em pleno 2025, o principal transporte público para atender aos 13,5 milhões de habitantes do Grande Rio ainda utiliza muitos veículos sem ar condicionado. Pior: alguns que deveriam estar climatizados circulam com o equipamento quebrado, mas de janelas lacradas, transformando-se numa câmara de tortura sobre rodas. Crime hediondo.

As empresas concessionárias do serviço seguem impunes, sofrendo apenas com as bravatas e parolagens dos inquilinos de cargos públicos. O assunto só aparece na alta estação, quando não há como consertar o que está errado. Quando a temperatura baixar, a bandalheira cairá no esquecimento, até o próximo verão, que verá o retorno do suplício de passageiros e motoristas, numa ciranda eterna e cruel.

Refrigeração em todos os lugares é tão imprescindível, no verão do Rio, como a calefação nas geladas cidades do Hemisfério Norte. Mas o controle artificial da temperatura em lugares fechados continua sendo tratado como luxo de quem pode pagar. Os postos de atendimento do Detran (responsabilidade do governo estadual) não têm ar condicionado. Clientes sofrem nas filas, alguns passam mal. Os ventiladores, comprados pelos funcionários do próprio bolso, são impotentes para tourear o calorão.

O descaso brota da resposta dos comandantes do órgão. Licitação iniciada em abril passado – comecinho do outono – para adquirir aparelhos de ar condicionado ainda não foi concluída. Agora, diante da exposição constrangedora da incompetência, prometeram uma “compra emergencial”. Cai quem quer.

Chapéus e até casacos para mitigar o efeito do sol de verão no Rio. Foto Fernando Frazão/Agência Brasil

A temporada de frio nos países temperados deveria servir de exemplo para reformar consciências e atitudes. Na França, por exemplo, vigora a Trégua de Inverno – ninguém pode ser despejado de casa entre novembro e março, determina lei aprovada em 1954. Nem falta de pagamento faz o inquilino perder o abrigo contra o frio. Humanidade e empatia acima do dinheiro, pequena vitória contra o capitalismo. Na madrugada da sexta-feira, fez 6°C em Paris.

Falta, sobretudo, respeito à estação. Ainda é muito mais comum do que deveria, por exemplo, imagens de praias lotadas para ilustrar reportagens sobre o calorão. Mesmo com acontecimentos como o descarrilamento de um trem na tarde da quinta-feira (20) em Magé, na Baixada Fluminense. Segundo a SuperVia, (péssima) concessionária do transporte ferroviário, o motivo do acidente foi “a dilatação dos trilhos, devido à alta temperatura na via-férrea, que atingiu 71°C, provocando a flambagem”, do equipamento. Não houve feridos, por sorte.

Poderia ser cena de filme-catástrofe, mas é a vida real do Rio de Janeiro, onde pipocam evidências, cada vez mais surreais, de que a chapa está quente demais.

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