Justiça climática sem dinheiro, mas com apoio global

Aumentar financiamento climático e restaurar confiança entre os países, especialmente no Sul Global, são legados que Brasil herdou para COP30

Por Liana Melo | ODS 13 • Publicada em 16 de dezembro de 2024 - 08:29 • Atualizada em 17 de dezembro de 2024 - 09:34

Ativistas cobram compromisso financeiros dos países desenvolvidos na COP29. (Foto: UFNCC/ Flickr)

A 29º Conferência das Partes das Nações Unidas foi uma “flagrante violação da justiça climática” na visão dos países em desenvolvimento, que consideraram o financiamento climático aprovado em Baku “um insulto”. A COP29, que terminou há pouco menos de um mês na capital do Azerbaijão, ainda eximiu a responsabilidade dos países ricos no enfrentando da crise climática, especificando apenas no documento final que esse conjunto de nações ocupará um papel importante na “dianteira” dos esforços.

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Esse foi o legado que o Brasil herdou da COP29 – um imbróglio diplomático que terá que ser resolvido em Belém (PA), onde se realizará, no próximo ano, a COP25. De Baku a Belém, o país terá uma tarefa espinhosa pela frente, nos próximos meses: nada mais, nada menos, que aumentar o financiamento climático e restaurar a confiança entre os países, especialmente os do Sul Global, no multilateralismo. A conferência foi marcada por acordos multilaterais fracos para a mitigação e praticamente nenhum para adaptação. Para complicar ainda mais o cenário, a expectativa é de que o presidente recém eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, repita, ao tomar posse em janeiro próximo, o que fez no primeiro mandato: retire o país das negociações climáticas, podendo chegar a sair do Acordo de Paris.

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Em um ano que deve terminar como aquele considerado um dos mais quentes da história, com eventos extremos espalhados por todos os lados, a COP29 foi apontada como uma das conferências mais difíceis e frustrantes da história das COPs. Os países desenvolvidos ainda questionaram o princípio das Responsabilidades Comuns, Porém Diferenciadas, um dos pilares da Convenção do Clima, acordado há 32 anos, na Rio 92. Foi um encontro marcado por grandes impasses e muita tensão, tendo chegado mesmo bem perto de implodir. Ainda assim, os protestos foram apenas registrados no relatório final e não chegaram a mudar o jogo.

Guerra dos mundos

Não à toa, as avaliações finais em torno da conferência oscilaram de fracasso a desastre. Entre as organizações e ativistas da justiça climática, a COP29 foi um “retrocesso” retumbante, como resumiu Teresa Anderson, liderança global em justiça climática pela ActionAid Internacional: “Foi uma profunda decepção e uma traição ao Sul Global, dado que os valores de justiça climática ficaram ausentes do acordo final”.

Foi uma profunda decepção e uma traição ao Sul Global, dado que os valores de justiça climática ficaram ausentes do acordo final

Teresa Anderson
liderança global em justiça climática pela ActionAid Internacional

A “COP das finanças”, como ficou conhecida a COP29, aprovou US$ 300 bilhões anuais para o financiamento climático até 2035 — um valor que não chega nem a repor as perdas inflacionárias em relação à meta anterior (de US$ 100 bilhões), definida em 2015, para vigorar entre 2020 e o próximo ano. E ainda é muito aquém dos US$ 1,3 trilhão reivindicados pelos países em desenvolvimento — esse montante entrou no documento final apenas como uma meta a ser atingida, só que como toda meta, a NCQG, sigla em inglês do termo Nova Meta Qualificada Coletiva, pode ou não ser alcançada.

Ativistas reunidos na COP29. (Foto: Flickr/ UNCC)
Ativistas reunidos na COP29. (Foto: Flickr/ UNCC)

“Essa lacuna reflete a falta de alinhamento político e financeiro entre os países, especialmente no que diz respeito à responsabilidade histórica dos países desenvolvidos”, critica Taynara Gomes, coordenadora de pesquisa do Centro Brasileiro de Justiça Climática. Sua parceira no CBJC, Anne Heloise, coordenadora de educação climática, complementa: “Essa insuficiência financeira impacta diretamente a justiça climática, pois populações historicamente vulnerabilizadas — como mulheres, crianças, jovens, comunidades negras, indígenas e ribeirinhas — ficam desamparadas em seus esforços de adaptação e mitigação”.

