A tecitura de memórias pelas mãos das Rendeiras de Bilro da Vila de Ponta Negra

A produção da renda é uma prática de turismo de base comunitária na cidade de Natal, no Rio Grande do Norte

Por Ana Rafaella Oliveira | ODS 8 • Publicada em 26 de dezembro de 2023 - 08:52 • Atualizada em 7 de janeiro de 2024 - 15:45

Coleção Ginga, criada pelas Rendeiras de Bilro da Vila de Ponta Negra. Foto Paulo Lucena

Produzir a renda de bilro é considerada uma prática tão antiga quanto a pesca no Nordeste, já que ambas caminham juntas com a própria história do Brasil. E como dizem as participantes da Associação das Rendeiras de Bilro da Vila de Ponta Negra, na cidade de Natal, no Rio Grande do Norte, “onde tem rede, tem renda”.

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Preservar a memória e a contribuição dessas mulheres para a cultura potiguar é um dos objetivos da associação que já existe há mais de vinte anos, embora somente em 2019 tenha sido formalizada. Com sede no bairro que abriga a Praia de Ponta Negra e o Morro do Careca, uma das áreas mais visitadas na capital, essa organização reúne cerca de 90 rendeiras cadastradas e um número um pouco menor atuando ativamente, já que muitas são idosas ou trabalham também com outras atividades.

São diversas horas de dedicação à produção de uma peça que conta a história de suas artesãs, pois, muitas rendeiras aprenderam a técnica ainda na infância, com suas mães, como um meio de complementar a renda familiar. Mas ainda hoje, elas enfrentam desafios para que os produtos tenham o seu valor simbólico reconhecido.

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Foi essa, inclusive, a motivação de Vó Maria, como é conhecida a rendeira e mestre Maria de Lourdes de Lima, e do seu filho Joca Lima, para a criação da associação. Ambos percebiam que a técnica já não despertava o interesse dos mais jovens e que faltava formalização para as rendeiras. Assim, passaram a reunir algumas amigas da artesã, semanalmente, para rendar na frente do seu restaurante, a Tapiocaria da Vó, e a ensinar a técnica a quem tivesse interesse. No espaço, além de abrigar as tradicionais almofadas usadas para o trabalho, há uma pequena loja para que as produções possam ser comercializadas.

A rendeira e mestre Vó Maria, criadora do espaço. Foto Paulo Lucena
A rendeira e mestre Vó Maria, criadora do espaço. Foto Paulo Lucena

A renda é produzida numa almofada cilíndrica que é preenchida com folhas secas de bananeira e fica suspensa por um suporte de madeira. A artesã senta-se em frente ao equipamento, onde fixa o papel com os desenhos da renda com o auxílio de alfinetes. Assim, segue entrelaçando as linhas presas aos bilros. Ali, com suas mãos hábeis, elas produzem itens de vestuário e de decoração. Ao longo dos anos, foram responsáveis por criar um design local, genuinamente potiguar, uma composição de cruzamentos e tramas produzidas apenas nessa região.

Para Maria Segunda Nascimento, designer e mestre de rendas da associação, o que faz o design que elas criam ter uma identidade potiguar é a elaboração de novos pontos e junções, que representam toda a sua história, dedicação e amor. Ela aprendeu a rendar quando era criança e morava com a avó. Naquela época, como precisava colaborar com as despesas da casa e dos seus estudos, fazia bolos de milho e mungunzá, tradicional prato local também preparado com milho. Além disso, atuava como lavadeira, até que começou a rendar e a ensinar essa prática. “É algo que eu gosto de passar para outras pessoas. Elas se conectam com essa técnica e, também, gostam, tanto que continuam fazendo esse trabalho”, explica a artesã.

As Rendeiras de Bilro da Vila de Ponta Negra “são detentoras do saber”, como afirma a rendeira Maria Marhé, coordenadora da associação e criadora da Zoada de Bilro: “O tecer é uma técnica ancestral. Se um dia, a gente não tiver mais máquinas e energia, como é que a gente vai se vestir novamente? Essas são as origens”, reflete.

As Rendeiras da Vila com a designer Maria Fernanda Paes e alguns alunos. Foto Paulo Lucena
As Rendeiras da Vila com a designer Maria Fernanda Paes e alguns alunos. Foto Paulo Lucena

A Zoada de Bilro, a atividade criada por ela, é uma prática de turismo de base comunitária na qual os turistas aprendem como rendar, numa experiência que dura entre 40 minutos e uma hora. Na aula, como aprendizes, eles produzem a sua própria Pulseira da Fortuna, como forma de criar uma memória afetiva com a técnica, com as rendeiras e com a cidade. Dessa maneira, eles conseguem compreender o valor por trás de cada peça:

“É uma forma de girar a economia criativa. As pessoas encomendam as Pulseiras da Fortuna e pagam a participação das rendeiras em grandes eventos. Isso gera mais recurso financeiro para elas”, detalha Marhé.

