ODS 1
Claudelice dos Santos: ‘Estamos sendo assassinados todos os dias’
Doze anos após a morte do irmão Zé Claudio e da cunhada Maria, advogada e ambientalista diz que vida na Amazônia continua muito perigosa
(Manaus, AM) – Claudelice dos Santos está com um nó na garganta desde que recebeu o convite para falar no TEDx Amazônia. Sua palestra acontece na manhã desta sexta-feira, em Manaus, no mesmo bloco que inclui a Ministra do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas, Marina Silva. “Doze anos em doze minutos”, diz a advogada e ativista, numa referência ao tempo que tem para resumir os acontecimentos que reviraram sua vida e a de sua família desde os assassinatos do irmão, Zé Claudio e da cunhada, Maria.
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José Claudio Ribeiro dos Santos denunciou ameaças de morte na sua fala de menos de dez minutos, na primeira edição do evento, em novembro de 2010. Apenas seis meses após o seu alerta, que dizia: “eu posso tá hoje aqui conversando com vocês e daqui a um mês vocês podem saber a notícia que eu desapareci”, o casal de defensores da floresta foi morto a tiros por pistoleiros, no assentamento onde viviam, o Projeto Agroextrativista Praialta Piranheira, em Nova Ipixuna, sudeste do Pará. Em dezembro de 2016, o 6º Tribunal do Júri de Belém condenou o fazendeiro José Rodrigues, mandante do duplo assassinato, a 60 anos de prisão. José Rodrigues continua foragido.
Nesses doze anos, Claudelice precisou trocar a vida na roça para ser a porta-voz da família na busca por justiça que a levou para vários países. Ela queria ser agrônoma, mas formou-se em Direito pela Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA) – seu trabalho de conclusão de curso foi sobre o duplo assassinato, do irmão e da cunhada. Criou o Instituto Zé Claudio e Maria que continua a luta por justiça iniciada por seu irmão, preserva a memória de defensores e defensoras da floresta assassinados e apoia os que estão ameaçados de morte. E desenvolve projetos de economia solidária e educação ambiental.
Claudelice dos Santos, 40 anos, concedeu de Nova York uma entrevista ao #Colabora, por aplicativo de mensagens. Ela esteve na cidade para participar de um evento sobre paz e segurança com defensoras ambientais latino-americanas. Ela fala do cenário de perigo para defensores, como o indígena Tymbektodem Arara, o Tymbek, que denunciou na sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU em Genebra, no final de setembro, a invasão da Terra Indígena Cachoeira Seca, onde vive o povo Arara. Há duas semanas ele foi encontrado morto, supostamente por afogamento. O indígena teria recebido áudios com ameaças de fazendeiros locais. Veja alguns trechos da entrevista de Claudelice ao #Colabora.
#Colabora: O que você sentiu quando recebeu o convite para participar do TEDxAmazônia?
Claudelice dos Santos: Eu me senti como se estivesse voltando no tempo. Embora eu não estivesse lá quando o Zé Cláudio falou, me senti como se visse ele na minha frente palestrando naquele dia. E me veio uma mistura de sentimentos, como uma dor e, imediatamente, comecei a chorar. Mas, também, como uma honra de poder subir no mesmo lugar em que ele subiu, tanto tempo depois e agora sem ele. Infelizmente sem ele, sem ela e só com essa coisa que a gente chama de força, mas eu não sei se é força ou se é indignação ou se é sede por justiça. Doze anos depois… Eu fechei o computador porque isso foi rápido e achei que eu não estava lendo aquilo. Voltei depois que tomei um café e era isso mesmo. Pensei, é Zé, doze anos depois, muita coisa mudou, mas a situação de quem vive na Floresta e protege como pode não, continua perigosa, está do mesmo jeito.
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Veja o que já enviamos#Colabora: Como você vê, do ponto de vista da sua história, esse intervalo de 12 anos entre os dois eventos?