Essa insuficiência financeira impacta diretamente a justiça climática, pois populações historicamente vulnerabilizadas ficam desamparadas em seus esforços de adaptação e mitigação

Taynara Gomes e Anne Heloise
pesquisadoras do Centro Brasileiro de Justiça Climática

A conclusão a que as duas chegaram é óbvia. Sem financiamento adequado, essas comunidades, como se viu, por exemplo, nas chuvas que devastaram bairros de maioria negra no Rio Grande do Sul, não conseguem fortalecer suas infraestruturas, proteger seus territórios e reconstruir suas vidas, aprofundando ciclos de desigualdade e violações de direitos humanos.

Vamos aos números: ao dividir os US$ 300 bilhões aprovados na COP29 pelo conjunto de 45 países que fazem parte da lista dos mais vulneráveis à crise climática, caberia a cada um deles algo como US$ 6,6 bilhões anuais. Cálculos iniciais apontaram que, após a enchente histórica, o Rio Grande do Sul precisará de R$ 100 bilhões, algo como US$ 17 bilhões, para mitigar o estrago causado pelas chuvas torrenciais.

As críticas a COP29 não param por aí. Outro retrocesso apontado por Taynara e Anne é a ausência de políticas específicas para as populações afrodescendentes. “Essas agendas são pilares da justiça climática, mas ficaram em segundo plano ou foram diluídas, evidenciando uma falta de compromisso com uma abordagem interseccional e inclusiva”.

Como o tema já foi mencionado publicamente pela ministra Marina Silva, do Meio Ambiente e Mudança do Clima do Brasil, como prioritário, será mais um assunto a pesar sobre os ombros do Brasil em Belém. Em outubro último, durante a Conferência das Nações Unidas sobre Biodiversidade, COP16, em Cali, na Colômbia, a ministra afirmou: “Os povos indígenas e as comunidades tradicionais, que incluem os coletivos de povos afrodescendentes, são os verdadeiros guardiões dos nossos ecossistemas.”

Pouco recurso e mais dívida

Não bastasse o financiamento climático ter sido considerado “um insulto”, os recursos aprovados na COP29 serão uma combinação de dinheiro público com mecanismos de empréstimo.  Ou seja, na ponta do lápis, poderá levar os países em desenvolvimento a arcar ainda mais com um aumento considerável da sua dívida externa.

Apesar de considerar que o resultado político da conferência foi “decepcionante”, ao contrário do que se imagina, não enfraqueceu o movimento pela justiça climática.  Ao contrário.  A pressão mundial vai continuar: “A luta pelo financiamento climático e a luta para responsabilizar os países ricos continuarão a ser centrais nas negociações climáticas e no ativismo climático nos próximos anos”, defende Teresa, da ActionAid Internacional.

Ativistas silenciados na COP29, em Baku. (Foto: UFNCC/ Flickr)
Ativistas silenciados na COP29, em Baku. (Foto: UFNCC/ Flickr)

Caso os países ricos não estejam mesmo dispostos a fornecer financiamento climático, como sinalizaram em Baku, deveriam, sustenta ela, ao menos cancelar as dívidas dos países do Sul Global: “O cancelamento da dívida abriria espaço fiscal para esses países desencadearam suas ações climáticas”.

A defesa pelo perdão da dívida foi, inclusive, um dos apelos feitos por Papa Francisco, quando, no começo do ano, ele anunciou o Jubileu 2025 – um dos mais significativos eventos do calendário católico. “Os movimentos climáticos e de justiça econômica em todo o mundo devem se juntar ao apelo dos líderes religiosos globais para que 2025 seja o ano do perdão generalizado da dívida”, defende Teresa, acrescentando que, essa decisão, daria um alívio à vida das pessoas que estão na linha de frente da crise climática.