 A renda é uma tradição no estado, assim como os bordados. Desde o período da colonização, com a chegada dos portugueses a esse território, as mulheres foram aprendendo a unir linhas e nós na criação de peças. A região vem sofrendo com a especulação imobiliária, mas resiste por intermédio desta e de outras manifestações culturais, como o folclore, a dança e a reza. São tradições ancestrais que representam, de fato, um patrimônio vivo da história do Rio Grande do Norte.

O reconhecimento como Patrimônio Cultural

A data de 13 de abril foi incluída no calendário da capital potiguar como O Dia da Rendeira no Rio Grande do Norte, que por intermédio de um projeto apresentado à Câmara de Vereadores, homenageou a Vó Maria em vida. Foi reconhecida, dessa forma, tanto a trajetória da fundadora da associação como a de suas colegas integrantes do grupo. Além disso, desde 2020, as Rendeiras de Bilro da Vila de Ponta Negra são consideradas Patrimônio Cultural Imaterial do Município de Natal.

Recentemente, as rendeiras também receberam destaque em uma das feiras de turismo mais relevantes do mundo, a World Travel Market (WTM), sediada em Londres. Na presença de Celso Sabino e Marcelo Freixo, ministro do turismo e presidente da Embratur, respectivamente, Maria Marhé os orientou na produção de uma Pulseira da Fortuna, para que ambos pudessem construir memória e se conectar com a técnica de rendar. Por intermédio do evento, lideranças buscavam apresentar a diversidade de atividades e iniciativas culturais do Brasil voltadas ao turismo de experiência, totalizando mais de 50 expositores.

Maria Mahré e o ministro do turismo Celso Sabino na produção da Pulseira da Fortuna, em Londres. Reprodução
Maria Mahré e o ministro do turismo Celso Sabino na produção da Pulseira da Fortuna, em Londres. Reprodução

“Onde tem uma rendeira ou uma almofada com os bilros batendo, não tem jeito, todo mundo chega junto. Ou as pessoas têm alguém da família que já fez renda ou ficam curiosas. E não foi diferente com o ministro do turismo e o presidente da Embratur. Foi uma experiência bacana porque há um entendimento de que o artesanato também faz parte do turismo e da identidade de uma localidade. Então, estar numa feira internacional representando as Rendeiras de Bilro da Vila de Ponta Negra, que é um turismo de base comunitária, falando sobre Natal, o Rio Grande do Norte e o Brasil, traz uma visibilidade muito importante”, analisa a coordenadora.

Embora já tenha conquistado esses e alguns outros reconhecimentos, a associação ainda almeja ser reconhecida por órgãos como o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e pela Organização das Nações Unidas (ONU).

A coleção Ginga como incentivo ao potencial criativo

O mês de dezembro também está sendo o momento de a associação apresentar uma grande novidade: uma coleção desenvolvida pelas rendeiras da Vila em parceria com a designer de produtos Maria Fernanda Paes. Por intermédio de um edital do Laboratório de Inovação Artesanal (Lab Artesol), foram desenvolvidas peças de vestuário como blusas, calças e vestidos, além de itens de decoração como abajures e toalhas de mesa. A proximidade desses criativos colabora para que a associação desenvolva ainda mais autonomia na criação de suas peças:

“É uma experiência única poder desenvolver uma coleção orientada e criada em parceria com uma designer de produtos que já tem uma experiência com essa prática. A gente pôde criar coletivamente e entender um pouco melhor como desenvolver esses processos. Isso traz um empoderamento maior para as rendeiras, já que é mais uma oportunidade de um retorno financeiro mais acessível para elas”, explica Marhé.

Coleção Ginga, desenvolvida pelas Rendeiras da Vila em parceria com a designer de produtos Maria Fernanda Paes. Foto Paulo Lucena
Coleção Ginga, desenvolvida pelas Rendeiras da Vila em parceria com a designer de produtos Maria Fernanda Paes. Foto Paulo Lucena

A nova coleção foi inspirada nos peixes conhecidos como ginga, considerados Patrimônio Imaterial do Rio Grande do Norte. A proposta de unir as duas atividades econômicas parte do fato delas estarem presentes nessa região desde os primórdios da colonização do Brasil. Como moradoras de uma vila de pescadores, as memórias das rendeiras estão intrinsecamente conectadas ao mar, à areia e à própria pesca.

A produção homenageia a contribuição dessas mulheres, valorizando e expondo a sua potencialidade criativa. “No nosso caso, é o movimento coordenado dos bilros, das mãos chamando a atenção para uma tradição que não podemos deixar morrer”, narra Marhé em alusão ao significado da coleção para as rendeiras.

Grafite em homenagem à Vó Maria na Vila de Ponta Negra. Foto Paulo Lucena
Grafite em homenagem à Vó Maria na Vila de Ponta Negra. Foto Paulo Lucena

Ana Rafaella Oliveira

Ana Rafaella Oliveira pesquisa moda, identidade e cultura. Ela tem como intuito ampliar os debates sobre decolonialidade e incluir o potencial criativo da moda brasileira no cenário global.

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