Claudelice dos Santos: Acho que esse nosso modo de vida não tem valor. As pessoas que vivem no campo, que vivem da agricultura familiar, que têm essa visão e esse pensamento de preservar são pessoas altamente sensíveis. Sensíveis do ponto de vista de cuidar do planeta com amor, de cuidar da terra e saber que a comida é essa coisa que sustenta como corpo, mas que nos une como como vida, vida no planeta. Não é qualquer comida, é comida saudável, comida boa, comida viva. E isso não tem valor, sabe, para os grandes centros. Esses mundos diferentes que não se dialogam, não sabem da existência um do outro. Até pouco tempo eu não sabia que cidade grande era desse jeito. Gente, pelo amor de Deus, é uma loucura. Eu era da roça, sabe, e o que me trouxe nesses grandes lugares é uma luta. É uma luta por justiça, é uma luta por levar essa história para provocar reflexão nas pessoas acerca da vida, da vida de outras pessoas, da vida do planeta, da vida das florestas, das águas e desses seres invisíveis que têm muito valor e que estão desaparecendo. O que me motiva é saber da impunidade, que gera um medo de falar, medo de continuar a luta. O silenciamento das pessoas através da brutalidade, da tortura, dos ataques aos acampamentos, seja através dos assassinatos. Esse quase apagamento da história desse povo. Do povo que vive na floresta, do povo que luta, das comunidades tradicionais, dos povos indígenas, quilombolas, estamos sendo assassinados todos os dias e… acabou. Morreu mais um Zé e ninguém… que nem foi dito no dia que o Zé morreu.
#Colabora: Qual é a situação dos defensores da terra e da floresta?
Claudelice dos Santos: É uma das regiões mais violentas, uma das regiões onde houve grandes chacinas e massacres, quase extermínio de povos. A gente sempre lidou com a terra e com a violência. As vezes eu penso o quão lenta é a mudança. E quando eu olho para o mundo, e olho para o meu lugar, penso na quantidade de vezes em que essa mudança do mundo influenciou na violência contra meu povo. Toda vez em que o mundo entra em crise, que a gente pensa que a gente está num período de paz influencia o financiamento de grandes investimentos em commodities que vai afetar a minha região, meu povo. Se a gente para pra pensar, só esse aspecto me dá uma raiva, sabe, uma indignação forte de que a gente nunca vai ter paz e a gente sempre vai perder os nossos. Mas aí a gente pensa nos que virão, penso nas minhas filhas, nas filhas das minhas amigas, nas gerações futuras que não têm absolutamente nada a ver com essas guerras, com essa ambição, com essa forma de explorar a terra tão criminosa. Eles virão e a gente precisa entregar um planeta para eles. A gente precisa entregar uma forma para eles continuarem existindo. Mas a forma como o nosso planeta está sendo tão explorado e as pessoas, também, não sei se a gente vai ter grandes futuros, grandes perspectivas.
#Colabora: O que ainda te faz continuar a luta?