Protesto em silêncio

Pela primeira vez na história das COPs, a tradicional Marcha pelo Clima foi proibida em Baku. Ativistas e representantes da sociedade civil foram silenciados. A censura obrigou a todos a protestarem em completo silêncio. No plenário da conferência, que terminou no último domingo de novembro, era possível ouvir o som gutural que saía da boca fechada dos manifestantes: “pay up”, palavra de ordem também nos cartazes expostos pelos ativistas.

O fracasso de não termos atingido o valor de US$ 1,3 trilhão anuais para o Acordo de Paris e para a nova metal global até 2035, significa um fracasso para implementar a adaptação climática global necessária para eliminar as desigualdades resultantes do processo de carbonização dos países

Diosmar Filho
pesquisador da Associação de Pesquisa Iyaleta

O géografo Diosmar Filho, pesquisador sênior e líder da linha de pesquisa “Desigualdade e Mudanças Climáticas” na Associação de Pesquisa Iyaleta, costuma dizer que a justiça climática é “uma boa utopia”. Mas, na prática, defende  necessário atacar mesmo são as desigualdades: “O fracasso de não termos atingido o valor de US$ 1,3 trilhão anuais para o Acordo de Paris e para a nova metal global até 2035, significa um fracasso para implementar a adaptação climática global necessária para eliminar as desigualdades resultantes do processo de carbonização dos países”.

Para Diosmar, a falta de recursos para cuidar dos grupos vulneráveis aprofunda as desigualdades preexistentes da carbonização. A Iyaleta é uma instituição de pesquisa com foco em adaptação climática, justiça de gênero e saúde, voltada para as regiões Norte e Nordeste do país, regiões com recursos mais escassos para enfrentar a crise climática. Mecanismos como o Fundo de Perdas e Danos, ainda que restem dúvidas sobre sua implementação, e o avanço do mercado de carbono durante a COP29, foram passos importantes, mas ainda insuficientes para atender as enormes demandas mundiais da agenda da justiça climática.

Rumo a COP30

A inação observada na COP29 transfere uma enorme carga de responsabilidade para a presidência brasileira na COP30. Muitas das agendas que deveriam ter avançado foram adiadas, colocando uma pressão significativa sobre o Brasil para garantir progressos reais. Essa transferência de responsabilidade, no entanto, também representa uma oportunidade para reverter retrocessos, alinhar compromissos e centralizar as vozes das comunidades mais afetadas. O desafio será enorme, mas essencial para que a justiça climática seja realmente incorporada como eixo central das negociações climáticas.

“Não existe justiça climática sem justiça racial. Não se trata apenas de reconhecer essas pautas como relevantes, mas de torná-las centrais e vinculativas nos compromissos climáticos”, defende Taynara e Anne, comentando que pelo fato da maior parte da população brasileira ser composta por grupos vulnerabilizados que não se pode avançar em acordos, protocolos e destinação de recursos sem adotar uma agenda interseccional. “A justiça climática depende dessa mudança de paradigma: de incluir não apenas vozes, mas também saberes, práticas e vivências, como protagonistas no enfrentamento da crise climática”, concluíram.

Ativistas cobrando as promessas para a COP30. (Foto: UNFCCC/ Flickr)
Ativistas cobrando as promessas para a COP30. (Foto: UNFCCC/ Flickr)

Liana Melo

Formada em Jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ. Especializada em Economia e Meio Ambiente, trabalhou nos jornais “Folha de S.Paulo”, “O Globo”, “Jornal do Brasil”, “O Dia” e na revista “IstoÉ”. Ganhou o 5º Prêmio Imprensa Embratel com a série de reportagens “Máfia dos fiscais”, publicada pela “IstoÉ”. Tem MBA em Responsabilidade Social e Terceiro Setor pela Faculdade de Economia da UFRJ. Foi editora do “Blog Verde”, sobre notícias ambientais no jornal “O Globo”, e da revista “Amanhã”, no mesmo jornal – uma publicação semanal sobre sustentabilidade. Atualmente é repórter e editora do Projeto #Colabora.

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