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Vício brasileiro da ganância acelera crise climática

Mortes como a da fã de Taylor Swift, no calor extremo, ensinam que a humanidade está num mundo novo e quem não aprender vai pagar ainda mais caro

ODS 13ODS 15 • Publicada em 24 de novembro de 2023 - 00:26 • Atualizada em 27 de novembro de 2023 - 10:09

Meninos do sub-13 do Vasco saúdam o público, após a vitória sobre o Fluminense: sensação térmica superior a 50 graus. Foto Betinho Júnior/Divulgação
Meninos do sub-13 do Vasco saúdam o público, após a vitória sobre o Fluminense: sensação térmica superior a 50 graus. Foto Betinho Júnior/Divulgação

Era o primeiro jogo da final da Taça Rio do Campeonato Metropolitano, categoria sub-13, entre Vasco e Fluminense. Crianças que acalentam (com suas famílias) o sonho de chegar ao olimpo do futebol profissional pisaram o campo do Estádio Nivaldo Pereira, do Artsul, em Nova Iguaçu, Baixada Fluminense, às 9h da manhã do sábado (18) sob sensação térmica superior a 50 graus. O Vasco venceu por 2 a 0 – mas todo mundo perdeu.

Leu essa? Colapso ambiental gigantesco

Meninos foram submetidos a condições desumanas para jogar futebol, no calor surrealista que se abateu sobre o Rio e o Brasil. Vários se sentiram mal; um, que vomitou, e outro, com mal-estar pesado, precisaram ser substituídos. Adultos, na plateia, também tiveram náuseas. Mas a partida terminou – por volta de 11h, com sol quase a pino – e o resultado valeu.

Segue o jogo no Brasil da crise climática.

A disputa matinal ocorreu poucas horas depois de a estudante mato-grossense Ana Clara Benevides, 23 anos, morrer, durante o show da americana Taylor Swift, no Estádio Nilton Santos, Zona Norte do Rio. A jovem passou horas sob sol, na grade próxima ao palco, até desmaiar. Ela sofreu uma série de pequenas hemorragias no pulmão, após uma parada cardiorrespiratória, não resistiu.

Em verdade, Ana Clara morreu de Brasil, vítima da ganância obsessiva e endêmica neste rincão ensolarado da Terra. Como ocorre em todos os eventos do tipo, não havia distribuição de água – apenas venda, a preços escorchantes -, tampouco era permitido entrar portando recipientes com o líquido. Tem que vender, maximizar o lucro, embolsar o máximo.

A TF4, organizadora dos shows, ainda teve o descaramento de, à la Enel, culpar o clima pelo sufoco do público. Dono da empresa, o cidadão de bem Fernando Alterio escondeu-se nas alegações esfarrapadas do mundo corporativo. Noves fora o verniz das assessorias, imitou os donos de quiosques que viraram cenas de crimes na Barra. Tanto o que continuou aberto, com o corpo do congolês Moïse Kabagambe, espancado até a morte, bem ao lado, como o do assassinato dos três médicos, no qual sequer a mesa com marcas de bala foi retirada.

Porque entre a vida e o lucro, os brasileiros – todos, mas os ricos em especial – nem piscam. A história está lotada de ocorrências e tragédias que evidenciam a patologia. Agora, para piorar, funciona como acelerador da crise climática instalada no mundo.

Como sempre deve haver lugar para a poesia, o planeta está como os versos de Lulu Santos e Nelson Motta: “Nada do que foi será/ De novo, do jeito que já foi um dia”. Ou, nas palavras de ambientalistas como o biólogo Mário Moscatelli. “Todas as previsões para 100 anos à frente estão acontecendo em 30 anos. Tudo que antes era catastrofista e pessimista parece otimista agora. O futuro foi semana passada”, constata. Portanto, rigorosamente todo mundo terá que mudar junto, para melhorar o cenário – e não fracassar individualmente.

Chegam a algumas dezenas os mortos por eventos climáticos extremos no Brasil em 2023, entre eles os 65 das enchentes no litoral paulista, em fevereiro, e os 50 no ciclone que arrasou o Rio Grande do Sul, em outubro. Cada encosta ocupada desordenadamente, por ganância ou descaso, nas grandes cidades do país terá potencial de fazer mais vítimas. Não no porvir; agora.

Ondas de calor como a que vitimou a fã de Taylor Swift virão, cada vez mais intensas e numerosas. Os especialistas, aliás, avisam que o aquecimento do Pacífico, por causa do El Niño, mal começou, sinalizando com novos períodos de clima extremo. Deixou de ser futurismo, tampouco parolagem progressista, mas somente a vida real.

Tem aprendizado de sobra para absorver. Os parâmetros de concessionários de serviços essenciais, como a criminosa Enel, precisarão mudar – e, o mais difícil, prescindir de uma parte dos dividendos que garantem o gozo dos executivos. Sobreviver na Terra do clima inóspito exigirá mudanças que causam urticária nos engravatados: muito mais investimentos, responsabilidade social e generosidade, além de menos mesquinharia e apego a planilhas – para começo de conversa.

(Por falar na multinacional de energia, depois de São Paulo, Niterói, São Gonçalo, Petrópolis e Paraíba passaram longos períodos sem luz. E nesta quinta-feira, o apagão se abateu sobre Paraty, inviabilizando o primeiro dia da maior festa literária do país, na cidade do litoral sul fluminense. Pororoca de vexames da Enel.)

Ônibus no Rio: fornos sobre rodas, na batida ausência de refrigeração. Foto: Frédéric Soreau/ Photononstop
Ônibus no Rio: fornos sobre rodas, na batida ausência de refrigeração. Foto: Frédéric Soreau/ Photononstop

Na esfera pública, as mudanças são ainda mais urgentes. O Ministério do Meio Ambiente precisa virar o mais importante, e todo o status que tem, no governo Lula, se deve à biografia de Marina Silva na luta ecológica. Justiça, Fazenda, Educação e Saúde seguem na frente em termos políticos e, sobretudo, orçamentários. O mesmo cacoete se espraia por estados e municípios.

Falta, entre tantos outros, o entendimento urgente no Brasil de que o calor extremo é tão mortal como o frio no mesmo patamar. Só não é visual, não tem algo como a neve para mostrar o perigo (e a mídia precisa desembarcar da associação anacrônica com a praia, o lazer). Mata igualzinho.

Aqui, agrava-se o velho crime de cidades como o Rio de Janeiro, de não ter refrigeração nos transportes públicos. O delito tem agentes – os donos das empresas concessionárias – e cúmplices – os inquilinos de cargos como a Prefeitura, acomodados na lengalenga das negociações estéreis. A Justiça também está obrigada a cumprir seu papel e punir a longeva leviandade.

Chegou um mundo novo e pior. Resistir a se adaptar custará vidas e recursos. Passou da hora de aprender – e aceitar.

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