Claudelice dos Santos: Só nos resta lutar para se manter vivo, lutar para manter nosso modo de vida e sermos respeitados. Lutar para que nosso lugar não seja tomado, derrubada a floresta ou contaminados os rios. Nesses 12 anos sem o Zé e a Maria, a gente se inspirou muito, principalmente, nas ações deles, claro. Eles tinham uma forma reflexiva, quase filosófica, de ver a floresta, de usar a floresta pra a vida. E isso vale muito. Isso é muito importante, mas sobretudo as ações deles. O assentamento em que eles viveram, e que ajudaram a ser homologado, legalmente formalizado e tal. Ainda hoje está lá, mas a floresta deles é a única que não é fragmentada. Quase todo mundo ali já desmatou, tem fragmentos de floresta. Na prática, eles nos ensinaram como devemos viver em harmonia com a floresta. E, ainda assim, não deixar de ter roça todo ano para plantar legumes. E, ainda assim, não deixar de ter frutos da floresta todo ano para colher. A gente não permite que cacem, não permite que entrem para pegar nada lá dentro porque é um refúgio de animais. É onde as plantas têm uma vida nativa, sem muita intervenção humana e é um desafio para todos nós. E terra, quando se olha rasamente, dependendo da pessoa, vê como apenas um lugar para explorar e plantar capim para gado e derrubar (árvores). Para nós não, é muito mais que isso, é uma vida, um ser, é um de nós. A terra é uma extensão da gente. E nesses 12 anos manter a floresta que eles mantiveram e perderam suas vidas pela causa é uma honra, nos ensina muito. O uso da floresta para manutenção da nossa vida, comer, vestir, tudo, sem derrubar e sem agredir. São muito importantes esses ensinamentos, principalmente para as gerações futuras, ou essas gerações de agora, crianças, jovens que muitas vezes perdem até o orgulho de dizer que são camponeses, que é um orgulho ser filho de camponês, um orgulho dizer que é filho da terra. Ou que não tem ligação com a Floresta, com o meio ambiente ou com a roça. Zé, Maria e tantos outros já sabiam disso, sabem disso, praticam isso e existem forças que não querem, que acham que esse negócio de Floresta, esse negócio de preservar ou esse negócio de crime, é balela. Ou outros que veem nisso apenas uma forma de lucrar, de lucrar com o carbono, lucrar com esse modo de existir, lucrar. Isso é terrível, isso é desumano. Desumano do ponto de vista de nós humanos e do ponto de vista dos não humanos que é a natureza. Isso é absurdo. Pensar que muitas pessoas pensam assim, de que esse pensamento de preservar e de cuidar do planeta não é uma coisa plausível, porque isso não tem importância diante dos avanços ou da prosperidade econômica. O que é a prosperidade para essas pessoas? É apenas o dinheiro, não é você comer uma fruta fresca, você ter a capacidade de levar comida para a cidade, para vender comida fresca, sem veneno, comida, sabe, plantada com mãos dignas, colhidas com dignidade e, eu fico muito chateada quando eu penso nisso, desculpa… (choro)
#Colabora: Que mensagem você deixaria para o seu irmão Zé Claudio e para a sua cunhada Maria?
Claudelice dos Santos: A tua luta não foi em vão, meu irmão, não foi. Você está na memória coletiva. Você está na memória das pessoas. A Maria está na memória coletiva. A Maria é inspiração para outras mulheres. Vocês nunca foram esquecidos e não serão. Não, se depender de nós. Enquanto houver mobilização popular e o movimento das mulheres, nunca ela será esquecida, nunca eles serão esquecidos. Tanta coisa para falar nesse TED x Amazônia, mas eu só tinha 12 minutos. Doze anos em 12 minutos. Eu escrevi algumas coisas que refletem um pouco da dor que nós sentimos depois deles morrerem, deles serem assassinados. Mas é muito mais profundo. A dor é muito, muito maior. As conquistas também. Mas nada se compara à saudade. Sem a Maria, aquela presença forte. Era aquela mão estendida o tempo todo para a família, para a comunidade, os amigos. E doze anos depois eu às vezes penso, isso realmente aconteceu? Eu não estou num sonho? Num pesadelo? Num loop qualquer de tempo? Eu não sei. Eu custo a acreditar que estou passando por isso. Que minha família está passando por isso. Que todo mundo está passando por isso, sabe? Não. Não é pesadelo, não. É a brutal realidade de onde eu vivo.
Marizilda Cruppe tentou ser engenheira, piloto de avião e se encontrou mesmo no fotojornalismo. Trabalhou no Jornal O Globo um bom tempo até se tornar fotógrafa independente. Gosta de contar histórias sobre direitos humanos, gênero, desigualdade social, saúde e meio-ambiente. Fotografa para organizações humanitárias e ambientais. Em 2016 deu a partida na criação da YVY Mulheres da Imagem, uma iniciativa que envolve mulheres de todas as regiões do Brasil. Era nômade desde 2015 e agora faz quarentena no oeste do Pará e respeita o distanciamento social.